terça-feira, 8 de setembro de 2009

MAURICE, POR PAULO MATOS, EM DEPOIMENTO AO MUSEU DE IMAGEM E SOM DE SANTOS - MISS

MAURICE, POR PAULO MATOS, EM DEPOIMENTO AO MUSEU DE IMAGEM E SOM DE SANTOS - MISS
Paula Matos (*)

1997 – 2009: 12 ANOS SEM MAURICE. Quem pode esquecer?



Na nossa intenção de resgatar a memória recente desta cidade , assim como sua relação com o cinema não poderia estar ausente o nome do mais santista do que francês Maurice Armand Legeard, desaparecido em 25 de Maio de 1997. Personagem das libações alcoólicas, mas de extrema lucidez, com quem tantos conviveram nas sessões de arte do Clube de Cinema e da Cinemateca de Santos por mais de meio século. Ídolo da esquerda, questionava até os dogmas que acreditávamos, como os do socialismo autoritário.


“Pensar dói?”, perguntava Maurice, ácido e provocador. Nas suas sessões, não era preciso saber o filme para ir assistir. Na fila, Paulo distribuía muito discretamente o clandestino jornal “Resistência”, da ALN. Dia destes, presenciei o depoimento de Paulo Matos ao Museu de Imagem e Som de Santos sobre o período histórico de 1968. E ao falar de Maurice e dos heróis de 68 que morreram torturados, Paulo chorou. Não acreditava na sua finitude e na dos heróis, coisas de juventude. Era Paulo Matos, Paulinho, hoje jornalista, historiador pós-graduado e bacharel em Direito.


No cinema, Malle, Truffaut, Polansky, Resnais e Milos Forman retiram seus filmes do Festival de Cannes, em apoio ao movimento estudantil que toma Paris. Jean Luc Godard, Sartre, Gravas e Russel, Cohn Bendit e Bertolucci, entre outros, ajudaram a luta armada no Brasil, em sua fase de organização, doando fundos. Cantávamos a Marselheise após a vitória no grêmio do Colégio Canadá. Era 1968. (do conto de Paulo Matos, “1968 em flashback”)


Cinéfilo inveterado, alcoolista de profundas tosses freqüentes e que o levaram, habitante da Ponderosa e subversivo tolerado na época repressiva do final dos anos 60 e início dos anos 70, Maurice, intelectual da esquerda,era genial. São suas as citações: “Não tem velho e não tem novo, não tem homem ou mulher nem gordo nem magro, nem colorido ou preto e branco. Só tem dois tipos de gente o burro e o inteligente, filme bom e filme ruim”. No Dia do Trabalho em plena Ditadura trazia “Spartacus”, o filme da rebelião dos escravos na Roma antiga.


Maurice foi júri do Festival do Cinema Brasileiro em Santos em 1970, 99% de chanchadas eróticas financiadas pela EMBRAFILME. Tinha também o genial Sérgio Ricardo com “Juliana do amor perdido”, que ele brigou para fazer ganhar. Nesta época a vida era na Ponderosa, um restaurante do Gonzaga do Demétrio em que habitava a esquerda e onde iam espionar os discretos agentes do DOPS, a polícia política. “De lá saiamos para as ações”, diz Matos, personagem dosa tempos do “Chapinha” Maurice, de seus conhaques e “canjibrinas” da madrugada, “mas sempre inteligente“.


1968: barricadas fecham as ruas, mas abrem o caminho.É maio, é Paris.


Maurice convivia na Ponderosa junto com um monte de gente interessante da dança, do teatro, da música, da poesia, do jornalismo, da música erudita e popular, mas, principalmente, da contestação e da ação revolucionária para quem, recorda, tudo o mais era meio para atingir o socialismo. “Foi um período histórico marcante e inesquecível de sonhos de revolução e solidariedade”, lembra. “Na Ponderosa começava e terminava o mundo”, sugere Matos. No sábado a meia-noite, depois da sexta-feira santa, o anticlerical Maurice trazia o filme de Pasolini, o “Evangelho segundo São Mateus”.


POR UMA PRAÇA PARA MAURICE


“Agora, diz o biógrafo, buscamos o apoio para perpetuar Maurice no Gonzaga. Pensamos na esquina da Avenida Marechal Deodoro com a Rua Euclides da Cunha, mas não deu certo. “Iríamos fazer lá a Praça Maurice Legeard e, na inauguração, uma sessão ao ar livre - como no filme que conta uma história semelhante a de Maurice, “Cinema Paradiso” - uma homenagem ao cinema a este iluminista da linguagem da arte dos fotogramas”, depõe Matos. Foi Matos que escreveu a matéria do final de Maurice, que ele pediu para ler antes de morrer. “E aprovou”, testemunha o autor.


Matos e amigos de Maurice como sua filha Patrícia Legeard, Argemiro Antunes, o escultor Luiz Garcia Jorge, o pintor Juraci Silveira, Carlos Brizola (que mantém uma banca-sebo na Rua Bahia com cenários de Maurice, em arte de Miro), Julio Bittencourt, o pai, Narciso de Andrade (já falecido), Helver Savietto e Francisco Teles Barreto, o Teles dos Festivais Musicais dos anos 70, formaram em 2007 uma comissão para criar a Praça para Maurice. “O escultor Luiz Garcia Jorge, companheiro de época, já ofereceu a placa de aço com a imagem deste intelectual polêmico do cinema para que se instale uma Praça com o nome de Maurice”.


Na Ponderosa estavam, segundo Matos, desde os comunistas aos católicos progressistas, fizemos aqui o movimento “Ação, Justiça e Paz” de D. Helder Câmara, o arcebispo socialista e benemérito de Olinda e Recife chamado de “Bispo de Passeata” nas crônicas de Nelson Rodrigues. Chamavam este francês de “Morrice”, o filho de Morricette e Emíle, figura magistral, bebedor diário. E Paulinho foi seu tiete, admirador, companheiro, biógrafo e aliado incondicional, funcionário do Clube de Cinema e aprendiz na sétima arte e em todas as artes.


“Introdutor da linguagem maior da sétima arte, parte da ressurreição intelectual do pós-guerra, contemporâneo das maiores expressões da cidade na atividade cultural, nós pedimos uma Praça para Maurice – no Gonzaga”, diz o jornalista, “ele que formou gerações com seus filmes políticos e históricos”, comentou o entrevistado. Que foi um inseparável companheiro diário das noites e madrugadas da esquerda santista de Maurice, reunida no mesmo Gonzaga que fora do “Lanches Regina”, na Praça Independência, como Plínio Marcos e tantos artistas e políticos locais – nesta fase na Ponderosa. Maurice foi fundador em Santos de um dos primeiros cines-clube brasileiros em 1948, como se registra no histórico destas entidades no Brasil de Lunardelli - então importante pólo disseminador de educação, cultura e informação.


Matos encontrou, em 1968 este Paulo Francis local, o intelectual questionador e polêmico Maurice Armand Marius Legeard anarquista e questionador da “verdade” dos comunistas de então. Mas ele esteve à frente da passeata de cinco de julho de 1968, em repúdio a assassinato do estudante de 16 anos Edson Luiz de Lima Souto no Rio de janeiro, no restaurante “Calabouço”.

MAURICE MILITANTE DE 48. E DE 68.

Paris, 68: Amai-vos uns em cima dos outros Maurice, contestado da direita e da esquerda a qual se alinhava, estava na histórica primeira passeata pós-64 junto com Gastone Righi, Francisco Prado, Antonio Francisco Campos, Corte Real, Nelson Mattos e outros intelectuais, políticos e artistas da cidade. Foi organizada pelo Centro dos Estudantes de Santos e entidades estudantis. Na manchete dos jornais no dia: “Costa (o então ditador militar Costa e Silva) proíbe as passeatas em todo o país”. Mas Santos fez.

Argemiro Antunes, o Miro, desenhista e sucessor de Maurice que o acompanhou por toda a vida e fez os cartazes dos filmes das “sessões vampiro”, apelido de mau-gosto para as sessões da meia-noite, escreveu uma história em quadrinhos sobre o francês genial. Antonio Francisco Campos, o dono da rede de cinemas, sabia da importância da cultura cinematográfica e cedia a sala para sua expansão, que se fez por muito tempo. Foi Maurice o criador da “sessão da meia-noite”, que se expandiu pelo país em época de grande sucesso.

“Rapazote, funcionário do Expresso Luxo, Maurice se integrou ao grupo que, em 16 de outubro de 1948, havia fundado o Clube de Cinema de Santos. Segundo Maurice, uma das primeiras expressões do movimento cineclubista brasileiro, logo após o surgimento de entidade similar no Rio de Janeiro - integrado pelo poeta e diplomata Vinícius de Moraes. Secretário do cônsul francês e funcionário da Associação Franco-Brasileira, amante e profissional da fotografia, no entrosamento com a intelectualidade que renascia, resultaria o introdutor cultural da nova linguagem”, lembra Matos.

“A memória de Maurice está nas sessões de arte do Cine Posto 4 criado em 1991, instalado quando ainda era vivo, cultivando o cinema de arte mas que levaria o nome de um crítico de cinema formado em suas sessões, Rubens Ewald Filho. Mas Maurice achava modesto demais o cinema, pequeno e menor do que a onda do Cinema de Arte que ele criara desde a fundação do Clube de Cinema de Santos, diz Paulo, em 16 de outubro de 1948”.

PAULO CONTA MAURICE


“Maurice, que durante quase meio século promoveu a cultura cinematográfica na cidade – para a que trouxe o que de melhor a sétima arte construiu desde os irmãos Lumiére -, nasceu nos arredores de Paris em nove de abril de 1925 e veio ainda pequeno para Santos, com seis anos. Amigo e companheiro de Patrícia Galvão e da intelectualidade que renascia no pós-guerra, foi um dos motores desse renascimento intelectual – livre-pensador e combatente social”.


O filho de Mauricette e Emile era, como Patrícia Galvão, o militante do ideal, como era chamada a atriz e revolucionária dos anos 40 – sobre quem ele debruçou-se ao caixão e o fez desabar. Maurice educou gerações com o melhor cinema, colocado à margem pela estrutura comercial da área – o chamado cinema de arte – tendo sido o criador no Brasil da sessão da meia-noite, no cine Roxy.


Campos, o cap dos cinemas, dono da rede, sabia da importância da cultura cinematográfica. Maurice era o rei da intelectualidade nascente de então, referencial libertário.


“Maurice, o Gurú dos Gurís, como foi chamado no curta-metragem rodado nos anos 80, foi companheiro de Roldão Mendes Rosa (o sócio número 1 do CCS), na equipe de Rubens de Ulhoa Cintra, Gastão Frazão, Nelson e Armando Sá, entre outros. Contemporâneo de Plínio Marcos e do compositor Gilberto Mendes, a partir de 1954 passaria a dirigir o Clube de Cinema sozinho, morando junto, o que fez até os anos 80 – quando os planos de abertura não deram certo e Maurice se afastaria para fundar a Cinemateca de Santos – em janeiro de 1981”, relata Matos.


O Clube em breve desapareceria; restaria, ativa, a Cinemateca. Tempos de mudanças múltiplas, tempos difíceis, do apartamento na Ana Costa ao SESC, uma sede na Rua Pará – em que ele exibia filmes para as crianças, como o Sinfonia Amazônica -, e Cadeia Velha, até a sede no bairro do Mercado, na Rua Paulo Gonçalves 22 – dirigida por sua filha Patrícia Legeard, a Zuzuca - mantida pela Prefeitura, em uma rua sem saída. Hoje existe uma sede da Cinemateca no bairro do Campo Grande, mantida pela Prefeitura e (bem preservada por Patrícia e Renato. E Tiago, o neto de Maurice.


CLUBE DE CINEMA DE SANTOS, 20 ANOS EM 1968.SOU MARXISTA DA TENDÊNCIA GROUXO, ESCREVE PARIS.


Diz ainda o biógrafo de Maurice que “nos tempos que estive no Clube, eram até cinco sessões semanais em cinemas e entidades, com sua máquina de 16 milímetros que ele mesmo operava. Uma de suas últimas grandes realizações foi a antologia do cinema no Sindipetro, inaugurada massiva e festivamente com “Os Companheiros”, de Monicceli, que terminava ao som da “Internacional Socialista”. Depois, as pessoas desapareceram. Eram outros os tempos, que achei possível repetir. Mas como escreveu Marx...”


“Na sede do Clube de Cinema, hoje na Cinemateca, ilustra o jornalista, um acervo de quase mil filmes de arte em vídeo, livros, arquivos jornalísticos de atores, diretores, técnicos, coletados diariamente durante décadas e cuidadosamente fichados. Hoje acrescidos de milhares de CDs com os filmes mais importantes da história do cinema. Tem também e desenhos do artista-irmão da caminhada cinematográfica nas últimas quatro décadas, Miro – quem elaborava os cartazes dos filmes apresentados nas sessões em obras marcantes”, depõe o amigo.


Tempo do Clube de Arte, cronista do jornal “Hora Santista”, recorda Matos que Maurice recebeu mensagem de Charles Chaplin no final dos anos 60, através do cartunista Dino de “A Tribuna”, que fora visitar o mestre do cinema. “Era um fio condutor de concepções libertárias, que abriu novas etapas no pensamento de tantas gerações, agente do progresso e da civilização do amanhã, era o chapinha das madrugadas - que nunca mais serão as mesmas sem a força de sua contradição, lançada sempre em busca da lucidez”, recompõe emocionado o jornalista.


Paris, 68: Dormindo se trabalha melhor. Formem comitês de sonhos.


“Nessas madrugadas, diz Matos, ele ridicularizou solenes personalidades, irritando os que assumiam sua mediocridade. Que Maurice descobria com seu olhar felino, azul e multicor, como o personagem de Um dia um gato, o filme checo da Primavera de Praga. Estação que, ainda que sem ele, continuaremos a buscar, apesar deste outono sombrio da informação massificada e desqualificada.


Maurice recebeu o título de Cidadão Santista da então vereadora Telma de Souza, que seria prefeita da cidade (1989-1992). Ilustra ainda o biógrafo mauriceano que “sua mensagem não se incendeia como a película de Persona, o filme de Bergmann, lembra o então menino que ingressava na esquerda, mas permanece nas sínteses devassáveis, frondosas e acessíveis e sensíveis deste menestrel dos celulóides”. Seja jovem, cale a boca. 1968 disse não.


“Ousado e luminoso como Weles, lembra Matos, Maurice não tergiversou como Kane, perenizando seu `rosebud´. E nos traz o poema que o amigo e poeta Narciso de Andrade fez em sua homenagem. Esse tigre feroz das madrugadas – como o descreveu o poeta, não briga mais, com diz seu poema:


Tigre feroz das madrugadas, Maurice não briga mais. Podeis passar levianos, com vossos passos melífluos, Maurice não briga mais.
A cidade está tranqüila, na Conde D’Eu e no Outeiro, nas catacumbas do Itararé, nos antros podres do Gonzaga. Maurice não briga mais. Podeis acordar mais tarde, habitantes da grande noite, damas das vielas e das esquinas, frágeis infantes das calçadas, Maurice não briga mais.


Este é o recado que traz o vento frio da madrugada, da madrugada rubra do cais - Maurice não briga mais. Catraieiros do mercado, que levais vossas catraias, ao outro lado do estuário, sem temor da cerração, Maurice não briga mais. Proprietários dos botecos, deixais vossas portas abertas, servi vosso conhaque nas mesas, liberai o papo franco pelas manobras do álcool, Maurice não briga mais. Kurosawa, Bergmann, Fellini, que tristeza, que tristeza, Maurice não briga mais...


A inteligência caminha mais do que o coração, mas não vai tão longe. (Paris, 68)

Um comentário:

Unknown disse...

Flávio Carmo Gentil disse...
O nome Maurice foi repetido inúmeras vezes no seu texto, mas devo lembrar que ele fazia questão de ser chamado Maurice Legeard, e adorava quando alguém o chamava apenas por Legeard. Certa vez ele se recusou a subir no palco do Teatro dos Metalúrgicos de Santos, para integrar um grupo de jurados, simplesmente porque o apresentador não mencionou o seu nome completo.
Depois deu uma sonora gargalhada e acabou participando do evento, fazendo um belíssimo discurso que tinha por tema uma comparação entre o teatro e o cinema. Legeard era assim, totalmente controvertido e irreverente.