domingo, 27 de setembro de 2009

INQUISIÇÃO À BEIRA-MAR

INQUISIÇÃO À BEIRA-MAR

Paulo Matos (*)


Ao final do século XX, um jornalista foi condenado pela Lei de Imprensa, em ação movida pela Igreja Católica (Processo Penal 66 / 99 da Sexta Vara Criminal de Santos), após recurso em todas as instâncias e que seguiu até o Supremo Tribunal Federal e Supremo Tribunal de Justiça.


Tudo isso ocorreu por eu ter escrito, no jornal “Diário do Litoral”, em 22 de maio de 1999 e na revista “Destaque”, em março de 1999, - a matéria “Andréa, a princesa árabe”. Denunciando que a Igreja Católica estava usando métodos para expulsar da moradia a jovem Andréa Mahtuk, que residia no local desde pequena com sua mãe, a época dos fatos já falecida.


A Igreja queria aproveitar financeiramente o imóvel que recebera como herança. E a moradora estava lá. Embora filha da usufrutuária que falecera, não era herdeira legal, mas morava lá. É que herdeiro de usufrutuário não herda o usufruto. Mediante testemunhas cuidadosamente providenciadas, morrendo no leito e já sem condições de assinar, a Igreja Católica levou a herança da tia de Andréa. A mãe, irmã dela, ficou lá. Morreu e deixou Andréa, tocada pra fora.


Fui condenado após longa batalha jurídica que chegou no STF e no STJ a três meses de limitação de fim de semana e multa. Mas valeu a pena: a vítima recebeu indenização para se mudar do local e, no espaço ocioso que a Cúria Diocesana ocupara, antes uma praça pública - fato que denunciei -, doze anos depois começaria finalmente a construção de uma creche para as miseráveis famílias do bairro tão necessitado. Foi o que a reportagem conquistou.


O título da reportagem evocava as perseguições dos cristãos contra os árabes nas Cruzadas, já que o clima de guerra contra a jovem residente em uma valorizada área em que estava a casa no Gonzaga era patente e sua descendência era árabe.


Como paralelo, cito as ações da Igreja Católica na Inquisição e ao fato da Igreja ter reservado área pública, atrás do Fórum da praça José Bonifácio, em Santos, centro, e, ao invés de usá-la para construir uma creche, como tinha alegado no pedido, usava só para guardar ali o Mitsubishi do Padre. A contribuição do Papa Pio XIIU para o genocídio nazista também foi lembrada no artigo.


Por isso fui processado e condenado – e só um órgão nacional de imprensa, o DCI (Diário do Comércio e Indústria) reportou o episódio, na edição de 28 de agosto de 2001, além do pequeno jornal “Travessia” (agosto de 2000), local e o jornal Diário do Litoral, este em fevereiro de 2000.


Em dezembro de 1999 escrevi um a matéria sobre o fato na revista “Destaque”, intitulada “É natal: em Santos, a Inquisição à beira-mar”, ilustrada por um quadro clássico de Masaccio, renascentista italiano, retratando a crucificação de São Pedro de cabeça para baixo – um retrato da situação.


A inicial foi impetrada pela Mitra Diocesana de Santos e o Padre Antonio Baldan em 15 de julho de 1999, pouco antes do prazo final, através dos advogados Aldo Rodrigues de Souza e Luciano Pereira de Souza, pedindo a condenação por delitos de imprensa, Artigo 21 da Lei 5.250/67, a Lei de Imprensa.


A ação foi julgada procedente em 26 de julho de 2000 pela juíza da 6ª Vara Criminal, Silvana Amneris Rolo Pereira Borges e a primeira audiência foi em 8 de fevereiro desse ano. O advogado Aldo dos Santos Pinto pediu, inicialmente, o trancamento da ação pelo Artigo 44 da Lei de Imprensa.


O recurso em sentido estrito 1.197.435/7 foi denegado pelo juiz Marco Nahun em 11 de abril de 2000Com a decisão condenatória, o acórdão (decisão) do recurso ao TECRIM - Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, assinado pelo juiz Marco Nahun em 29 de maio de 2001, repetiu a decisão, a partir do que se procedeu aos recursos especial e extraordinário junto ao STF e STJ.


O Recurso Especial, baseado na tese de afronta à lei federal, (nº. 1249777 / 1-1) fundamentou-se no Artigo 105, III, “a” e “c” da Constituição federal por alegação de ofensa ao Artigo 27, VIII e IX da Lei 5.250/67 e ao Artigo 41 do Código de Processo Penal.


O Recurso Extraordinário ao STJ, baseado no Artigo 102, III, “a” da Constituição federal, sob alegação de contrariedade aos Artigos 5º, IV, LIV e LV, e 220 da Magna Carta. Contra a inadmissão do Recurso Especial foi interposto o Agravo de Instrumento nº. 441.912-SP, que não foi reconhecido pelo Ministro Hamilton Carvalhido, relator. O habeas-corpus foi denegado em 10 de setembro de 2002 pelo presidente da quarta câmara do TECRIM, juiz Devienne Ferraz.


Iniciada com um trecho de um texto do jovem Marx, a defesa em segunda instância no TACRIM – Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo – foi o recurso do advogado Aldo dos Santos Pinto, pedindo a reforma da sentença imposta pela Sexta Vara Criminal local, em primeira instância.


Na peça jurídica de 18 folhas, a defesa da liberdade de imprensa encabeça o elenco de razões pelas quais o jurista pleiteia a anulação da sentença e a absolvição do jornalista – citando o artigo de Karl Marx publicado no jornal alemão Rhemische Rzeitung sobre o direito de informação, em maio de 1842.


Um ano após iniciado, em julho de 1999, o recurso foi contra a decisão prolatada no processo de “difamação”, número 66/99, pela juíza Silvana Amneris Rôlo Pereira Borges, condenando o jornalista pelo artigo 21 da lei de imprensa - 5.250, de 9/2/67.


Pela condenação final paguei 2,33 salários mínimos de multa e fiquei durante 3 meses e 15 dias, durante 5 horas nos sábados e domingos, submetido à privação de direitos, pena imposta pela Vara de Execuções Criminais, o que na verdade me custou a posição no Tribunal do Júri, em que era membro. Condenado, nunca mais. O recurso teve efeito suspensivo. Segundo consta dos autos, “Matos defendeu Andréa despejada de sua casa por força alienígena ao direito”. O processo conteve 5 acusações de difamação.


A REPORTAGEM


A ação se deveu a um artigo de jornal intitulado “Andréa, a princesa árabe”, publicado em março de 1997 e que reportava o episódio vivido por Andréa Mahtuk, 27. Moradora de uma casa no Gonzaga, bairro turístico central de Santos, estava há quatro anos resistindo contra sua expulsão do imóvel em que residia e que a igreja era futura herdeira. Mas embora herdeira presumida, a Igreja ainda não tinha a posse, tinha a posse “nua”. Mas já ordenara a demolição da casa e o corte da água e luz, ainda com a jovem residindo nela.

Imediatamente após o pagamento da indenização a que a Igreja se recusava a saldar antes do escândalo, a casa foi demolida e aberto um estacionamento.A ação foi movida através da pessoa jurídica da Igreja na cidade, a Mitra Diocesana, junto com o ex-pároco da Catedral, Antonio Baldan. A igreja foi representada pelo advogado Aldo de Souza, que é professor na Faculdade Católica de Direito, em que o réu estudava.


Indiciado na Lei de Segurança Nacional em 1984, quando membro da coordenação da Associação dos Usuários do Transporte Coletivo, condenado, para custear o recurso ao Tribunal, ameacei fazer panfletagens e manifestações nas missas da Igreja Católica na cidade, pedindo apoio e solidariedade, o que afinal não foi feito.


O objetivo da reportagem foi o mesmo do propósito secular da igreja, de resgatar direitos e promover a justiça. A meta solidária foi atingida: foi paga a reivindicada indenização à moradora e locada uma nova moradia para ela. assim como o início das obras de um equipamento social coletivo atrás da catedral só vieram após a publicação do artigo. cercada por uma população carente, foram iniciadas obras no local depois de 13 anos da posse da área”.


Escrevi na época que os representantes da Igreja local que me acionaram “não tem nada em comum com o Papa João Paulo II “que perdoou o homem que tentou lhe tirar a vida”, tentando sensibilizar os autores. “No caso – emendei -, quem quase perde a vida foi a moradora atingida pela demolição”. Não foi oferecida ao réu a oportunidade de retratação, que segundo declarei, não faria: “prefiro a fogueira com a verdade, ser um Spinosa do que um Galileu, que abjurou”.


O processo teve diversas audiências com depoimentos das testemunhas e das partes, entre os quais vizinhos de Andréa e o vereador e líder do prefeito, Odair Gonzalez. Uma das cinco acusações do processo era que a reportagem deste autor acusava a Igreja de ter ocupado e murado uma área pública atrás da Catedral, na área central da cidade, sem lhe dar destinação social – “ocupada apenas para guardar carro de padre”.


A juíza aceitou que a Igreja, como locatária, tinha poderes para demolir a casa, inclusive com morador dentro, sem pedir imissão de posse. E que teria posse legítima do imóvel, “sem denotar que esta era uma posse nua, sem uso e fruto, pois que apesar da posse gradativa firmada no testamento, na medida da morte das usufrutuárias, apenas uma das três irmãs tinha falecido, a mãe de Andréa. como se vê, dois mil anos ainda significam alguma coisa.


Andréa


Santista e filha de pai libanês, Andréa é filha de Arlete, uma usufrutuária falecida e que morava no local desde pequena. O representante da igreja confirmou que foi autorizado o inicio da demolição e as testemunhas o fato de que ela sempre residiu na casa, desmentindo a alegação dele que o imóvel estava vazio. O que também foi comprovado por diversas correspondências, recebidas por Andréa naquele endereço nos últimos anos.


“Este episódio fará história”, disse este autor na época. Buscando a justiça e o direito que alcançou, o episódio fez paralelo com uma os tempos em que vigia o terror da inquisição. Começava assim a matéria: “Esta história tem jeito de fábula medieval, não ocorresse nos dias de hoje em Santos, litoral paulista.


Em uma casa acastelada e semi-destruída do início do século – um castelo? – se desenvolve um desses incríveis debates em torno da propriedade, esta cruel instituição. Lá, uma linda jovem de origem libanesa – princesa árabe ? – resiste heroicamente às tentativas de expulsão da casa em que mora desde criança”. Uma “fábula” que ressuscitou conceitos medievais.


Flagrante


Segundo meu advogado, o objetivo social da denúncia, motivada pela legítima defesa de outrem (Andréa) e o interesse dos carentes moradores do centro, descaracteriza a difamação, conforme a Lei de Imprensa e o Inciso 4 do Artigo V da Constituição de 1988.


Após a interposta a ação penal, o advogado encaminhou uma defesa prévia de doze páginas, sendo os autos enviados ao Ministério Público, que optou por aceitar o processo, tendo então sido impetrado recurso junto ao Tribunal de Alçada Criminal em São Paulo, pedindo o trancamento da ação - segundo o artigo 44, Parágrafo II, da Lei de Imprensa –, que denegou o pedido.


A casa, que foi demolida dias após a reportagem, para instalação de um estacionamento da UNIPARK, se localizava na área nobre do Gonzaga, na Avenida Marechal Deodoro 23, a 50 metros da praça independência. De arquitetura clássica, construída no início do século e adquirida na década de 20, foi uma das primeiras edificações no local. Nela residiu a então famosa costureira Germana Silva, tia da moradora, que viajava para a França freqüentemente e freqüentava o noticiário dos jornais. Foi um dos primeiros casarões do centro turístico de Santos.


O testamento foi feito no leito de morte de Dona Germana, cega e com câncer, diante de testemunhas providenciadas pela Igreja, há quase 40 anos, em 11 de março de 1963. Uma das usufrutuárias era a mãe de Andréa (e duas irmãs), que residiu no local até o fim da vida, em 1991 – deixando a filha. Como segundo as leis o usufruto não é hereditário, a Igreja Católica acreditava-se dona do bem e em condições de seu usufruto, mas havia a filha da usufrutuária falecida residindo no local.


A sentença


A empresa que locou a área demoliu a casa e fez um estacionamento pagou a indenização e prestações mensais a Andréa - de forma que ela pudesse locar um apartamento, segundo foi acertado para sua saída do local. Nesse acordo triangular, assinado pela Igreja - e ao contrário do que foi declarado no processo, feito apenas após a publicação da matéria - o antigo locador permaneceu pagando as parcelas para Andréa mesmo após a sua saída do local, o que enunciava acordo anterior.


Esse acordo condicionava à retirada a ação de usucapião que Andréa sustentava, pois residia na casa desde pequena. Apesar do evidente o interesse da Igreja, a herdeira, nesta retirada do processo de usucapião, na sentença a juíza não entendeu assim. para ela, a igreja não influiu: “nenhum dos querelantes concorreu para tal desfecho”, escreveu.


E qual seria o interesse do locatário nessa atitude, se ele pagaria aluguel fosse qual fosse o proprietário? Seria este mesmo um fato jurídico irrelevante, como escreveu a juíza na sentença? Existiram outras diversas contradições legais na sentença. A meritíssima juíza local aceitou também a inclusão de palavras ao talante do acusador na peça inicial, agregadas às escritas pelo réu como sendo apostas por ele – inclusive repetindo o texto (modificado) na sentença, com palavras que não existem no texto original.


No ímpeto da urgente solução do problema, que ameaçava a vida de Andréa, utilizei “terminologia expressiva”, tornada “afrontosa”, como diz a sentença, pelas modificações inseridas. Mas denota que a ação teve objetivo social, o que descaracteriza a difamação, reza a lei de imprensa.


Na acusação relativa ao fato de que o jornalista acusa a Igreja por ter cercado a área atrás da catedral por 13 anos, privando-a do uso público só para guardar carro de padre – a antiga praça D. Idílio José Soares, atrás do fórum -, a juíza atribui à demora na construção do equipamento social e coletivo pela “falta de recursos.” Sem atentar para os balancetes da fundação D. David, responsável pelas obras sociais da igreja, que continham e contem verbas de sobra, levantou o Dr. Aldo dos Santos Pinto na ocasião.


Um povo sem praça


Ainda na análise da sentença, a propósito da área atrás da catedral, a juíza diz que a igreja “não se apossou” do bem. “Quer dizer, para ela a igreja não tomou posse, segundo qualquer dicionário. Então como se explica o muro? Diz ainda que o espaço não é público - o que de fato deixou de ser após o muro católico.


Para a Igreja, isso não significa exclusão de posse de da comunidade, desconhecendo a densa freqüência popular à antiga praça, que homenageava D. Idílio - antigo bispo de Santos, criador da mantenedora São Leopoldo e da hoje denominada Universidade Católica de Santos. “Hoje existe apenas uma placa sem área e um povo sem praça”, registrei na ocasião.


Na sentença, a juíza adjetivou por sua conta, como fez a Igreja, o termo ‘apossou’, utilizado para descrever o processo de doação pela Prefeitura e posterior muramento do espaço, considerou o termo de ‘criminoso’, atentando contra os dicionários que o consideram sinônimo de ‘tomou posse’. A juíza considerou também, equivocada e inexplicavelmente, sem que nada indicasse ou demonstrasse o fato, que o quarto ocupado pela jovem era dissociado da casa demolida pela igreja.


Na verdade, o quarto era localizado centralmente em uma única construção no terreno sob um único teto, destelhado na mesma ação para desocupar o imóvel. E concluiu a juíza que a igreja demolira apenas a “sua” parte – parte que não tinha e nem poderia, lembrei na época -, que a retirada do telhado do imóvel não interferia no cômodo ocupado, “quando caminhava para causar seu desabamento, de conseqüências imprevisíveis”, escrevi.


Ainda que mendigos tivesse ocupado o imóvel uma semana antes, não tendo sido feita a ‘turbação necessária’ no dia seguinte – o uso da força, permitida neste caso para retirar os invasores, desde que imediatamente após o ato -, o imóvel não poderia ser demolido com ocupantes dentro”, lembrei.


Frisei ainda que o episódio faz lembrar o descrito na história da Sociedade Humanitária, entidade santista e uma das mais antigas associações mutualistas do país, de atendimento aos caixeiros de loja que não tinham assistência médica ou social nos idos de 1879, da sua fundação.


Quando a Humanitária tinha um imóvel, no início do século, que restava sem demolir em uma futura praça já limpa de construções, diante da reclamação de um vereador quanto ao fato, outro argumentou que lá ficava a única e então rara biblioteca, no primeiro andar. “Então porque não demolir o térreo?”, inquiriu o edil.


Argumentou a Igreja e acatou a juíza que a igreja era locadora da parte pertencente às usufrutuárias remanescentes - embora não exista no processo nenhum contrato de locação ou recibo, portanto nenhuma comprovação da posse “legítima”. O episódio, mais do que custou em aborrecimentos e despesas, impedimentos e limitações, foi nobre no sentido que o inspirou. Orgulho-me desta reportagem. Os árabes continuam vítimas, como Andréa.



Paulo Matos
Jornalista, Historiador pós-graduado e Bacharel em Direito
E-mail: jornalistapaulomatos@yahoo.com.br
Twitter: http://twitter.com/jorpaulomatos
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