segunda-feira, 31 de agosto de 2009

BETH FEIA

BETH FEIA

Paulo Matos (*)

Beth se foi. Bastou dizer Beth para compreender o significado do triplo vocábulo. Quem era essa Beth? Ora, ela construiu seu espaço no silêncio, na afeição, no cuidado do trato, no amor. As pessoas eram doces, solidárias e sensíveis em 68, lá na turma que fazia acontecer a cidade e o mundo na Ponderosa do Demétrio, há mais de 40 anos.

Mas Beth Feia, como chamavam aquela grande alma, para diferenciá-la da Beth Bonita, era mais doce e solidária, espalhando flores em tempos de cassetetes, canhões e cadeiras-de-dragão da tortura. Era transcendente, além da experiência metafísica, sem a imanência limitada, compreensão além.

Beth era essencial àquele meio, que sem seus valores não sobreviveria. Ela nunca viveu para si e nem nunca se preocupou com ela mesma, seu objetivo era o mundo e as pessoas. Cuidava daqueles seres passivos diante da grandeza do sol, pequenos, falantes, nervosos e pretensiosos, enquanto ela sabia que o que alimentava sua existência era ajudar, se calava. Cuidou da mãe, de Fabi, de todos enquanto existissem. Agora, chegou sua vez de encerrar sua missão divina na terra, emérita defensora da igualdade.

Não era bela, mas mesmo assim seu coração se repartia, sua preocupação constante era ajudar alguém. Não era a Beth Bonita do Edmir, o líder estudantil que fazia química e integrava a Junta Governativa do Centro dos Estudantes. Mas foi a Beth Feia que criou o belo bebê que ele fez com uma militante paulistana que surgiu por aqui enfeitiçando corações, morena jambo de voz doce.

Este bebê se tornou Fabi, hoje Mesquita, que Beth Feia fez crescer bela e intelectualmente formada nas causas da Revolução necessária. Casou-se com o médico humanitário Fábio e hoje habita terras distantes com ele no ideal de cuidar das pessoas com AIDS. Indonésia vítima do Tsunami, lugares miseráveis da terra onde existem seres humanos. Beth comprava livros em quantidade, acima da sua e da nossa possibilidade de lê-los, alimentando nossa fome de conhecimento.

Beth andava sempre compenetrada de seu dever maior de ser antes de ter, de ajudar antes de usufruir, modesta restrita ao seu espaço de servir, apenas – o que lhe garantia a vida. Teatro, história, crítica de arte, filosofia, poesia de Maiakovski a Vinicius nestes tempos de Maurice, estratégias de ação política. Era Beth aliada daquela turma aventureira do ideal que bebia, ria, discursava e chorava nas madrugadas sem ação trazendo angústia, em tempos de fossa.

Era ela, que liderou movimentos na esquerda, não a das ações objetivas e conjunturais, não das palavras de ordem de repúdio aos ditadores, mas como para socorrer companheiros, inclusive este que vos escreve. Quando me acidentei com Edmir há 40 anos, no final de 1969, internado, ela reunia os recursos e os entregava à minha mãe – que como todos têm dela doce lembrança.

É ai que as peças se juntam e mostram unidade na ação, incorporam valor e sublimam a história dos personagens de um tempo vital da construção de uma identidade, de uma fome e desejo de justiça e revolução. Beth Feia. Edmir, eu, Fabi, Fábio, minha mãe que conseguiu me fazer sobreviver para continuar, a cidade e o mundo no reflexo de Paris de 68 da Sorbonne e Naterre.

Como Thomas Mann escreve sobre Schopenhauer e sua altiva misantropia, mas que jamais renega sua idéia do homem: sua sensibilidade espiritual, sua doutrina, que era vida, conhecimento, pensamento e filosofia não são apenas ocupação da cabeça, mas da integralidade do ser, coração, sentidos, corpo e alma, em uma palavra – o que dela faz uma artista. Beth. Adeus. Outros virão e saberão de tua memória, La Passionária da nossa história que soube existir. Eles, os egoístas, ah, eles não passarão!



(*) Paulo Matos Jornalista, Historiador pós-graduado e Bacharel em Direito
E-mail: jornalistapaulomatos@yahoo.com.br
Blog: http://jornalsantoshistoriapaulomatos.blogspot.com

Um comentário:

Fabi Thabi disse...

paulo, muito obrigada pelas palavras sobre a beth, sobre a lembranca e o resgate da nossa historia. O greg esteve com ela os ultimos dias e isso foi uma dadiva...obrigada pela delicadeza...se vc soubesse o quanto mais ela fez ainda, criou seu sobrinho deixado pelos pais e estava criando a Larissa que foi deixada pela mae. Tb montou um projeto na casa dela, no jardim..simples semapoio institucional, mas lá durante anos atendeu mais de 150 criancas,criou 98 gatos de rua e 20 caes abandonados na carrocinha
Era um ser humano impar...singular!