quarta-feira, 25 de novembro de 2009

JULIO CONCEICÃO, VIDA E MEMÓRIA DO ESCOLÁSTICA ROSA

JULIO CONCEICÃO, VIDA E MEMÓRIA DO ESCOLÁSTICA ROSA


Paulo Matos (*)

Transformador social, disposto a promover as mudanças nas relações vigentes na sociedade, Júlio Conceição foi executor da herança de João Otávio dos Santos, patrocinador do Escolástica Rosa. Altivo em seu busto no Orquidário, logo na entrada, ele permanece em vigília constante. Afinal, foram suas plantas que compuseram o acervo básico do patrimônio verde do José Menino, nascido nas primeiras décadas do século XX no Boqueirão. Era o Parque Indígena - sua grande obra. Não fosse a sua luta, socialista acadêmico que era, para eliminar as distâncias entre ricos e pobres.

Foi do escultor Guido Zampol a escultura que o perpetuou. A rua com seu nome atravessa os bairros da Vila Mathias e Encruzilhada. Embora interrompida em vários trechos, continua como o espírito deste Conceição que se espalhou e se espalha pela cidade, em ações múltiplas.

Em 1889, ele integrou o lançamento do Manifesto Socialista ao Povo Brasileiro - uma iniciativa vanguardista no Brasil, a primeira dessa matiz ideológica de que se tem notícia no país -, junto com Silvério Fontes, Carlos Escobar, Sóter de Araújo, Sales Braga e outros, solidariedade de raiz. Estes que iriam fundar o primeiro núcleo socialista do Brasil, o Centro Socialista de Santos, em 1895.

Foi Júlio Conceição, homem de visão social, o testamenteiro de João Otávio, de quem foi amigo, o cumpridor da vontade. Há poucos anos, os iconoclastas levaram a cabeça do monumento deste Otávio, situado no jardim da praia, homenageando este que deixou sua fortuna para construir o Instituto de Educação Dona Escolástica Rosa.

Artistas como Serafim Gonzalez e seu filho Daniel refizeram a decapitada obra de Caetano Fracarolli, há pouco, nestes tempos outros, lá colocada em 1960. Foi o pensamento e a vontade de João Otávio, levado adiante com esforço por Conceição, que não pôde ser refeito.

A intenção de salvar gerações, pelo aprendizado de ofícios no Escolástica Rosa - homenagem maior de João Otávio à sua mãe -, não foi cumprida pelos que herdaram seus bens. Após atuar decidido na superação da chaga maior da sociedade brasileira, a escravidão, missão para a qual Santos foi vital no país, Júlio desejou abrir horizontes para os construtores do futuro. E para tanto escolheu alguém que pudesse levar adiante sua vontade - debalde, apesar do esforço deste Conceição.

Intelectual, socialista acadêmico da geração de Silvério Fontes, Júlio Conceição foi o rico cidadão - ecologista, estudioso, escritor, abolicionista - que criou jardins vegetais e humanos. Foi dele o capital que ajudou a fundar A Tribuna, em 19 de dezembro de 1899. Financiando Olímpio Lima, após terem lhe tomado A Tribuna do Povo, que fundou em março de 1894. Que, aliás, fechou e que, assim, não se justifica a comemoração centenária do jornalão de hoje.

A dívida de vinte contos, o capital inicial de A Tribuna, ele perdoou em favor dos filhos de Olímpio, após o desaparecimento deste, em 1907 - que levou o órgão à leilão. É quando entra em campo o Nascimento Júnior e depois o Giusfredo, que lhe leva a filha e o jornal. Mas esta é outra história. Júlio Conceição foi também um dos primeiros donos do Parque Balneário.

Benfeitor, amigo e testamenteiro de João Otávio, Júlio Conceição foi vereador em 1889, presidente da Câmara na época da Monarquia, substituído por Américo Martins dos Santos, convivendo com este membro do Clube Republicano no mesmo cargo. E é personagem do fato curioso da duplicidade de governos na cidade, nestes tempos de transição. Presidiu a sessão de 21 de novembro de 1889 e aderiu à nova ordem republicana, quando já existia o governo provisório da República na cidade, na polêmica acompanhada no Diário.

A Câmara funcionava na Cadeia Nova, hoje Cadeia Velha, na Praça dos Andradas - o Paço Municipal, prédio tombado e destombado que já se quis demolir - desde 1869 até 1896. Quando mudou-se para o casarão do Valongo, construído durante a Guerra do Paraguai pelo Comendador Ferreira Neto, que o iniciou em 1836.

Em 1889 já se haviam iniciado as obras do porto, no ano anterior, por Gafré e Guinle. Também se desenvolve a grande campanha sanitária, com a construção da primeira rede de esgoto, nos planos dos engenheiros Garcia Redondo e Augusto Fomm Júnior. Júlio adquire a área do seu Parque.

Júlio Conceição foi também, como João Otávio, de quem era amigo, um grande financiador da campanha abolicionista, na qual Santos teve um papel determinante no Brasil, pois acolhia os escravos fugidos de toda a província paulista. A cidade tinha 20 mil habitantes e 2 mil casas e o município encampara a limpeza pública.

Quando José Inácio da Glória viu sua farmácia ir à leilão - ele que com Xavier da Silveira, um dos líderes paulistas do abolicionismo, mantinha o jornal A Imprensa, militante da causa -, foi Júlio Conceição, provedor da Santa Casa, que a adquiriu e a devolveu a José Inácio, para que este continuasse sua militância abolicionista. É que este mais dava remédios aos pobres que os vendia.

Quanto ao Instituto de Educação Escolástica Rosa - para o que João Otávio deixou herança, no trabalho do testamenteiro Júlio Conceição -, o que vemos é que o problema da infância desvalida se agravou, paralelamente à atitude de descaso com o último desejo de João Otávio que ele pretendeu deixar como exemplo.

Um propósito - o de ajudar a infância pobre e abandonada - que, embora desejado por este benemérito, foi ano a ano se desfazendo e desmentindo, cronificada hoje. Foi sobre ele que o professor e historiador Alberto Monforte discursou em sua posse na cadeira número 72, cujo patrono é Júlio Conceição, há 13 anos - registrados neste 11 de janeiro, do tradicional Instituto Histórico e Geográfico de Santos.

Segundo a publicação editada pela Prodesan, Santos/Jurado, a ilha e o novo, deste autor junto com a arquiteta Gegê Leme - destacando e descrevendo a obra arquitetônica de Artacho Jurado, no Boqueirão -, se denota o ousado estilo arquitetônico do edifício Verde Mar. Construído no início dos anos 50, na área do Parque Indígena.

O Parque Indígena era um patrimônio de 22 mil metros quadrados de terreno, com 200 mil orquídeas, pomares, aves e animais, considerado o maior orquidário ao ar livre do mundo, então. Preparado desde 1909, em terras adquiridas da chácara de Carneiro Bastos, foi inaugurado em 1932 e durou até 1938, quando faleceu Conceição.

Em 1944, a área seria loteada e seria iniciada a expansão imobiliária. Em 1945, nasceria o Orquidário, com suas plantas. Contam que no entardecer, as pessoas vinham assistir à revoada dos pássaros naquele éden. Os leões de sua entrada monumental foram para a sede do Jabaquara Atlético Clube, outra das glórias de Santos.

Foi Alfredo Vasquez, do Cine-Foto Clube, quem nos informou sobre Inácio Manso, valiosa peça do Parque Indígena, o jardineiro de Júlio Conceição. Quando o acervo vegetal foi para o Orquidário, ele foi junto, tornando-se zelador e funcionário público, aposentado em 1979 e falecido em 1986.

Os vegetais foram preparados em um terreno no canal 8, em que existiu o campo do Libertários F.C - o mais antigo da várzea santista, ainda hoje com sede própria na rua João Caetano, no Marapé. Inácio e família moraram dentro do Orquidário e sua filha foi professora municipal. Natural de São Joaquim da Barra, nasceu a 27/11/1909 e veio para Santos com 22 anos, parceiro da poesia de Conceição.

“UM EXEMPLO DE AMOR AO TRABALHO, À ECOLOGIA E À FILANTROPIA”

É como Monforte lhe dedicou a oração.

O professor Alberto Monforte, professor e historiador, dono de acervo valioso sobre a história de Santos, teve o privilégio de conhecer Júlio Conceição, a quem aprendeu a admirar. Pesquisando, escrevendo e discursando sobre ele, revela que concretizou um sonho de juventude, homenageando este que viu como herói. E a quem cujas virtudes denominou como próprias de um ”santista de alma”. “Exultei”, diz, contando suas reminiscências, ao poder lembrar publicamente aquele que conheceu por meio do então professor Dr. Lacaz de Moraes.

Foi o professor Lacaz que, intentando proporcionar uma aula de história natural ao vivo, levou os jovens alunos a conhecer o Parque Indígena - a magnífica obra de Júlio Conceição, então o maior jardim particular ao ar livre do mundo, em uma área adquirida em fins do século passado e preparada por quase duas décadas, no bairro do Boqueirão.

Muita gente vinha ver, no por do sol, a revoada de milhares de pássaros do Parque Indígena, que beijavam diuturnamente milhares de flores. São lembranças colecionadas desde os tenros quinze anos desse Monforte, então integrante da primeira turma de ginasianos do então Ginásio do Estado, hoje Colégio Canadá, em 1938.

A experiência de Monforte ao conhecer Júlio Conceição, descrevendo as flores uma a uma como Aristóteles aos seus discípulos peripatéticos, é digna de registro. Sua visão grandiosa do não menos gigantesco Parque Indígena, na esquina da avenida Conselheiro Nébias com a praia - e que ia até depois da rua Angelo Guerra, que hoje divide a quadra, com fundos para a hoje denominada Epitácio Pessoa -, é magistral como a obra em sí.

É Monforte que conta suas reminiscências, em que estão o homem público, o abolicionista, o provedor da Santa casa e o testamenteiro de João Otávio. É a Santos em que o real e o mitológico se unem, em formidável concerto.

MINISCÊNCIAS
Alberto Monforte

"Quando ainda nos verdes anos de buliçosa juventude, recém-ingresso na puberdade, em meus quinze anos de irriquieta agitação, fazia parte de um grupo de jovens privilegiados - os que formavam a primeira turma de ginasianos do então Ginásio do Estado, hoje Colégio Canadá.

Nos idos de 1938, tive a felicidade deter, como educadores, um pugilo de mestres de alto gabarito e de profundo saber. Entre estes tantos ilustres professores, damos destaque ao excepcional médico e catedrático, Dr. Lacaz de Moraes, que nos propiciou aulas explendorosas.

Com uma capacidade didática rara e explicações claras e objetivas, eram acompanhadas de desenhos de traços rápidos e fiéis ao objeto a ser estudado. Certa feita, este grande mestre teve a feliz idéia de nos proporcionar uma aula de história natural ao vivo, em um dos poucos recantos onde poderíamos obter reais conhecimentos da matéria : o Parque Indígena.

Foi assim que tive o primeiro contato com um verdadeiro tesouro, incrustado em uma das mais belas praias santistas, o Boqueirão. Nosso grupo de irriquietos jovens, levados pela mão deste sábio mestre, foi levado a conhecer o Parque Indígena, criação do inolvidável Júlio Conceição.

Ao adentrarmos o portão monumental , ladeado por duas colunas, sobre as quais repousava majestática imponência - dois leões de pedra, guardiões das riquezas ecológicas entesouradas por este novo Academus, fomos recebidos por um simpático senhor. Já idoso, porém lépido e lúcido, que se nos apresentou como nosso anfitrião. E que daí em diante seria o guia, mostrando-nos as diferentes espécimes de plantas e árvores do seu Jardim Botânico.

Tal qual Aristóteles aos seus discípulos peripatéticos, ao caminhar ia dissertando sobre exemplares vegetais que constituiam parte de sua riqueza. A seringueira, a palmeira imperial, a roseira, a margarida, a açucena, os abieiros, as goiabeiras, a cana-de-açúcar, etc... Mas não ficou restrito ao simples mencionar nomes de cada espécie: entrou em detalhes físicos, quanto a forma do caule,das folhas, das flores e dos frutos, utilidades domésticas e industriais. Detinha-se com grande carinho explicando a cultura de suas orquídeas, das quais possuia uma infinita variedade, em número superior a cem mil.

Algumas orquídeas eram raríssimas e, com muito afã, procuradas e admiradas por colecionadores de distantes países. Porém, sua paixão estendia-se também aos animais, principalmente aves que mantinha livres a chilrear pelas galharias e que alegres vinham comer à sua mão, com um simples chamado.Com sua fidalguia e compreensão, nos orientava carinhosamente : podem colher e comer as frutas que quiserem, porém não machuquem as plantas e nem estraguem as frutas, colham apenas as que possam comer !

Júlio demonstrava profundamente seu amor à natureza, que ele adaptou em seu Éden paradisíaco. Onde recantos poéticos abrigaram gênios fulgurantes de nossa literatura. O nosso poeta maior, Vicente de Carvalho, elaborou e aprimorou lá versos melodiosos, cheios de ternura e autenticidade, como fugindo ao cativeiro. Uma epopéia que coloca a sua Santos querida no pódio principal das precursoras da abolição no país.

Foi também em suas alamedas, em que o sol radiante filtrava seus raios luminosos, entre as verdes ramagens a saudar a beleza da natureza, que o esfuziante poeta Martins Fontes cascateava seus versos rutilantes, cantarolando as incríveis estrofes de seu eterno Verão.

O Parque Indígena, fonte inspiradora dos nossos grandes vates, manancial de cultura, beleza e amor à natureza, representada pelas flores exóticas, perfumadas e coloridas, por suas frutas sumarentas e saborosas, por seus pássaros canoros e de plumagens multicôres, tinha sobre sí o carinho deste grande idealista, o nosso Júlio Conceição.

BIOGRAFIA

Nascido em Piracicaba a 12 de março de 1861, Júlio Conceição faleceu em Santos em 10 de setembro de 1938. Filho dos Barões de Serra Negra, foi casado com Dona Mariana de Freitas Guimarães Conceição, de cujo consórcio teve os filhos Lydia Conceição Leitão, casada com o Dr. Mário Leitão; Oswaldo Conceição, casado com dona Leontina Ayrosa Conceição. E Mauro Conceição, casado com Dona Betty Backeuser Conceição.

Veio para Santos com a idade de l8 anos. Homem de ação serena e por isso mais construtiva, iniciou sua atividade no ramo do comércio cafeeiro, pois na época Santos constituia-se no mais importante porto do país, voltado à exportação da preciosa rubiácea. Que, tomando lugar à borracha, passou a ser o sustentáculo da economia brasileira.

Homem abnegado e de grande coração, com o ganho de seu laborioso e honesto trabalho, deu grande exemplo com seus atos de filantropia e iniciativas locais, quase sempre originadas de seu idealismo e sentimento de pura fraternidade humana.

Assim, como cidadão prestante, foi solicitado a servir à coletividade sendo eleito vereador em 1897, aos 23 anos. Já em 1889, assumiu o cargo de Presidente da Câmara, equivalente às funções do Poder Executivo, então. Nesse ano, a febre amarela, terrível mal, grassou com grande intensidade, causando milhares de óbitos em São Paulo e Rio de Janeiro.

Em Santos, cidade que ainda não fora saneada, o que seria mais tarde pelo gênio de Saturnino de Brito, foi também vítima e teve parte de sua população dizimada pelo terrível morbo. E Júlio Conceição, já pelo seu cargo, pelo espírito de solidariedade, desdobrou-se em mil providências para abrigar os doentes desamparados. Criando hospitais de emergência, desafiando os perigos do contágio, como um itimerato general no campo de batalha.

Foi um grande abolicionista. Deu integral apoio aos organizadores do Quilombo do Jabaquara, refúgio dos escravos e baluarte da liberdade, foi companheiro infatigável de Quintino de Lacerda, Ricardo Pinto de Oliveira, Silva Jardim, Martim Francisco, Júlio Ribeiro e tantos outros - que a treze de maio de 1888 vibraram de entusiasmo e satisfação pela assinatura da Lei Áurea , cônscios do dever cumprido, pois, há meses que em Santos não havia cativos.

Vibraram também em quinze de novembro de 1889, quando viram concretizados os anseios republicanos pelos quais tanto pugnavam. A Câmara Municipal realizou sessão especial no dia vinte e um de novembro, sob a presidência de Júlio Conceição, que leu a moção de aplauso, em nome da Municipalidade ao vitorioso movimento revolucionário e voto de louvor, em ata, pela instituição do regime republicano, moção aprovada sob demoradas palmas.

Homem de muito ler, Júlio Conceição, também o era de escrever ; publicou inúmeros trabalhos de História, ao lado de numerosos artigos, nas campanhas que adotava, fosse pela salvação de nossa pesca marítima, fosse pelo saneamento de Santos, fosse contra a febre amarela ou pela proteção dos animais, além de fazer um belo estudo biográfico de Benedito Calixto.

Exercendo diversas atividades utilitárias, foi fazendeiro, usineiro e comerciante. Fundador e diretor do Banco Mercantil, também sócio da Campanha Ferro Carril. E junto com João Éboli e James Mitchel, ganhou a concorrência para a iluminação pública por eletricidade na cidade de Santos. Na noite de quinze de agosto de 1903, um sábado, inaugurava-se na avenida Ana Costa a iluminação pública elétrica.

Sua inteligência era clara e lúcida, tendo muitas vezes ocasião de provar sua cultura e a segurança do seu raciocínio, em artigos publicados na imprensa, em torno de vários assuntos. Pelos seus trabalhos e pesquisas, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fê-lo, em 1908, seu sócio benemérito.

Foi o idealizador, fundador e primeiro presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santos, cuja biblioteca e museu foram por ele iniciados. Foi agraciado pelo governo português com a Ordem de Cristo, comenda esta outorgada pelos inestimáveis serviços por ele prestados à laboriosa colônia portuguesa.

Tendo ingressado na Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Santos, em 1884, foi eleito provedor nos anos de 1897 a 1902, cargo em que se houve com o proverbial zêlo, despreendimento pessoal e elevado senso administrativo. Durante sua gestão, prosseguiram aceleradamente as obras de reforma do grandioso edifício do hospital, concluídas em 1902.

Ao lado de João Otávio dos Santos, como seu amigo, compadre, mentor e executor testamentário, seu nome ocupa lugar de relevo nos fastos da Santa Casa da Misericórdia de Santos, como irmão benemérito, pois concorreu para que fosse legado à esse nosocômio, a quantia de cento e vinte contos de réis (120:000$000), em dinheiro e os imóveis necessários para a criação e manutenção do Instituto Dona Escolástica Rosa.

Neste tópico gostaria de recordar algumas das palavras pronunciadas na Rádio A Tribuna, por ocasião do centenário do nascimento de Júlio Conceição, em março de 1964, pelo grande médico e emérito historiador, Dr. Edgard de Cerqueira Falcão:

“Lutador impertubável, Júlio Conceição, dentre inúmeras campanhas que sustentou, teve oportunidade de edificar um grande estabelecimento educativo, que, hoje em dia, nem de longe relembra o seu nome: o Instituto Dona Escolástica Rosa.

Testamenteiro de João Otávio dos Santos, foi lhe por este confiado o encargo de erigir em chácara de sua propriedade, no chamado Ramal da Ponta da Praia (atual avenida Epitácio Pessoa), certo recolhimento para que meninos pobres nele se preparassem para os embates da vida, o qual deveria receber o nome da falecida mãe do testador, Dona Escolástica Rosa.

Para chegar a bom termo, teve Júlio Conceição de vencer a hostilidade manifesta da Comissão da Santa Casa da Misericórdia de Santos, que deveria colaborar consigo no testamento do cumprimento do testamento de João Otávio. E toda a sorte de embaraços criados pelas péssimas condições do território pantanoso, sujeito à influência das marés que, represando o rio Conrado, inundava extensas áreas entre os atuais canais 5 e 6 mediante o rendilhado de seus braços...

Para se ter uma pálida idéia dessa luta titânica, desse esforço hercúleo de um verdadeiro herói, descreverei alguns dos tópicos de sua monografia sobre o Instituto Dona Escolástica Rosa:

“Acorde com o solene compromisso prestado em 24 de julho de 1900 perante o M. Juiz da Primeira vara, Exmo. Sr. Dr. Primitivo de Castro Rodrigues Sette, junto com o Primeiro Tabelião Major Joaquim Fernandes Pacheco, de bem e fielmente desempenhar a honrosa e privilegiada missão que me era destinada, de único testamenteiro e inventariante dos bens de meu amigo e compadre João Otávio dos Santos, venho ora dar por concluído meu encargo com a monografia, relatório e documentos que se seguem pela ordem cronológica dos assuntos..."

Grande se tornou este trabalho, eivado de acidentes e contrariedades desde seu início, por mais resumida que se queira fazer minha exposição, nunca poderei deixar de ser prolixo, não só pelo fato de fazer explanações naturais sobre assuntos das disposições testamentárias e de ensino prático profissional, como para justificar meus atos e esclarecer pontos de cavilosas insinuações que, calada e resignadamente, tenho sofrido ao longo do inventário...

Foi, sem dúvida, moroso o cumprimento deste testamento, porque não podia ser por menos. O que está feito não se fez por palavras, senão com tempo e meditação, trabalho e dinheiro. As pouquíssimas interpelações diretas, estas mesmo de estranhos, sobre a demora da inauguração do Instituto, tenho tido oportunidade de responder que as obras estavam sendo feitas vagarosamente, com o recurso da renda, em virtude da orientação a que sempre obedeci, com o aplauso do M. Juiz de Direito. DE NÃO VENDER IMÓVEL ALGUM PARA COM SEU PRODUTO ACELERÁ-LAS, RESTRINGINDO DE TAL ARTE O PATRIMÔNIO - QUANDO HAVIA IMPRESCINDÍVEL NECESSIDADE DE SEU AUMENTO...

..De mais, presidiu-me o ideal, não obstante o legado, inquestionavelmente insignificante para o fim de, acentuadamente, fazer uma grande e bem organizada instituição que, penso eu, servirá de modelo para o objetivo de outros estabelecimentos congêneres.Por tal forma orientado, satisfiz todos os encargos do inventário com os recursos disponíveis e adiantamentos monetários de minha parte, para não alienar, talvez desastrosamente, atenta à época, bens alguns de raiz pertencentes ao acervo, afim de atender aos encargos...

...Criaram não pequenos embaraços à testamentária uma ação de nulidade de testamento, movida pelos parentes de João Otávio; um sequestro nos bens do espólio, requerido pelos mesmos e uma ação ordinária de cobrança de honorários médicos. Quanto às ações de nulidade e sequestro, foram julgadas improcedentes. Em relação a de honorários médicos, não teve o espólio a mesma facilidade. O autor pedia 50 contos de réis mais $3.841.219 réis de despesas judiciais e juros.

Como é sabido, João Otávio, sofrendo asterioclerose, teve uma síncope que lhe trouxe a morte. Chamado dois médicos, em uma emergência aflitiva, como é natural, nada tiveram a receitar senão assistir à agonia de poucas horas.

A liquidação de contas com estes dois médicos não se tornou menos trabalhosa, pois só no fim de 8 meses de relutâncias e certa habilidade e diplomacia de minha parte, foi que consegui, sem mais demandas o resultado de pagar cinco contos de réis pelo serviço de ambos. A conta que me era apresentada sempre verbalmente montava a 28 contos de réis pelo atestado destes dois profissionais. Baseado neste acordo é que o espólio foi condenado a pagar os 40 contos de réis ao médico anterior.

Infelizmente, a herança, embora de aplicação sagrada e útil como a de João Otávio, sofreu, salvo honrosas exceções, cobiças e investidas de toda sorte, como se fossem bens reúnos ou associações de mão morta, a que muitos se atiram como causa natural...”

JULIO CONCEIÇÃO, APÓS TECER VÁRIAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A COMISSÃO NOMEADA PELA SANTA CASA, PARA ACOMPANHAR O DESENVOLVIMENTO DO CUMPRIMENTO TESTAMENTÁRIO, E AS DIFICULDADES POR ELA CRIADA, CONTINUA:

“Não consegui o lisonjeiro resultado em que hoje se acha o espólio sem obstáculos de toda a espécie. É com verdadeiro pesar que aqui registro não haver o Governo do Estado, nem a nossa Câmara Municipal, isentado o espólio de seus pesadíssimos impostos, sendo os prédios destinados, como eram e são, a servir de patrimônio do Instituto Dona Escolástica Rosa, fundado para a educação e prática profissional de meninos pobres, e que mereciam do governo e de nossa edilidade a proteção e favores que geralmente se dispensam à estabelecimentos de instrução e humanidade... Em tais circunstâncias, o espólio, até o final, tem levado aos cofres públicos a sua pesada contribuição.

Até hoje o espólio não recebeu o mais insignificante favor de quem quer que seja...E mesmo propositalmente não procurei esta forma de auxílio, isto é, recorrer à magnanimidade de amigos ou à caridade pública, senão às solicitações de isenções de impostos aos poderes constituidos... De mais a mais, tenho feito o possível para que o Instituto funcione com o rendoso patrimônio e não dependa da caridade pública, de maneira a que o aluno que entrar para aquela casa seja altivo e não se eduque às expensas de donativos de intuitos caridosos, sem contudo deixar de ser reconhecido ao seu benfeitor.

O Instituto Dona Escolástica Rosa, com vida própria, deverá ter da Santa Casa os cuidados da boa orientação administrativa, ”... de tudo cuidando e zelando como de cousa sua que próprio fosse”, nunca fornecendo-lhe auxílio de espécie alguma proveniente do óbulo da caridade...

CONTINUANDO MAIS ADIANTE, VEMOS EM JÚLIO CONCEIÇÃO O ESPÍRITO DA FRATERNIDADE UNIVERSAL E UMA FILOSOFIA PROFUNDA DE AMOR QUANDO DIZ...

“Espero, porém, ainda em meus dias, ver os poderes constituídos voltarem sua atenção simpática para esse ramo da educação, preventivo e mais salutar, sem dúvida, do que as prisões da Ilha dos Porcos, do Instituto Disciplinar de SP e outros congêneres em nossa pátria. A ignorância gera a miséria e a miséria é muitas vezes a origem de paixões brutais : só se combate a ignorância com a instrução e se suporta a pobreza com resignação quando se sabe que a pobreza não é um vício e pode ser diminuida e vencida pelo trabalho e economia.

Tenho fé que verei em breve, além de peritos profissionais, sairem do Instituto Dona Escolástica Rosa, fugindo ao vício e ao crime, artistas educados, homens úteis à sociedade, com honroso diploma do ofício de sua vocação. Infelizmente entre nós, como em todo o mundo, conforme presenciamos, salvo raras exceções, os governos mais se preocupam com as prisões, militarismo e artes para a destruição dos homens, quando deveríamos sem duvida seguir outro caminho, o da instrução popular mais ou menos descurada”.

Por estes resumos de sua biografia, podemos aquilatar a grandeza da alma e a pureza de espírito que existiam nesse grande brasileiro, que pode deixar para seus póstergos o exemplo do mais acendrado civismo, do mais caloroso amor à natureza e do incomensurável devotamento ao bem estar da humanidade.

Júlio Conceição é um paradigma que deve ser apontado a todos os brasileiros nesta era de descalabro, de desonestidade generalizada e descrença absoluta nas palavras dos nossos políticos e governantes, para que num futuro próximo possamos, com o auxílio do Grande Arquiteto do Universo, ver a grandeza de nossa pátria reverenciada por todas as nações do planeta.

Santos, 19 de janeiro de 1985
Alberto Monforte

Paulo Matos
Jornalista, Historiador pós-graduado e Bacharel em Direito
E-mail: jornalistapaulomatos@yahoo.com.br
Twitter: http://twitter.com/jorpaulomatos
Fone 13-38771292 - 97014788

Um comentário:

Unknown disse...

Como bisneta de Julio Conceicao, ao ler seu artigo, senti-me muitissimo honrrada e, orgulhosa, de saber que existem pessoas que dao valor a um homem de coracao puro e amante da natureza. OBRIGADA POR SUAS PALAVRAS SOBRE O vOVO.