A NÓS A LIBERDADE
Uma história real de 1997
Paulo Matos
Ela é ampla, indefinível por sua extensão, usual na sua prática. Sem ela inexistimos como seres vivos. Fugaz, estado de espírito, concreta, fundamental, é o mínimo de espaço individual que desfrutamos no universo pessoal, que é gigante em cada um. Perdemos quando pensamos ser invasora do alheio, vencemos quando a defendemos como conquista humana.
Somos, nós mesmos, um mundo mesclado de emoções, que tem nela substância de existência e o estímulo para viajar aos céus - também para mergulhar nos infernos da consciência ultrajada pelo seu não exercício voluntário. Acracia, alegria, anarquia, virtude com Buda, amor com Jesus, filosofia dos gregos, inspirou Spártacus e Zumbi, tomou a Bastilha. A onda libertária ultrapassa muralhas e cadafalsos em cavalgada, célere. Os poderosos não a querem como escolta, tropel que desperta.
Naquele dia, naquela noite na classe, convivendo com violenta gripe que me tirara a voz, ouvir a mestra vociferar contra um jornalzinho apócrifo, o “Anaconda”, que ridicularizava outra professora - e que circulava na Faculdade de Direito – me incomodava. Era a liberdade de expressão em jogo. Esta não tem significado aparente, a não ser para os lutaram por ela em tempos recentes, que sentiram sua falta do fundo do peito. Como na época em que o “Estadão” publicava receitas de bolo no lugar das notícias censuradas.
A liberdade tem múltiplas faces, depende sempre de nossa perspectiva, pela qual medimos sua amplitude. Fazer ou não, para muitos, é sua essência. Utilizá-la ao máximo é a senha de crescimento espiritual e coletivo: os homens se agigantam com ela, os povos atingem suas metas no seu gozo. O ser humano é pequeno quando está satisfeito, é menor quando se aperta o medo em seu peito, mas gigante quando junta o anseio ao pulmão, já diria a letra do mágico Taiguara. Reprimi-la sob o argumento de ordenar os caminhos a percorrer, por alguém fora de nós, é crime grave, gera dor – atentado, violência, homicídio e genocídio, quando praticado contra a sociedade.
Quando senti que o discurso da mestra se inclinava a caçar os anônimos autores, na mensagem que contaminava o conjunto dos alunos, que já se dispunham a dela participar, me exasperei. A submissão tem limites. Certo que o desejo dela era apenas de vingança, o dos estudantes de agradar a professora e obter a difícil nota. Mas aquilo me sugeria algo como o ovo da serpente, aquele que você vê no interior o perigo germinando. Não, não poderia voltar a ditadura e a censura a violência, a opressão. Não. E aquele era um sintoma.
Sua ausência aniquila vidas e sonhos. Há momentos em que a lei liberta e a liberdade oprime, mas quando seu significado é distorcido, confundida com liberalismo - que é a liberdade dos donos do dinheiro de exercer o poder decorrente para explorar e massacrar sem normas, livremente.
Seu anteposto é, a ditadura, a coerção, a imposição, a opressão, a censura. Aquele que colocar a mão sobre mim para me ordenar é um usurpador, é um tirano: eu o declaro meu inimigo, disse Pierre-Joseph Proudhon, o chamado fundador do anarquismo, que não é senão a negação do poder, – a, o não do grego, archos, poder. Não ao poder!
II
Apesar da rouquidão, era necessário. E brotou em mim um discurso libertário em defesa das garantias conquistadas após duas décadas de ditadura, seus sacrifícios, suas vidas perdidas. Lembrei suas vítimas, nossos esforços e batalhas, a resistência. Não, esta ninguém vai rasgar, ainda mais aqui, no ambiente da Faculdade de Direito, onde se cultuam as liberdades e as garantias.
Aprendemos a valorizar a liberdade pelo seu contrário, repudiando as formas que a querem aniquilar negando a vida. Cedo, em tenra idade juvenil, nos retratos de miséria contra as quais lutava D. Helder Câmara e o seu Ação, Justiça e Paz, há mais de 30 anos. Na repressão aos que explanavam seus ideais coletivistas, comunitários, obrigados a denunciar nas paredes frias da madrugada com spray, pintando nos muros as palavras de ordem libertárias da revolta, necessárias.
Um dia, o interventor paulista, o governador nomeado pela ditadura, Abreu Sodré, vinha visitar a Sociedade Italiana, na Avenida Ana Costa, em frente ao Centro dos Estudantes, o escritório central da subversão, como chamavam. Era 1968. Queríamos falar e escrever dos direitos de todos, não deixavam.
A gente não quer só comida, a gente quer diversão e arte... Queríamos mais: opinar no país! Mas um coronel-professor me expulsava da escola depois dessa prisão, apesar dos poucos 16 anos. Eles matavam nas ruas. Saímos dos manifestos para ações de resgate de direitos. Era preciso.
Era o fim de 1968. Uma faixa negra se ostentava à frente desta entidade de que eu era parte, corpo e alma. Os fascistas do Mackenzie haviam matado Guimarães, um estudante da Filosofia da USP, depois que a Polícia Militar havia dado um tiro no peito de Edson Luiz de Lima Souto, 16 anos, pedindo um melhor restaurante estudantil, o Calabouço – no RJ.
Estávamos de luto. Mas era verão e o negro da faixa havia sido desbotado pelo sol. Subimos na janela e a colocamos do avesso, para reforçar nossa mensagem negra de repúdio à violência que se instalava. Seria minha primeira prisão.
Os agentes com seus ternos pretos invadiram o Centro dos Estudantes e fomos presos – eu e o Thomé –, direto para o Palácio da Polícia, na avenida São Francisco, DOPS, polícia política. O delegado era ninguém menos do que Paulo José de Azevedo Bonavides, que dá seu nome ao troféu do Premium Literatum. Mas quanta coincidência! Opressor? Não, era apenas um policial na carreira da polícia civil, designado. A vida nos leva a descaminhos, a trilhas indesejadas, sobre as quais não temos tempo de refletir e redefinir. Cumpria ordens.
A força instrumentaliza a todos que deseja, desfaz seus dons, manipula, escraviza. Certa feita, décadas após, tive a oportunidade de perguntar-lhe se fazia aquilo com gosto. Ele freqüentava eventos literários, escrevia. Era um homem sensível, da poesia e do poema, onde colocava seu coração liberto das brutalidades humanas. Separava os mundos. Conseguia.
O DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, era uma moça, se comparada aos DOI-CODIs e OBANs que viriam. E que matariam na tortura muitos seres vivos, suprema afronta à liberdade - como o jovem estudante de geologia Alexandre Vanuchi Leme, em 1971, tempos de chumbo. Tinha só 23 anos, era cristão e leitor de Chardin.
Resistimos. Depois, foram prisões em série, escrevendo em muros, distribuindo panfletos, pulando muros, incentivando greves, gritando em passeatas, distribuindo jornais clandestinos, denunciando torturas e mutretas governamentais, em tempos proibidos. Há, a liberdade!
III
O discurso em classe, pelo impacto que causou naquele momento em que se pretendia reiniciar a caça às bruxas, a perseguição intelectual que faz nascer o autoritarismo, o ovo da serpente, fez calar a mestra e uma centena de possíveis algozes. Fez pensar. “Eu acho que fiz história”, confidenciei à colega Vera. “Evitamos o pior”, que seria o prosseguimento de uma prática que tantos desatinos havia causado na história do mundo e do país, da humanidade. A nós a liberdade. Não passaria em branco: ficaria marcado.
Jamais me afastei deste amor insano à liberdade. Ao contrário, amadurecendo me fiz apaixonado compulsivamente, detrator implacável de qualquer de seus antagônicos germinativos do totalitarismo, do ovo da serpente – e que ela aparece nítida em seu interior, ainda inofensiva. Qualquer ameaça a ela me corrói por dentro, momentaneamente irado e incapaz de compreender suas origens em cada um dos seres, sua natureza cultural, suas experiências pessoais, sua revolta interior. Mas somos falhos : só a liberdade nos redime.
O desaparecimento de gente nossa, parentes, amigos, conhecidos, líderes, é sempre uma marca trágica, tira um pouco do brilho da vida, tangencia a felicidade como uma cicatriz perene. A proporção desse lapso de vida decorre, quase sempre, da maneira que se impôs a perda, que marca delevelmente com marcas de morte. Morremos um pouco, perdemos luz. A nós a liberdade!
Quando o genocídio é aplicado como norma para atingir objetivos de poder, de preservação e injustiças consagradas, em fatos que saltam em nossos dias lembrando a obscuridade imposta, a Operação Condor, por exemplo, vem à luz nomes como do Frei Tito, de Sérgio.
Condor foi o nome da operação que, reunindo as ditaduras da América do Sul, se reuniu no Hotel Carrasco, marcada pelo nome, no Uruguai. Foi a Internacional da direita. Dos governos fortes, que de tão fracos, precisavam matar lideranças populares para se manter no poder. Atentavam contra a liberdade, justificando a defesa do privilégio de uns poucos.
Em nome desses privilégios, contribuintes da miséria coletiva, do sofrimento humano, torturaram e mataram. Torturas como as que levaram Tito ao suicídio, aniquilaram-no e o levaram a decretar a própria morte, em Paris. Preso em novembro de 1969, acusado de integrar a rede de resistência, foi barbaramente torturado. Jamais voltou a ser o que era, sua culpa era denunciar ao mundo o que se passava aqui, em um tempo em que não havia Internet. Frei Beto, também dominicano, mais forte, resistiu à tortura e até hoje propala ideais de liberdade.
Tito levava textos e fotos da barbárie que se instalara no Brasil da ditadura, dos crimes governamentais. Em agosto de 1974, em um hotel de Paris, deu fim à própria vida. Já no ano 2000, o governo reconheceu sua culpa e instituiu ressarcimento à família. Mas sua vida, esta jamais devolverá. Cumprira seu papel cristão, em sentido estrito e legitimo, consigo mesmo e com a sociedade de que fazia parte. Mataram Jango, Lacerda, Juscelino? Há versões nesse sentido.
Mas a história deste país, em que se ocultam as passagens trágicas, as mortes em série na defesa da propriedade concentrada nas mãos de poucos, gravará secular a história de Sérgio. Sérgio “Macaco”, hábil escalador de árvores, capitão da Aeronáutica e fundador do Pára-Sar – esquadrilha de salvamento na floresta. Comandante do grupo, foi em 1968 que foi convidado para uma reunião em que o Chefe de Gabinete do Ministro da Aeronáutica apresentou uma proposta aos 40 membros: era a de um genocídio em massa, para reforçar a ditadura. Vinha da “linha-dura” dos militares.
Deveriam bombardear uma hidrelétrica e o gasômetro do RJ, provocando cerca de cem mil mortes. Atribuiria-se o atentado aos comunistas, decretaria-se o estado-de-sítio, suspenderia-se as garantias legais e se tomaria as medidas profiláticas necessárias, para ele, naquele momento: eliminaria-se fisicamente os comunistas, os que rejeitavam o regime.
Lideranças populares como o arcebispo emérito de Recife e Olinda, o internacional D. Helder Câmara, deveriam ser embarcados em um avião DC-3 e lançados ao mar. Era a maneira de varrer a oposição e trazer a paz dos cemitérios. O Major João Paulo Burnier, dono da proposta, refletia o pensamento dos militares da linha dura do regime militar.
Encaminhavam uma solução já utilizada na Alemanha, quando permitiu a Hitler isolar-se no poder, no final dos anos 30. E na centralização do poder de estado, causar ao mundo a maior hecatombe da história, milhões de mortos, muito mais do que apenas os cem mil originalmente previstos no ato .
Apesar da hierarquia, Sérgio ousou dizer não. Ele, que sempre salvara, insurgiu-se. Levou a denúncia ao Ministro, junto com alguns outros, que também discordaram e firmaram com ele o compromisso. Por isso, foram cassados e presos, demitidos da profissão e da vida, arruinados. Como Sérgio, que só tinha 37 anos. Venderia livros e brinquedos, perseguido para sempre, por sua missão humanitária, como Tito.
Sérgio morreu em 1994, aos 65 anos, em fevereiro - sem conseguir recuperar a patente injustamente cassada. Após sua morte, a Justiça lhe garantiu o direito, mas o então presidente Itamar ordenou o recurso de apelação, em contrário. Afinal, ele quebrara a hierarquia !
Mega-humanitário, o homem que impediu que o nazismo tropical evoluísse para uma tragédia de proporções inimagináveis, é apenas um dos personagens da luta pelo livre pensamento, que não se curva, que não admite tergiversações nem afrontas. Alexandre, Sérgio, Chico, Paulo...
Mas naquela noite na classe da Faculdade de Direito, mais de 30 anos depois, mais um capítulo dessa batalha pela liberdade transcorria. Infindável que é, exige vigilância constante. Fui o único aluno da classe a ser reprovado na matéria ensinada pela professora, a ficar de dependência. Mas o que é isso, diante da grandeza da luta pela liberdade? Dez matérias eu tivesse, dez matérias eu daria...
AH, A LIBERDADE!
FIM
Uma história real de 1997
Paulo Matos
Ela é ampla, indefinível por sua extensão, usual na sua prática. Sem ela inexistimos como seres vivos. Fugaz, estado de espírito, concreta, fundamental, é o mínimo de espaço individual que desfrutamos no universo pessoal, que é gigante em cada um. Perdemos quando pensamos ser invasora do alheio, vencemos quando a defendemos como conquista humana.
Somos, nós mesmos, um mundo mesclado de emoções, que tem nela substância de existência e o estímulo para viajar aos céus - também para mergulhar nos infernos da consciência ultrajada pelo seu não exercício voluntário. Acracia, alegria, anarquia, virtude com Buda, amor com Jesus, filosofia dos gregos, inspirou Spártacus e Zumbi, tomou a Bastilha. A onda libertária ultrapassa muralhas e cadafalsos em cavalgada, célere. Os poderosos não a querem como escolta, tropel que desperta.
Naquele dia, naquela noite na classe, convivendo com violenta gripe que me tirara a voz, ouvir a mestra vociferar contra um jornalzinho apócrifo, o “Anaconda”, que ridicularizava outra professora - e que circulava na Faculdade de Direito – me incomodava. Era a liberdade de expressão em jogo. Esta não tem significado aparente, a não ser para os lutaram por ela em tempos recentes, que sentiram sua falta do fundo do peito. Como na época em que o “Estadão” publicava receitas de bolo no lugar das notícias censuradas.
A liberdade tem múltiplas faces, depende sempre de nossa perspectiva, pela qual medimos sua amplitude. Fazer ou não, para muitos, é sua essência. Utilizá-la ao máximo é a senha de crescimento espiritual e coletivo: os homens se agigantam com ela, os povos atingem suas metas no seu gozo. O ser humano é pequeno quando está satisfeito, é menor quando se aperta o medo em seu peito, mas gigante quando junta o anseio ao pulmão, já diria a letra do mágico Taiguara. Reprimi-la sob o argumento de ordenar os caminhos a percorrer, por alguém fora de nós, é crime grave, gera dor – atentado, violência, homicídio e genocídio, quando praticado contra a sociedade.
Quando senti que o discurso da mestra se inclinava a caçar os anônimos autores, na mensagem que contaminava o conjunto dos alunos, que já se dispunham a dela participar, me exasperei. A submissão tem limites. Certo que o desejo dela era apenas de vingança, o dos estudantes de agradar a professora e obter a difícil nota. Mas aquilo me sugeria algo como o ovo da serpente, aquele que você vê no interior o perigo germinando. Não, não poderia voltar a ditadura e a censura a violência, a opressão. Não. E aquele era um sintoma.
Sua ausência aniquila vidas e sonhos. Há momentos em que a lei liberta e a liberdade oprime, mas quando seu significado é distorcido, confundida com liberalismo - que é a liberdade dos donos do dinheiro de exercer o poder decorrente para explorar e massacrar sem normas, livremente.
Seu anteposto é, a ditadura, a coerção, a imposição, a opressão, a censura. Aquele que colocar a mão sobre mim para me ordenar é um usurpador, é um tirano: eu o declaro meu inimigo, disse Pierre-Joseph Proudhon, o chamado fundador do anarquismo, que não é senão a negação do poder, – a, o não do grego, archos, poder. Não ao poder!
II
Apesar da rouquidão, era necessário. E brotou em mim um discurso libertário em defesa das garantias conquistadas após duas décadas de ditadura, seus sacrifícios, suas vidas perdidas. Lembrei suas vítimas, nossos esforços e batalhas, a resistência. Não, esta ninguém vai rasgar, ainda mais aqui, no ambiente da Faculdade de Direito, onde se cultuam as liberdades e as garantias.
Aprendemos a valorizar a liberdade pelo seu contrário, repudiando as formas que a querem aniquilar negando a vida. Cedo, em tenra idade juvenil, nos retratos de miséria contra as quais lutava D. Helder Câmara e o seu Ação, Justiça e Paz, há mais de 30 anos. Na repressão aos que explanavam seus ideais coletivistas, comunitários, obrigados a denunciar nas paredes frias da madrugada com spray, pintando nos muros as palavras de ordem libertárias da revolta, necessárias.
Um dia, o interventor paulista, o governador nomeado pela ditadura, Abreu Sodré, vinha visitar a Sociedade Italiana, na Avenida Ana Costa, em frente ao Centro dos Estudantes, o escritório central da subversão, como chamavam. Era 1968. Queríamos falar e escrever dos direitos de todos, não deixavam.
A gente não quer só comida, a gente quer diversão e arte... Queríamos mais: opinar no país! Mas um coronel-professor me expulsava da escola depois dessa prisão, apesar dos poucos 16 anos. Eles matavam nas ruas. Saímos dos manifestos para ações de resgate de direitos. Era preciso.
Era o fim de 1968. Uma faixa negra se ostentava à frente desta entidade de que eu era parte, corpo e alma. Os fascistas do Mackenzie haviam matado Guimarães, um estudante da Filosofia da USP, depois que a Polícia Militar havia dado um tiro no peito de Edson Luiz de Lima Souto, 16 anos, pedindo um melhor restaurante estudantil, o Calabouço – no RJ.
Estávamos de luto. Mas era verão e o negro da faixa havia sido desbotado pelo sol. Subimos na janela e a colocamos do avesso, para reforçar nossa mensagem negra de repúdio à violência que se instalava. Seria minha primeira prisão.
Os agentes com seus ternos pretos invadiram o Centro dos Estudantes e fomos presos – eu e o Thomé –, direto para o Palácio da Polícia, na avenida São Francisco, DOPS, polícia política. O delegado era ninguém menos do que Paulo José de Azevedo Bonavides, que dá seu nome ao troféu do Premium Literatum. Mas quanta coincidência! Opressor? Não, era apenas um policial na carreira da polícia civil, designado. A vida nos leva a descaminhos, a trilhas indesejadas, sobre as quais não temos tempo de refletir e redefinir. Cumpria ordens.
A força instrumentaliza a todos que deseja, desfaz seus dons, manipula, escraviza. Certa feita, décadas após, tive a oportunidade de perguntar-lhe se fazia aquilo com gosto. Ele freqüentava eventos literários, escrevia. Era um homem sensível, da poesia e do poema, onde colocava seu coração liberto das brutalidades humanas. Separava os mundos. Conseguia.
O DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, era uma moça, se comparada aos DOI-CODIs e OBANs que viriam. E que matariam na tortura muitos seres vivos, suprema afronta à liberdade - como o jovem estudante de geologia Alexandre Vanuchi Leme, em 1971, tempos de chumbo. Tinha só 23 anos, era cristão e leitor de Chardin.
Resistimos. Depois, foram prisões em série, escrevendo em muros, distribuindo panfletos, pulando muros, incentivando greves, gritando em passeatas, distribuindo jornais clandestinos, denunciando torturas e mutretas governamentais, em tempos proibidos. Há, a liberdade!
III
O discurso em classe, pelo impacto que causou naquele momento em que se pretendia reiniciar a caça às bruxas, a perseguição intelectual que faz nascer o autoritarismo, o ovo da serpente, fez calar a mestra e uma centena de possíveis algozes. Fez pensar. “Eu acho que fiz história”, confidenciei à colega Vera. “Evitamos o pior”, que seria o prosseguimento de uma prática que tantos desatinos havia causado na história do mundo e do país, da humanidade. A nós a liberdade. Não passaria em branco: ficaria marcado.
Jamais me afastei deste amor insano à liberdade. Ao contrário, amadurecendo me fiz apaixonado compulsivamente, detrator implacável de qualquer de seus antagônicos germinativos do totalitarismo, do ovo da serpente – e que ela aparece nítida em seu interior, ainda inofensiva. Qualquer ameaça a ela me corrói por dentro, momentaneamente irado e incapaz de compreender suas origens em cada um dos seres, sua natureza cultural, suas experiências pessoais, sua revolta interior. Mas somos falhos : só a liberdade nos redime.
O desaparecimento de gente nossa, parentes, amigos, conhecidos, líderes, é sempre uma marca trágica, tira um pouco do brilho da vida, tangencia a felicidade como uma cicatriz perene. A proporção desse lapso de vida decorre, quase sempre, da maneira que se impôs a perda, que marca delevelmente com marcas de morte. Morremos um pouco, perdemos luz. A nós a liberdade!
Quando o genocídio é aplicado como norma para atingir objetivos de poder, de preservação e injustiças consagradas, em fatos que saltam em nossos dias lembrando a obscuridade imposta, a Operação Condor, por exemplo, vem à luz nomes como do Frei Tito, de Sérgio.
Condor foi o nome da operação que, reunindo as ditaduras da América do Sul, se reuniu no Hotel Carrasco, marcada pelo nome, no Uruguai. Foi a Internacional da direita. Dos governos fortes, que de tão fracos, precisavam matar lideranças populares para se manter no poder. Atentavam contra a liberdade, justificando a defesa do privilégio de uns poucos.
Em nome desses privilégios, contribuintes da miséria coletiva, do sofrimento humano, torturaram e mataram. Torturas como as que levaram Tito ao suicídio, aniquilaram-no e o levaram a decretar a própria morte, em Paris. Preso em novembro de 1969, acusado de integrar a rede de resistência, foi barbaramente torturado. Jamais voltou a ser o que era, sua culpa era denunciar ao mundo o que se passava aqui, em um tempo em que não havia Internet. Frei Beto, também dominicano, mais forte, resistiu à tortura e até hoje propala ideais de liberdade.
Tito levava textos e fotos da barbárie que se instalara no Brasil da ditadura, dos crimes governamentais. Em agosto de 1974, em um hotel de Paris, deu fim à própria vida. Já no ano 2000, o governo reconheceu sua culpa e instituiu ressarcimento à família. Mas sua vida, esta jamais devolverá. Cumprira seu papel cristão, em sentido estrito e legitimo, consigo mesmo e com a sociedade de que fazia parte. Mataram Jango, Lacerda, Juscelino? Há versões nesse sentido.
Mas a história deste país, em que se ocultam as passagens trágicas, as mortes em série na defesa da propriedade concentrada nas mãos de poucos, gravará secular a história de Sérgio. Sérgio “Macaco”, hábil escalador de árvores, capitão da Aeronáutica e fundador do Pára-Sar – esquadrilha de salvamento na floresta. Comandante do grupo, foi em 1968 que foi convidado para uma reunião em que o Chefe de Gabinete do Ministro da Aeronáutica apresentou uma proposta aos 40 membros: era a de um genocídio em massa, para reforçar a ditadura. Vinha da “linha-dura” dos militares.
Deveriam bombardear uma hidrelétrica e o gasômetro do RJ, provocando cerca de cem mil mortes. Atribuiria-se o atentado aos comunistas, decretaria-se o estado-de-sítio, suspenderia-se as garantias legais e se tomaria as medidas profiláticas necessárias, para ele, naquele momento: eliminaria-se fisicamente os comunistas, os que rejeitavam o regime.
Lideranças populares como o arcebispo emérito de Recife e Olinda, o internacional D. Helder Câmara, deveriam ser embarcados em um avião DC-3 e lançados ao mar. Era a maneira de varrer a oposição e trazer a paz dos cemitérios. O Major João Paulo Burnier, dono da proposta, refletia o pensamento dos militares da linha dura do regime militar.
Encaminhavam uma solução já utilizada na Alemanha, quando permitiu a Hitler isolar-se no poder, no final dos anos 30. E na centralização do poder de estado, causar ao mundo a maior hecatombe da história, milhões de mortos, muito mais do que apenas os cem mil originalmente previstos no ato .
Apesar da hierarquia, Sérgio ousou dizer não. Ele, que sempre salvara, insurgiu-se. Levou a denúncia ao Ministro, junto com alguns outros, que também discordaram e firmaram com ele o compromisso. Por isso, foram cassados e presos, demitidos da profissão e da vida, arruinados. Como Sérgio, que só tinha 37 anos. Venderia livros e brinquedos, perseguido para sempre, por sua missão humanitária, como Tito.
Sérgio morreu em 1994, aos 65 anos, em fevereiro - sem conseguir recuperar a patente injustamente cassada. Após sua morte, a Justiça lhe garantiu o direito, mas o então presidente Itamar ordenou o recurso de apelação, em contrário. Afinal, ele quebrara a hierarquia !
Mega-humanitário, o homem que impediu que o nazismo tropical evoluísse para uma tragédia de proporções inimagináveis, é apenas um dos personagens da luta pelo livre pensamento, que não se curva, que não admite tergiversações nem afrontas. Alexandre, Sérgio, Chico, Paulo...
Mas naquela noite na classe da Faculdade de Direito, mais de 30 anos depois, mais um capítulo dessa batalha pela liberdade transcorria. Infindável que é, exige vigilância constante. Fui o único aluno da classe a ser reprovado na matéria ensinada pela professora, a ficar de dependência. Mas o que é isso, diante da grandeza da luta pela liberdade? Dez matérias eu tivesse, dez matérias eu daria...
AH, A LIBERDADE!
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário