sexta-feira, 11 de julho de 2008

ART - LIBERDADE DE MATAR

LIBERDADE DE MATAR

Paulo Matos

Em ato de defesa social, querem proibir a propaganda de cigarros – e seus fabricantes reclamam a liberdade de fazê-la. Mas que liberdade é essa? Liberdade, na verdade, implica em conhecimento da necessidade, que escapa à mera vontade. É a consciência de agir, sem algo que o determine, como o impulso ao desejo das campanhas publicitárias do cigarro. Que fazem crer seja ele sexy e viril.

Liberdade não é a sujeição, mas domínio e afirmação humana, na visão de Marx e Engels. Eles aceitam a tese de Spinoza, liberdade como conhecimento da necessidade, enquanto Hegel a concilia com a história. A liberdade é, pois, a consciência histórica da necessidade. Que não pode ser a liberdade de matar ou agredir o coletivo social - e seus elementos vitais - com falácias sobre venenos letais.

Essa liberdade de propaganda do cigarro é a reivindicação do direito da coação psicológica externa. E o homem determinado externamente – e não por ele mesmo – é escravo, escreveu Spinosa. A liberdade não é somente a sujeição consciente à natureza, mas domínio do homem diante dela. Se libertando desse valor inserido pelo sistema econômico, abstraído do ato humano, subjetivo psíquico e imoral – porque não realizado voluntária e ou conscientemente. Matam nove por minuto.

Veículo da destruição de vidas, carreado pela manifestação liberada de incentivo às práticas anti-sociais, a propaganda do cigarro exige ser contida. A legitimação dessa atitude encontramos nos pressupostos da Razão, lançada na França há mais de dois séculos com os filósofos iluministas, semeadores da Revolução Francesa – avanço divisor de águas da história humana. Como Jean-Jacques Rousseau, o autor do Contrato Social. Nele, as pessoas estabelecem seus limites.

Para Rousseau, na sociedade primitiva o homem vivia em estado de natureza, sem controle ou leis. Isso proporcionava amplos direitos ao indivíduo, mas liberava aos demais a invasão deles, restringindo-os. Na sociedade organizada, por razões de auto-preservação, era preciso instituir um contrato social. Em que o homem perdia a liberdade natural, mas ganhava a liberdade civil - delimitando os espaços da liberdade de cada um, para que ela possa ser exercida.

Em nossa sociedade, construída sob a égide do contrato ou pacto social, os direitos de liberdade são relativos - limitados e condicionados pelo estado, em nome de seus representados -, que deve proteger e garantir a vida e seu exercício.

Pedra angular da democracia, como a definiu Aristóteles, é positivo o direito à liberdade enquanto faculdade individual de autodeterminação, mas irracional quando permite a aniquilação do outro. Quando a liberdade é atacada pelo estímulo aos valores negativos - como ao uso do tabaco, entre outras prazeres letais -, como valorizam hedonistas qualitativos como John Stuart Mill.

Princípio e fim da democracia, a liberdade traz o ônus das limitações. É negativa quando depende da abstenção do estado. Não intervindo, por exemplo, nas manifestações do pensamento, garantindo-se, por decorrência, o seu exercício.

Ela é absoluta, sim, mas sua manifestação é ato exterior, que entra no mundo jurídico. E, portanto, está sujeita à função disciplinadora do estado, do qual exige-se a proteção coletiva - que não pode eliminar sua essência.

Mas há plenas condições de identificar e separar a livre manifestação e o implante de idéias e hábitos lucrativos para multinacionais impessoais, sociedades anônimas, na razão democrática da sociedade organizada. Para Pontes de Miranda, liberdade absoluta supõe a unicidade do ser livre. E nessa perspectiva, nem Deus seria livre, porque criou as leis do universo, denotando sua relatividade social.

Na sociedade moderna, com o desenvolvimento de canais de comunicação poderosos e capazes de dirigir hábitos, culturas e processos sociais sob o controle de pequenos grupos - através da televisão, do rádio, do cinema, dos patrocínios esportivos, da pressão psicológica constante e perseverante sobre os cidadãos -, torpedeia-se o livre pensar. Condicionam-se ações, corrompe-se e degrada-se a sociedade com um prazer não moral, porque de conseqüências más.

Expoente liberal, John Locke demonstrou que o estado tem por finalidade defender os direitos humanos - não intervindo na ordem social senão para regulamentar as relações externas da vida do homem em sociedade. Para ele, o homem permanece com o seu direito natural, cumprindo ao estado garantir-lhes o exercício.

Locke, como Spinoza, refuta a concepção de Hobbes do contratualismo, para quem ao estado de natureza original contrapunha-se o estado de guerra. Racionalizando-o, afirmando sua razão de que a sociedade é útil. Os homens não transferiram ao estado sua liberdade de pensar, que continua livre. Nem ao seu estado-leviatã de monarcas - nem às forças de mercado, observe-se, capazes de ordenar seu pensamento. O homem é racional e criativo.

Montesquieu, no mesmo sentido da razão, argumenta que a liberdade não consiste em fazer o que se quer. Nem admitindo sua eliminação, nem advogando ser privilégio absoluto de poucos por razões divinas, como o que garantia o poder aos reis no absolutismo. Subordina a liberdade à lei, em um raciocínio claro : se um cidadão fosse livre para fazer o que a lei proíbe, já não o seria, pois outros teriam também poder sobre ele. O que traz inerente a igualdade de direitos, que conquistaria o mundo, instituindo o direito comum. Logo, a lei disciplina e garante a liberdade.

A Constituição Francesa de 1791 dizia que liberdade “...consiste em fazer tudo que não prejudique a outrem”, conceito reafirmado pela Constituição girondina de 1793. Que vai dar no dito popular a liberdade de cada um começa onde termina a liberdade do outro, conhecida em todos os rincões. A liberdade e a vida, ressalte-se o patrimônio maior, em que não se pode admitir tergiversações.

A propaganda de cigarros, banida de 27 países, 5 deles da União Européia, que mata 80 mil por ano no Brasil, representa a negação da ordem social e do papel do estado – que a permitindo deixa degradar seu corpo social e descumpre seu compromisso de protegê-lo.

A admissão da preconização de um hábito que mata 50% dos consumidores e que gera o dobro de despesas com a saúde - e a quebra da produtividade de suas vítimas com os impostos que produz -, é autofágica. A indústria da nicotina movimenta bilhões, mas é o único produto no mundo que tem uma relação custo-benefício negativo para a sociedade.

Como falar em liberdade para o cigarro, quando ele é a antítese? Os prejuízos sociais decorrentes do ato de fumar, os cânceres e efizemas pulmonares, as úlceras produzidas, gargantas aniquiladas em série pelo hábito cigarreiro que não canta são gigantescos.

Quem lucra com isso? Como admitir esta lógica liberal da produtividade? Só se, dissimuladamente, no processo de exclusão das massas improdutivas e excedentes, adotarem Malthus – o inglês que no fim do século XVIII, propôs superar a insuficiência de alimentos com projetos de ampliação das taxas de mortalidade. Este é mais eficiente.

No cigarro existem 50 substâncias cancerígenas e 4 mil substâncias químicas deletérias. Sua propaganda pela TV, dentro dos lares, atinge indiscriminadamente homens, mulheres, adolescentes e crianças, plantando ilusões de sucesso. Admitir lucro social dessa atividade econômica é inexplicável, fruto de poderosos lobies. Cerca de 90% dos iniciantes tem menos de 18 anos, convencidos pela propaganda.

A liberdade de propaganda de venenos como cigarros, ao mesmo tempo em que se se despendem volumosos recursos na repressão às drogas ilícitas, é irracional. Drogas não só aquelas assim definidas pela moral vigente: existe a ética, sua ciência. Defini-las como mal não é um problema moral/particular, mas geral/ético. É social o interesse dessa restrição, em tempos de avanço, da descoberta do seqüenciamento do genoma, decifrando o código genético humano.

Para Hegel, liberdade é a necessidade compreendida, o conhecimento da necessidade. Não é só teoria, como para Spinosa, mas história – o conhecimento histórico da necessidade. Que não implica em escravizar-se a ela conscientemente, mas a determiná-la. Cabe ao homem liberdade moral, de ação e decisão, com consciência de causa.

Necessidade coisificada, fetiche, induzir ao fumo é axiologicamente negativo. Não é a liberdade um conceito fictício, abstrato e metafísico, mas vital na existência de bilhões de pessoas. Como na máxima de Louis Blanc, de que a liberdade não é só direito, mas poder – que exige seja exercido com regras, para exercício coletivo.

No escombro das teorias liberais, chegaram as teses de direito social, subordinadas ao direito da sociedade e não apenas do indivíduo, admitindo-se a intervenção do estado nessa perspectiva. Cresceu a compreensão de um direito coletivo: a liberdade não pode mais se tornar apenas privilégio dos mais fortes – favorecendo o predomínio do poder econômico e a escravização do homem pelo homem.

Cabe ao estado intervir no equilíbrio entre liberdade e autoridade. Mas modernamente, suas prerrogativas são usurpadas por atores sociais poderosos, que escapam do controle democrático e atuam no cenário do chamado poder econômico. Conspurcando acintosa e impunemente, na fumaça falaciosa e venenosa da globalização, as consciências. Tal como os ingleses faziam com a China no século passado, enchendo-a de ópio. Quando os chineses protestaram, tomaram-lhe Hong-Kong.

Nesse processo, não é ousadia dizer que este avanço - contra o mundialmente poderoso setor industrial - tem um ampliado significado ideológico. Liberdade é ousar criar e transformar, não escravizar-se. É o domínio humano sobre a natureza e sobre a própria natureza. A propaganda fumígera é inadmissível como a tortura, proibi-la um ato de defesa social. Devemos argüi-la real e suprema, no império da sociedade humana.

LIBERDADE DE VIVER

FIM

Um comentário:

Anônimo disse...

Belo texto, parabéns.Sou tabagista há dezenas de anos, mas concordo plenamente.
Flávio Carmo Gentil