quarta-feira, 9 de julho de 2008

LIVRO - ANCHIETA, 15 ANOS/A QUARTA REVOLUÇÃO MUNDIAL DA PSIQUIATRIA - - 2004

LANÇAMENTO NACIONAL

LIVRO COMEMORA OS 15 ANOS
DA INTERVENÇÃO MUNICIPAL NO ANCHIETA

NA SANTOS DE TELMA, A VITÓRIA DOS MENTALEIROS
ANCHIETA, 15 ANOS-A QUARTA REVOLUÇÃO MUNDIAL DA PSIQUIATRIA
Um documento da luta antimanicomial.

PAULO MATOS

APOIO UNISANTOS - FACULDADE DE PSICOLOGIA – ONGS FÓRUM DE SAÚDE MENTAL – MALUCO BELEZA DIFERENTE CIDADÃO – SEM GRILO NA CUCA – FRANCO ROTTELI
ALIA/ASSOCIAÇÃO LIBERTÁRIA DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA


HISTÓRIA DE SANTOS GANHA DOCUMENTO NACIONAL: É o lançamento do livro “Na Santos de Telma, a vitória dos mentaleiros – Anchieta, 15 anos / a quarta revolução mundial da psiquiatria / um documento da luta antimanicomial”, do jornalista, historiador e bacharel em Direito Paulo Matos. Foi lançado no dia 25 de outubro de 2004 no campus D.Idílio da Universidade Católica de Santos, junto com exibição do filme mais premiado do país, “O bicho de sete cabeças”, extraído do livro de Austregésilo Carrano que denuncia os manicômios. E o vídeo feito no ato da intervenção em maio de 1989, seguido por mesa de debates sobre a questão.

O evento contou com a presença da deputada federal e ex-prefeita Telma de Souza (1989-1992), entre outras personalidades locais e nacionais da Saúde Mental, além de profissionais que atuaram no episódio repercutido mundialmente. A promoção é do Curso de Psicologia da Universidade Católica de Santos e das entidades Fórum de Saúde Mental, Fundação Franco Rotteli, Sem grilo na Cuca, Maluco Beleza, Diferente Cidadão e ALIA – Associação Libertária da Infância e Adolescência. No mesmo horário das 19 horas, novo lançamento ocorreu no dia 26, na Realejo Livros, no Gonzaga. O livro foi editado com apoio de diversas entidades, na cidade que foi a vanguarda do movimento antimanicomial brasileiro.

O LIVRO

SANTOS DEU A PARTIDA NACIONAL PARA
A VITÓRIA FINAL CONTRA OS TORTURADORES

O livro que registrou os 15 anos da intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta, um manicômio que existia em Santos desde 1951 e cujas práticas feriam os direitos humanos, colocou Santos na vanguarda mundial da Saúde Mental – afirmada na decisão da então prefeita Telma de Souza, em maio de 1989, nos primeiros meses de seu mandato, de proibir a existência de um lugar em que se torturavam seres humanos, submetidos à fome e ao sofrimento. Por esta ação, o vereador santista Ademir Pestana (PT) criou a Lei 2.092, de 26/3/2003, que instituiu no calendário oficial do Município o Mês da Saúde Mental.

Com capa do renomado escultor e pintor Luiz Garcia Jorge, com diversos depoimentos de personagens que atuaram no processo, o livro tem 176 páginas e 60 capítulos que reportam a intervenção no Anchieta e a história da luta antimanicomial em Santos e no Brasil. Na união de militantes reunidos na ARTSAM - Associação dos Trabalhadores da Saúde Mental como Telma e o psiquiatra Domingos Stamato desde os anos 80. Segundo Austregésilo Carrano, o autor do livro “O Canto dos malditos”, que deu base ao filme mais premiado do país, “O bicho de sete cabeças”, Santos foi a vanguarda brasileira na retomada dessa luta que reagia também contra as torturas aplicadas pela Ditadura Militar.

Foi o psiquiatra francês Felix Guatarri, que realizou a Reforma Psiquiátrica naquele país que, quando esteve em Santos, disse que a cidade fizera “a quarta revolução mundial da psiquiatria” - Pinel, Freud, Basaglia e Santos. A intervenção no Anchieta concretizou as teses que reuniam militantes no mundo desde os anos 40, com o manicômio eliminado a partir de maio de 1989 sob a direção de um antigo estagiário de Basaglia na Itália, o psiquiatra Roberto Tykanori, entre um contingente de profissionais que hoje aplica as lições de Santos no país, motivo de dezenas de teses universitárias.

“O processo foi tão amplo e massivo que não pôde ser derrubado mesmo quando os setores de direita, defensores do modelo cruel e excludente que existia, assumiram o governo”, disse o autor.

A obra é um abrangente resgate desta trajetória histórica de defesa dos Direitos Humanos no país, ápice da luta antimanicomial, significado neste ato de repercussão mundial e que trouxe a Santos personalidades internacionais, na senda da extinção dos manicômios que Santos colocou em prática. Na marcha da luta da chamada “psiquiatria democrática”, que Santos retomou no Brasil nos anos 80, na defesa do atendimento descentralizado e alternativo em oposição aos asilos cruéis e excludentes. O livro traz as reportagens no dia-a-dia destes 15 anos, ano a ano, de 1989 a 2004, repercutindo a intervenção e suas conseqüências na modificação dos paradigmas da Saúde Mental no país. Como na implantação de programas pelo Governo Lula, que citou a referência santista de Telma.

Com destaque para o Projeto Tam-Tam de Renato di Renzo, que reintegrando pacientes pela arte gerou exemplos para o país e para o mundo, o livro comenta a Reforma Psiquiátrica brasileira de 2001 e traz os principais nomes da psiquiatria mundial e brasileira. Estão presentes desde os criadores dos métodos violentos de “tratamento” dos problemas mentais, como os que foram banidos de Santos apesar da resistência às mudanças – Pinel, Rush, Rocha, Maia, o antigo diretor do Anchieta -, assim como os reformadores da matéria, de Basaglia a Nise da Silveira, que desde os anos 30 propunha as reformulações concretizadas no modelo exemplar de Trieste promovido por Basaglia, que destruiu o manicômio. E as teorias do (anti) psiquiatra americano Thomas Szasz, que identifica a psiquiatria violenta como herdeira da Inquisição.

Trazendo as lições de Michel Foucault e o relato das infrações aos Direitos Humanos nos manicômios brasileiros, reveladas nas ações das Caravanas dos Direitos Humanos executadas pelo Ministério da Saúde e diversas entidades, no Governo Lula – que tem o setor da Saúde Mental dirigido por um antigo militante antimanicomial, Pedro Delgado -, o livro revela ainda as questões jurídicas da questão e os princípios constitucionais que possibilitaram a intervenção, a primeira em um hospital no Brasil, no processo comandado pelo jurista Sérgio Sérvulo da Cunha, que entrevistamos. E comenta O Taylorismo, o sistema econômico gerando loucura .

Machado de Assis, Hermann Hesse e Gabriel Garcia Márquez estão comentados em suas referências à questão, assim como a “industrialização” dos manicômios pela Ditadura Militar com fins econômicos e políticos destes contribuintes da tortura. O livro traz ainda o comentário sobre os filmes que abordam a questão secular. O direito de indenização às vítimas dos eletrochoques, na proposta de Carrano Bueno, está considerada, em se historiando o método desde sua invenção nos anos 30, descoberto como amansador de porcos para o abate.

Para o autor, o objetivo do livro, “mais uma tarefa de militância política”, disse, é contribuir para a causa antimanicomial e a defesa dos Direitos Humanos, “projetando Santos no país e no mundo no campo da vanguarda dos direitos sociais resgatados pela prefeita Telma de Souza. Eles se exigem registrados para ampliar esta informação a setores mais amplos – garantindo, assim, a evolução cultural e social que Santos teve na gestão de Telma (1989-1992), propiciada por sua coragem e disposição nessa derrubada de um dos pilares centrais do sistema econômico de opressão e exploração, oferecendo novos rumos para a sociedade humana”, concluiu.
NA SANTOS DE TELMA, A VITÓRIA DOS MENTALEIROS

ANCHIETA, 15 ANOS
1989 - 2004

A QUARTA REVOLUÇÃO MUNDIAL DA PSIQUIATRIA




O exemplo santista, nacional e mundial,
De políticas de Saúde Mental








A HISTÓRIA DA CASA DOS HORRORES

UM DOCUMENTO DA LUTA ANTIMANICOMIAL












PAULO MATOS
COLABORAÇÃO PAULO MATOS JR.







RESUMO / ABSTRACT

Este trabalho reporta a intervenção municipal decretada pela prefeita Telma de Souza na Casa de Saúde Anchieta, em 1989, um sanatório para doentes mentais na região de 10 cidades, o único até 1983, em Santos, São Paulo, Brasil. Faz o histórico da caminhada da psiquiatria e da luta antimanicomial no mundo, no Brasil e em Santos. E mostra a cronologia dos fatos relativos à intervenção e ações paralelas de personalidades no setor da luta antimanicomial, no tema da Reforma Psiquiátrica brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Intervenção Municipal, Loucura, Hospital Psiquiátrico, Psiquiatria, Políticas de Saúde, Reabilitação, Reforma Psiquiátrica, Saúde Mental, Políticas de Saúde.

ABSTRACT: This work reports the municipal intervention decreeted by Mayor Telma de Souza on Casa de Saúde Anchieta in 1989, in Santos, São Paulo, Brazil, a madhouse to mental sickness around ten cities, the only one until 1983. It makes psychiatry walking and the antimanicomial fight in the world, in Brazil and in Santos City. It shows the chronology of the facts of intervention and parallels acts of personalities in the antimanicomial fight fields in brazilian psychiatric reform.

KEY WORDS: Intervention town council, Madness, Psychiatric Hospital, Psychiatry, Mental Health, to Rehabilitate, Health Policy.



CLASSIFICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

362.21
M433a Matos, Paulo –
Na Santos de Telma, a vitória dos mentaleiros - Anchieta, 15 anos - 1989 – 2004 / a história da quarta revolução mundial da psiquiatria / exemplo santista nacional e mundial de políticas de Saúde Mental / um documento da luta antimanicomial. Santos, e.a., 2004

1.Saúde Mental – Santos (município) 2. Loucura 3. Psiquiatria – Santos (município) 4. Psiquiatria (história) 5. Casa de Saúde Anchieta – Santos (município) 6. Hospitais psiquiátricos 7. Saúde Mental – leis e legislação 8. Saúde Mental – terapias alternativas 9. Saúde Mental, intervenção municipal – Santos (município) 10. Arte e loucura

2004









I
A carta aos Diretores de Asilos de Loucos de Antonin Artaud
Senhores:
As leis, os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível vocês a exercem segundo seus próprios padrões de entendimento. Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem esta julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém, para cada cem pretendidas patogenias, onde se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que vocês encarceraram? Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados em uma tarefa para a qual só existe muito poucos predestinados.
Porém não nos rebelamos contra o direito concedido a certos homens - capazes ou não - de dar por terminadas suas investigações no campo do espírito com um veredicto de encarceramento perpétuo. E que encerramento! Sabe-se - nunca se saberá o suficiente - que os asilos, longe de ser “asilos”, são cárceres horríveis onde os reclusos fornecem mão-de-obra gratuita e cômoda, e onde a brutalidade è norma. E vocês toleram tudo isso. O hospício de alienados, sob o amparo da ciência e da justiça, è comparável aos quartéis, aos cárceres, as penitenciarias. Não nos referimos aqui as internações arbitrárias, para lhes evitar o incomodo de um fácil desmentido. Afirmamos que grande parte de seus internados - completamente loucos segundo a definição oficial - estão também reclusos arbitrariamente.
E não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio, tão legitimo e lógico como qualquer outra serie de idéias e atos humanos. A repressão das reações anti-sociais, em principio, è tão quimérica como inaceitável. Todos os atos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vitimas individuais por excelência da ditadura social. E em nome dessa individualidade, que è patrimônio do homem, reclamamos a liberdade desses forcados das galés da sensibilidade, já que não se está dentro das faculdades da lei condenar à prisão a todos que pensam e trabalham. Sem insistir no caráter verdadeiramente genial das manifestações de certos loucos, na medida de nossa capacidade para avalia-las, afirmamos a legitimidade absoluta de sua concepção da realidade e de todos os atos que dela derivam. Esperamos que amanha de manhã, na hora da visita medica, recordem isto, quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais - reconheçam - só tem a superioridade da força.
*
Antonin Artaud, filósofo e dramaturgo francês, poeta, crítico, ator, roteirista de cinema, compositor de ópera e de muitas cartas, internado em um manicômio onde morreu, em Ivry, Paris - 04/09/1896 - 04/03/1948


*

Como documento da luta antimanicomial, uma batalha contra a opressão secular e exemplar do sistema de dominação, este livro busca somar instrumentos para este pleito de justiça, endossando a causa humanitária e contribuindo que se faça o futuro que se fez aqui - construindo uma nova ordem baseada nos Direitos Humanos e na Justiça Social.

O autor

*
“Nós, os psiquiatras, estamos abdicando de todo o poder que nos foi conferido, em busca da integração com todas as áreas. Estamos ao lado dos oprimidos e não do opressor”.

(Psiquiatra Domingos Stamato, militante antimanicomial,
A Tribuna, 15 de junho de 1980)

*


“Gente é para brilhar”
(Caetano, por Telma)

*















II

ÍNDICE

Resumo / Abstract - Classificação Biográfica.............................................................02

I - A carta de Antonin Artaud aos diretores dos manicômios............................... 03

II - Índice....................................................................................................................... 05

III - Agradecimentos..................................................................................................... 12

IV - Mentaleiros - Esclarecimentos........................................................................... 13

V - Prefácio da Telma............................................................................................... 13

VI - O nome da Casa – quem foi Anchieta? Na estratégia do
jesuíta, a linguagem da conquista.................................................................. 15

VII - A cidade: história e ação política
na Santos Libertária.......................................................................................... 18

1 - Introdução - Anchieta, uma história que precisa ser
contada, para nunca mais acontecer............................................................. 20

2 - Um maio: noivas, casamentos e uma prefeita: nada seria como
antes, como cantava Elis................................................................................. 22

3 Foucault, Marx e a teoria do manicômio.......................................................... 24

4 - O livro - Ghandi e a comemoração............................................................... 25

5 - Os métodos e a história
O Brasil que faz o que Santos fez................................................................... 29
As razões da intervenção......................................................... 30

6 — O velho e o novo na feliz cidade..................................................................... 31

7 - A tradição autoritária e o fim dos manicômios no Brasil, uma conquista traçada a partir da intervenção de Santos no Anchieta.................................... 33

8 - Ensinando a dignidade humana: os passos da mudança no Anchieta ..... 34

9 - Os apoios ao ato solidário................................................................................. 36

10 - Maio, 1982: 7 Anos antes da intervenção, o autor denunciava o Anchieta
no jornal universitário................................................................................................ 36
Cura ou loucura?......................................................................... 37

11 - A loucura que se produzia no Anchieta, como no conto de Gabriel Garcia
Márquez ........................................................................................................ 38
12 - O Anchieta e seus eletrochoques: alta voltagem.............................................. 39
Eletrochoque no câncer. Alemanha anos 40?
Não, era Santos....................................................................................... 39
Tratando gente como porcos..................................................................40
Altas voltagens nas têmporas.................................................................41
A ciência da convulsão. Como chegaram ao eletrochoque.................41
“O estranho no ninho”. A derrota mundial do eletrochoque,
nos anos 70 .............................................................................................. 42

13 - A imprensa do Anchieta e o sonho de More: o assalto
aos céus – o D.O. Urgente como agente
Mauri, Leda, Fidalgo ......................................................................................... 42
As profecias de Lane Valiengo. O raio de sol ................................. 45

14 - A forma constitucional da intervenção municipal –
Artigos e Princípios............................................................................................. 46

15 - O reconhecimento mundial da intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta........................................................................................................................... 48

16 - Uma ação ao revés da Ditadura - quinze anos depois do Anchieta, a
intervenção no maior manicômio do mundo..................................................... 49
Poluição e loucura, políticas da Ditadura............................................... 49

17 - Um filme de terror, tema de Mojica Marins: você já se imaginou
trancado no Anchieta? ...................................................................................... 51

18 - “O Alienista” e o Anchieta: de perto, ninguém é normal................................. 52

19 - A psicologia, a psiquiatria e a antipsiquiatria, na raiz da atitude da
intervenção no Anchieta.................................................................................... 53

20 - A Causa e os métodos / as contradições do modelo antigo e as palavras-chave da psiquiatria democrática. Basaglia é uma “mentira”? A ecologia da loucura: “Estadão” reporta Santos, a 1ª cidade do pais a humanizar a questão da Saúde Mental............................................................................................................................... 55
Os novos métodos e seus papéis revelam as contradições do modelo
antigo ....................................................................................................... 56
“Basaglia é uma mentira”? .................................................................... 56

21 - Pinel, Rush, Rocha, Maia: a defesa do manicômio............................................ 57
A Inquisição como matriz psiquiatria institucional................................. 57
Herança e tradição...................................................................................... 59

22 - Breve trajetória da psiquiatria no mundo.................................................... 61


Como nasceu o hospício...................................................................... 62
Psiquiatria e Poder................................................................................ 63
Pinel, a razão de Estado na psiquiatria............................................... 63
Benjamim Rush, coerção e violência...................................................65
Freud...................................................................................................... 66
Lobotomia, loucura e rotulagem..........................................................67
Em 1968, acaba a Inquisição. Só em 68?........................................... .67
A ciência positivista na psiquiatria......................................................68
Inquisição, feitiçaria e escravidão: a psiquiatria americana e
o caso Donaldson.................................................................................68
Bruxas, mulheres de expressão......................................................... 69
Rotteli: a reação e a luz........................................................................70
Basaglia, a terceira revolução mundial da psiquiatria, Trieste........70
Derrubando as paredes do hospício.................................................. 71
Foucault e a crítica................................................................................71
23- Breve história da luta antimanicomial no Brasil .....................................72
Para Carrano, a luta antimanicomial no país foi retomada
em Santos, em 1987................................................................................ 72
O passado: o primeiro hospício.............................................................74
No princípio da luta antimanicomial, Nise da Silveira ........................ 75
Nise, antes de Basaglia.......................................................................... 77
O Museu do Inconsciente........................................................................77
Nise, antecipando o NAPS santista....................................................... 77
Bispo do Rosário, um artista no Juquery............................................. 78
Franco da Rocha .....................................................................................79
A “liberdade” dos defensores do manicômio...................................... 80
O Brasil na contramão da história / As políticas da
Ditadura e reação antimanicomial nos anos 70.................................... 80
O lobie dos manicômios, que dão dinheiro............................................82
A lei estadual de Saúde Mental................................................................83

24 - A caminhada da luta antimanicomial em Santos.......................................................................................................................... 83
1973, Cidade Dutra................................................................................ 83
1978, o Congresso de Saúde Mental em Camboriú.
A ARTSAM – Associação Regional dos Trabalhadores
em Saúde Mental em Santos................................................................84
Telma presente...................................................................................... 85
1980, em nome da razão. O I Seminário.............................................. 85
Fausto Figueira .................................................................................... 86
Stamato ................................................................................................. 86
1981: O Centro de Convivência. A idéia da intervenção....................87
1982, ações democráticas, denúncias e conflito................................87
1983: a luta contra o chiqueirinho....................................................... 87

25 - 1989: a quarta revolução mundial da psiquiatria
- a história da intervenção no Anchieta / os 15 anos no dia-a-dia da imprensa .......................................................................................................................................... 88

1989 - Hora da ação........................................................................................................ 89
Edmundo Maia, do Anchieta e do Jânio............................................ 89
Contra o horror do manicômio, a estratégia pragmática
do Dr. Zanetta....................................................................................... 89
15 anos depois, a ex-funcionária D. Elza conta a a barbárie do
Anchieta, 15 anos antes da intervenção. Cantar dava cela
forte e eletrochoque.......................................................................... 91
A reação humanitária........................................................................ 91
A tragédia anterior e o processo de transformação...................... 92
“O Cachorro também é um ser humano”....................................... 93
Notícias: “Para o Exército, bomba é reação da
direita. A AIDS tomava conta da cidade......................................... 94
Intervenção “antipática”? ................................................................95
“Eles não fugiram, se deram alta”...................................................96
Zanetta: na ação inédita, as “Brigadas Internacionais”
no Anchieta....................................................................................... 96
A suspensão judicial da Intervenção. A voz
de prisão a David - Deputados Rubens Lara e Clara Ant
apóiam a intervenção........................................................................ 97
Novas conquistas............................................................................ 95
1990 - A rádio Tam-Tam entra no ar na cidade......................................................... 98
1991 - Tykanori e o 1º Programa de Saúde Mental a sair do papel.
O lobie contra a Saúde Mental humanizada................................................... 99
Acusações: gravidez e empreguismo.............................................99
OPAS, A Carta de Santos................................................................ 100
Lancetti: “Perversidade”................................................................. 100
Saúde Mental é orgulho para Santos............................................. 100
A resposta às acusações de “erotização” .................................... 101
1992 - Anchieta é manchete nos Estados Unidos – Telma responde
acusações. Los Angeles Times: “Serviços de saúde de Santos são mesmo
impressionantes” .............................................................................101/102
Anchieta expõe números e contesta deputado............................. 102
1993 - A extinção gradual – reduzem-se internações............................... 103
Edmundo Maia, apontado como torturador, alerta para o que
os loucos podem fazer. Torturar pessoas?............................... ..104
Experiência santista aprovada.......................................................104
1994 - Santos na BBC de Londres – fundada cooperativa de
trabalho...... ..... .................................................................................................. 105
1995 - A Argentina vem conhecer a Saúde Mental de Santos....................................105
1996 - Pasquale, de Trieste, elogia a ação santista.................................................... 106
Em São Vicente, o exemplo do Anchieta. Mito e loucura................................106
1997 Agora no poder, a direita faz a hora da revanche..................................... 107
Tykanori agredido moralmente. Ainda há juizes em Berlim?................108
1998 - As revanches não param.......................................................................... 109
1999 - Telma responde acusações. Lula nos dez anos da intervenção. Ufa!
Nova ameaça de obrigar a devolução do prédio e cassar Telma e David. Mas a boa notícia: Maia não quer reativar o Anchieta......................................................109
Lula no Anchieta.................................................................................... 110
Torturas no Anchieta, descritas por quem sofreu............................. 111
A polêmica dos opositores................................................................... 112
O fim da intervenção.............................................................................. 112





2000 - A Caravana Nacional dos Direitos Humanos e a realidade
manicomial brasileira. Para a imprensa, a intervenção é
apenas um “incômodo”....................................................................... 114
2001 - A vitória antimanicomial com a lei Paulo Delgado............................... 114
2002 - Prossegue polêmica judicial....................................................................114
2003 - Justiça confirma: ações contra intervenção são
improcedentes. Lula destaca ação santista.......................................... 114
2004 - Iniciativa santista indica ação nacional para extinção dos
manicômios............................................................................................... 115

26 - A Caravana Nacional de Direitos Humanos – uma visão dos
manicômios no Brasil de hoje.................................................................. 116
Hipermedicalização e eletrochoque, a violência...............................117
Gastos com a indústria psiquiátrica................................................. 117
Nova caravana em 2004.......................................................................118
A inspeção nacional de unidades psiquiátricas,
em prol dos direitos humanos.......................................................... 118
Por Ela, Procuradora da República, a
responsabilidade do Estado.............................................................. 119

27 - As políticas do programa de Saúde Mental do governo
Lula, no ritmo de Santos ................................................................. 120

28 - Os enfrentamentos para evolução - as ações judiciais contra a
intervenção – Sérvulo e Thoreau ............................................................. 121
O depoimento do vice-prefeito Sérgio Sérvulo da Cunha.................122

29 – Depoimentos de “mentaleiros”............................................................... 123
Conjuntura legal: Geraldo Peixoto,
militante antimanicomial...................................................................... 123
As cenas de Arthur Chioro.................................................................. 123
Flávio Saraiva, libertando a loucura.................................................. 124
Berta, por dentes saudáveis................................................................ 124
Luiz Antonio Cancello, humanizando................................................. 125
A deputada Maria Lúcia Prandi, educando excluídos...................... 125
Fábio Mesquita, médico social............................................................125
Celso Manço, psicólogo antológico................................................... 126
Zezé Muglia Rodrigues, Assistente Social sim senhor.................... 126

30 - As ações de reintegração/ estratégias, atividades,
cooperativas - Engels........................................................................ 127
“Onde ficarão os loucos?”.................................................................129

31 - A arte na ressocialização - um ato de amor / o Projeto Tam-Tam ................. 130
Como Anchieta, o 1º mestre do Brasil.......................................... 130
O mistério das caixas iluminadas.................................................. 131
A Rádio Tam-Tam, “um programa do tamanho da sua loucura”............................................................................................ 133
Tam Tam quer saber quais são os remédios de Lula.................. 131
A Rádio, que era dentro do hospício, estréia para “os
de fora”. “Quem não tem loucura não é equilibrado”................. 134
A repercussão na imprensa do Tam-Tam.................................... 135
Entretenimento como terapia, a tese............................................ 135
O Biruta............................................................................................ 136
Schechtmann, na raiz do trabalho de Di Renzo:
Foucault e a não-obra” : a racionalidade oculta
na expressão da loucura............................................................... 136

32 - NAPS e descentralização, o fim do Anchieta / Por que conseguimos recordes
mundiais na desativação do manicômio? .................................... 137

33 - Como foi fechar o Anchieta, para humanizar a cidade................................... 139

34-18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial ............................................140

35 - Por que o Anchieta foi a quarta revolução da psiquiatria mundial, como disse Guattari?..................................................................................................................... 140

36 - Na teoria de Michel Foucault, o espírito da abertura pioneira do manicômio santista.........................................................................................................................141
Tykanori, estagiário de Basaglia.......................................................142
O Pioneirismo do trabalho executado no Anchieta...................... 143

37 - A “República Anchieta”, hoje............................................................................... 144
O “prefeito” do Anchieta................................................................... 144

38 - Quinze anos depois, a comunidade comemora a defesa
da dignidade humana................................................................................................... 145
Florianita e Cida: Mais louco é quem me diz!................................. 146
Jacaré, reagindo ao eletrochoque: “Vai dar na família dele!”....... 146
Geraldo Peixoto, militante de pele.................................................... 147
O poema de Luiz Fernando................................................................ 147
Pedro Delgado,militante secular....................................................... 148
Tykanori............................................................................................... 149
Melhado............................................................................................... 149
Lancetti, criador.................................................................................. 149
Marcus Vinicius, radical..................................................................... 150

A segunda mesa.....................................................................................150
Fátima Micheletti, carinho e eficiência............................................... 151
Silvia Tagé............................................................................................. 151
Mestre Stamato e Raul Seixas............................................................. 151
Suzana Robortela.................................................................................. 152
Mirsa Delossi, a coordenadora estadual de Saúde Mental.............................153

SEGUNDA PARTE

39 - A ciência prende a pluralidade. E a verdade. Hermann Hesse: O Lobo da
Estepe, só para loucos..................................................................................... 151

40- A questão jurídica. Indenização às vítimas dos manicômios.............................152

41-A lei Paulo Delgado................................................................................................. 154
A batalha da aprovação..................................................................... 155

42 - Ações diretas: o exemplo do Anchieta: Participação Popular.......................... 156
Policlínicas, a informatização da saúde......................................157
PID E PAD, saúde em casa...........................................................158

43 - Maio: Mês da Saúde Mental vira Lei em Santos, através do
vereador Ademir Pestana.........................…......................................................159

44 - O Projeto de Lei de Lula, “A volta para casa”. Mais um gol
da cidade ...............................................................................................……..... 160

45 - Loucura, Made in sistema, Made in Brazil
Taylorismo e uma das raízes da loucura / a essência da
diferença............................................................................................................. 161

46 - Eugenia: a guerra contra os (mais) fracos
No Anchieta, a visão dos iguais.
Em uma época do pós-Anchieta, em que seres são rebaixados e em
que se projeta o “aperfeiçoamento genético”, esta história é
necessária................................................................................................….... 162

47 - E quem são os loucos ? Novas políticas na Saúde Mental............................ 165

48 – Vitória de Carrano na luta antimanicomial brasileira
“O bicho de 7 cabeças”.....................................................................................166
“A laranja Mecânica”......................................................................... 167
“Uma mente brilhante”...................................................................... 167

49 – No trabalho, a loucura.
o sistema enlouquecendo seres / ciência e direito.................................. 168

50 - Palavras finais: o destino das vítimas do Anchieta / nosso personagem
inicial e seu destino – tudo vale a pena quando a alma não é
pequena.............................................................................................................169

51 - Conclusão – os loucos e nós: o que temos a ver com isso?.......................... 170
Reação social........................................................................... 172

52 - Legislação em Saúde Mental no Brasil............................................................. 174

53 - Anexos – o autor................................................................................................... 175

54 - Bibliografia............................................................................................................ 176







III
AGRADECIMENTOS

A Adelma, Paula, Pluma e Paulo Matos Jr., esposa e filhos; à minha mãe Maria de Lourdes – e a todas as pessoas que suportaram as tensões do trabalho e o incentivaram, compreendo-o em sua importância; a militante, vereadora, prefeita e deputada Telma, pela evolução humanitária que soube reunir a vontade à cidade, que elevou;

A David Capistrano, que incorporou a ideologia socialista e humanista à ação concreta; a Domingos Stamato, psiquiatra e militante social “avant coureur”, precursor municipal da luta antimanicomial e referencial deste trabalho; a estes e todos os envolvidos nesta batalha humana, um projeto de vida, meus agradecimentos.

Os Barbosas e as utopias

Alberto Pires Barbosa foi um líder dos trabalhadores desde antes do “Raul Soares” de 1964. Incorporado nesta ação de mudança social que foi o governo Telma, resgatando antigos valores sociais, foi seu secretário de relações sindicais. Em 1999 partiu, sem ver o filme feito em sua homenagem, laureado Cidadão Santista dias antes. Era o “Bom Barbosa”, não o da Ditadura.

Como ele, parceiro perene de Telma desde o início desta caminhada solidária, Fábio Barbosa é outro “Bom Barbosa” - como chamavam aquele, ao revés da Ditadura -, este capaz de delinear e concretizar, não como sindicalista mas como economista e professor, as propostas de mudança destes e destas que tornaram possíveis as utopias.

Aos Stamatos, Domingos e João Antonio, que de forma diferentes contribuíram para que este livro fosse possível.

Ao companheiro psicólogo Rivaldo Leão, pelos alertas.

Às associações Franco Rotteli, Franco Basaglia, Maluco Beleza e Diferente Cidadão, por seu papel de resgate fundamental.

MENTALEIROS

Primeiros a se mobilizar contra a violência das instituições psiquiátricas, mesmo porque sofriam e sofrem as conseqüências dos maus-tratos aplicados, os “mentaleiros” são heróis e construtores de um novo mundo.
*
Minha geração não lamenta mais os crimes dos perversos quanto o estarrecedor
silêncio dos bondosos

(Martin Luther King)
Santos não se calou.


IV
ESCLARECIMENTOS

Na época da intervenção, a imprensa local chegou a fazer referências sobre a criação do título “Casa dos Horrores” para denominar a Casa de Saúde Anchieta, como a reportagem de A Tribuna em 28 de maio de 1999. Atribuindo sua criação aos interventores do Governo municipal em 1989, na intenção de maldizer o manicômio santista.

Entretanto, a reportagem do jornal A Tribuna de 15 / 6 / 1980, na página 23, comprova que a expressão já era usada pelos estagiários e profissionais que atuavam na instituição, revelando a extensa tradição do Anchieta – o exemplo santista desta ação desumana. A expressão já era usada pelos “mentaleiros” - os profissionais que atuam no atendimento da Saúde
Mental -, para denominar este tipo de instituição.

*

“Antes de decretar a intervenção no Anchieta, me perguntei: eu tenho estrutura para isso? E a resposta é que não. Não tem importância, eu vou adiante mesmo assim. Eu não poderia mesmo governar uma cidade doente, com esse sintoma, com esta chaga – o manicômio” (Prefeita Telma de Souza)

V
PREFÁCIO - Prefeita Telma de Souza
A LUZ E A ESCURIDÃO

Quando manifestamos nossa indignação com a situação de extremo horror em que viviam os pacientes da Casa de Saúde Anchieta, enfrentamos dois tipos de reação: os que se opunham ao nosso governo nos acusavam de intromissão indevida. Afinal, tratava-se de instituição privada, onde, diziam, eram aplicadas “modernas técnicas” no tratamento de distúrbios mentais. Já algumas das pessoas que nos apoiavam, embora concordando com a gravidade do quadro, entendiam que nos envolveríamos com uma causa complexa, que não contaria com o apoio imediato da opinião pública. Aconselhavam-nos a protelar qualquer decisão, até nos sentirmos “mais firmes” no Executivo santista, que tínhamos assumido há meses. Sabíamos, porém, que nossos profissionais, no governo, trabalhavam com o que existia de mais avançado no mundo no campo da Saúde Mental.

Tínhamos também convicção ser nosso dever primordial agir em quaisquer cenários que colocassem em risco a integridade de qualquer segmento da população da cidade. Quanto ao apoio popular para modificar a situação insustentável em que se encontravam os pacientes da instituição, agir não era questão de oportunidade ou estratégia política, mas de compromisso com princípios que sempre defendêramos. Entendíamos ainda que devíamos apostar na generosidade da população da cidade que acabara de nos eleger. O resultado desse processo se tornou parte da história tanto das pessoas envolvidas no trabalho que se seguiu, quanto da cidade de Santos, transformada em referência nacional e internacional, por seu pioneirismo na humanização do sistema de tratamento da Saúde Mental.

Tenho repetido que me sinto extremamente honrada de haver, enquanto prefeita de Santos, conduzido, por intermédio de minha equipe de governo, várias iniciativas que projetaram o município na vanguarda de políticas sociais inéditas e bem sucedidas. Sinto-me, no entanto, particularmente recompensada pelo privilégio de haver contribuído para derrubar os muros que encarceravam centenas de corações e mentes naquela “casa de horrores”. A coragem e determinação de todo um grupo de profissionais e cidadãos, não permitindo que aquele exemplo de degradação humana continuasse a existir em nossa cidade, marcou e enriqueceu a vida de todos nós. Provamos, para nós mesmos, que éramos capazes de nos indignar com o aviltamento do ser humano e com o desrespeito aos direitos básicos de cidadania e civilidade. E aqueles a quem dirigimos nossa atenção - as pessoas com distúrbios mentais - nos responderam com a demonstração firme de que eram capazes e de que queriam retomar seu lugar no seio de uma sociedade que os discriminava, na maioria da vezes, por pura falta de informação, fonte de todos os nossos mais destrutivos preconceitos.

Essa caminhada em defesa da vida e da cidadania, foi coroada com o inesgotável potencial de solidariedade demonstrado pela população em relação aos pacientes que, pouco a pouco, eram resgatados, do escuro das fétidas celas-fortes e das torturas dos eletrochoques, para a luz da convivência em sociedade. A imensa maioria dos santistas tornou-se “cúmplice” desse processo de resgate. No último dia 3 de maio, completaram-se 15 anos da intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta. É um evento a ser comemorado, em função das vitórias que, a partir dali, começamos a forjar no campo da Saúde Mental em nossa cidade e em nosso país. Contudo, esta ocasião deve servir também para reflexão, e motivos para refletir não faltam. A primeira reflexão deve contemplar um amplo questionamento sobre como se encontra hoje a rede de apoio e reintegração social, não somente para aqueles ex-internos do Anchieta, mas também para os novos pacientes que precisam de assistência especializada.

Sabemos, por reiteradas informações de profissionais da área, que o desmonte que atingiu vários segmentos da saúde na nossa cidade não poupou o setor de saúde mental, ensejando um gravíssimo risco de quebra de vínculo entre pacientes e terapeutas. Não é, no entanto, minha intenção aqui descer a detalhes e criar controvérsias em torno dessa questão, que será, tenho certeza, objeto de profunda discussão em fórum adequado. O importante, neste momento, é celebrar mais uma vitória da luz sobre a escuridão, uma vitória da solidariedade e da ousadia sobre o medo, a opressão e a omissão. E que a coragem que todos nós, cidadãos desta cidade, demonstramos naquele episódio possa continuar norteando nossos passos em direção a um mundo menos cinzento e mais acolhedor.

Telma Sandra Augusto de Souza






VI
O NOME DA CASA: QUEM FOI ANCHIETA?

na estratégia do jesuíta, a linguagem da conquista

Neste dia 9 de junho transcorreu o Dia de Anchieta (1533-1597), o primeiro mestre do Brasil, que seria canonizado pelo Papa apenas em 1980, ainda sob a influência da defenestração orquestrada pelo Marquês de Pombal no século XVIII, que expulsou os jesuítas daquele país e das colônias. Mas quem foi José de Anchieta? O conhecemos apenas da estrada para São Paulo, a capital do Estado, que leva seu nome, na rota que ele efetivamente ampliou a partir do antigo caminho dos índios - então chamado “Caminho do Padre José”, antes que existisse a “Calçada de Lorena” (1750) e a “Estrada da Maioridade”, a “Estrada Velha” que deu lugar à Via Anchieta. O padre Anchieta era um personagem da colonização do século XVI, membro da Companhia de Jesus, uma ordem da Igreja Católica que concentrava esforços na expansão da religião às terras de além-mar e aos seus nativos.

Criada por Inácio de Loyola em 1540, o ideal da Companhia de Jesus era ser um órgão de combate ao protestantismo, que eclodira em desafio ao catolicismo, formando educadores que expandiriam a fé católica. O nome de “companhia” destacava seu papel militar. Os jesuítas foram expulsos do Brasil a partir do governo do primeiro-ministro de D. José (1750 - 1777), Pombal - um déspota esclarecido de Portugal, a partir de 1759, pois estavam criando um estado dentro do estado sob seu domínio, criando as “reduções” e explorando o trabalho dos índios racionalmente. Anchieta foi a principal figura desse quadro histórico, em que a Igreja Católica desempenhou papel essencial na colonização brasileira - um padre com vasta formação erudita formada em Coimbra a partir de 1548, que ali se torna jesuíta em 1551.

Nascido em 19 de março de 1534, dia de São José, em São Cristobal de La Laguna, na Ilha de Tenerife, arquipélago das Canárias, pertencente à Espanha, chegou ao Brasil na Baia de Todos os Santos em 13 de julho de 1553, em companhia do segundo governador-geral do Brasil D. Duarte da Costa. Vinha na missão de auxílio ao Superior da Companhia de Jesus, Manoel da Nóbrega, que pretendia fundar um colégio no planalto de Piratininga, a futura cidade de São Paulo. Era o terceiro filho do segundo casamento de dona Mência Dias de Clavijo Llerema, descendente dos conquistadores de Tenerife.

Seu pai era João Lopez de Anchieta, um fidalgo basco originário do Vale de Urrestilha, na Espanha, que foi membro de uma rebelião e condenado à morte, se refugiando nas Canárias em 1522. Anistiado pelo favor do amigo e Capitão Inácio de Loyola, foi tentar a vida em Tenerife. José freqüenta a escola dos Dominicanos e com 14 anos vai estudar em Portugal, no Real Colégio de Artes, onde estuda humanidades e filosofia. Hábil poeta do latim, recebe o apelido de “Canário de Coimbra”. De família religiosa, se torna sacerdote e faz contato com a Companhia de Jesus - os Jesuítas -, fundada pelo mesmo Inácio de Loyola que havia salvo seu pai da morte.

Em 1551, aos 17 anos, Anchieta é recebido como noviço, dividindo seu tempo entre a oração, estudar retórica e filosofia e ajudar missas. Com dezoito anos, já doente da coluna vertebral encurvada, em 1553 é escolhido para as missões no Brasil, fazendo a viagem de 65 dias, instalando um amplo programa de catequese que enfrenta dificuldades para executar em um lugar onde os europeus que estavam aqui haviam absorvido os costumes indígenas e estavam em guerra com os índios pois que tentando escravizá-los. Manoel da Nóbrega pede mais quadros a Portugal, nem que fossem, escreve ao Provincial Simão Rodriguez, os “fracos de engenho” e os “doentes de corpo”.

Entre estes enviados estava Anchieta, com seus problemas físicos, que chega em 1553, no grupo chefiado pelo padre Luiz de Grã - ex-reitor do Colégio da Companhia de Jesus. E em 25 de janeiro de 1554, em um barracão no planalto para onde subira pela Serra do Mar, no dia da conversão do apóstolo São Paulo, junto a uma aldeia de índios, Anchieta funda o Colégio dos Jesuítas e a cidade de São Paulo, junto com Manoel da Nóbrega e treze colegas vindos de São Vicente. Era um local de catequese, ensino e proteção, formando para o trabalho; logo fecha o Colégio de São Vicente que se muda para São Paulo, aumentando a população da Vila que ia ensinando cristianismo às crianças índias, aumentando as construções de pau-a-pique.

Em Itanhaém, se pode até hoje deitar em sua cama de pedra à beira-mar, uma formação rochosa. Tendo aprendido a língua tupi, que usaria pelo resto da vida, escreveu a gramática mais falada na costa do Brasil, que viria a ser usada em todas as missões que viriam ao país. Reitor do Colégio de São Vicente em 1559, substituindo Manoel da Nóbrega em 1570 como reitor do Colégio do Rio, até 1573, vai para a Bahia e naufraga no Espírito Santo, indo a pé até Vitória onde ergue uma Igreja e segue para a Bahia, retornando ao Rio, em 1574 está novamente em São Vicente, nomeado Provincial do Brasil em 1577 com 43 anos, após 24 no Brasil. É o cargo mais importante da carreira. Co-fundador do Rio de Janeiro, onde criou o Hospital da Misericórdia, ao seu trabalho de catequista, educador e administrador de colégios acrescentou o cuidado com a saúde dos indígenas, aos quais dispensava tratamentos mesclando a medicina européia com a nativa, tendo descoberto o valor do teatro e da poesia como recursos pedagógicos.

É Anchieta o inicIador da literatura brasileira. Sem aceitar que o carregassem, como era costume na época, faz as longas viagens a pé e descalço. Vai a Pernambuco, Bahia, Espírito Santo (Reritiba), volta para o Rio e vem para Santos, São Vicente, Itanhaém e São Paulo. Consegue ser substituído em 1587, vitimado pela doença, mas prefere ao invés de ir para o Rio continuar nas aldeias indígenas - e vai para Reritiba, no Espírito Santo. Nomeado Superior do Colégio da Vila de Vitória, se afasta por doença mas retorna, para morrer no dia 9 de junho de 1597 aos 63 anos de idade e 44 no Brasil, tendo acompanhado seu enterro cerca de 3 mil índios - pelos 90 quilômetros que separam Reritiba de Vitória.

Negociador do tratado de Paz com a Confederação dos Tamoios - que foi traído -, refém dos índios por 5 meses, de abril a setembro de 1564, escreve nessa época o poema da Virgem em latim - em Iperoig, Ubatuba, junto com Manoel da Nóbrega. Anchieta deu aulas de castelhano, latim, doutrina cristã e língua brasílica, tendo escrito livros em língua tupi que falava com facilidade, intérprete dos portugueses no trato com os índios.

Formado na arte do teatro e da poesia, José de Anchieta escreveu também em espanhol e português, além do latim e do tupi, diversos livros e poemas, conhecido por escrevê-los na areia. Ao lado de obras catequéticas, escreve poesias marcadas pela visão do mundo medieval. Beatificado em 1980 pelo Papa João Paulo II - tardiamente, por força das influências anti-jesuíticas do Marquês de Pombal -, seu teatro é inspirado em Gil Vicente, adaptado às festas, comemorações e recepções dos indígenas, sendo sua lírica considerada melhor do que a do mestre modelar.

Seu quadro histórico é que saído de uma Europa que começa a viver o Renascimento e sua filosofia humanista responsável pela transformação do homem, que não chega ao Brasil - que fica na Idade das Trevas com o domínio da Igreja e de sua política religiosa à serviço dos colonizadores e exploradores. Para quem Anchieta abriu caminho, adaptando sua linguagem aos costumes locais.
Dizia que se dava melhor com os índios do que com os portugueses, escreveu em uma carta a Portugal.

Formado em Coimbra, centro cultural aberto às idéias renovadoras, em uma época em que a literatura feita aqui era informativa e destinada aos europeus, ele criou a literatura local. Sem, entretanto, abandonar a atmosfera medieval na forma clássica da lírica portuguesa e o teatro nos moldes dos autos a moralidade e mistério de Gil Vicente. Os autos jesuíticos opunham o bem e o mal, Deus e o Diabo, céu e terra, vida e morte, prêmio e castigo, luz celestial e treva, salvação e condenação, pecado e santidade.

Mas sua maior lição foi descobrir o valor do teatro e da poesia como recursos pedagógicos, inspirado no princípio clássico do “docere cum delectare” (ensinar atraindo, com agrado, do latim), de Horácio, segundo o qual os ensinamentos são mais eficazes se ministrados de maneira agradável, preferindo a lição prática encenada no palco ou difundida pela poesia. O poeta jesuítico conquistava os índios pelos sentidos e para isso povoava seus espetáculos de exibições de luxo, pompa e grandiosidade, além de aparições do demônio em peças montadas sobre estrados em aldeias indígenas, cidades, igrejas e colégios, unindo encenação e canto.

Na linguagem de Anchieta, sua maior lição. Embora lhe atribuam, como escreve Alessandro Campos no seu artigo “Reflexão sobre a Luta Antimanicomial”, a frase “Esse povo não conhece outra linguagem além da chibata e da espada”, caracterizando melhor sua atuação e seu papel histórico como corrente de transmissão da dominação autoritária imposta à nova pelo arcaico pensamento vigente na classe dominante portuguesa que, como membro da Igreja, representava e comandava. Afinal, eram deles os símbolos das caravelas cabralinas...

VII

A CIDADE: HISTÓRIA E AÇÃO POLÍTICA
NA SANTOS LIBERTÁRIA

“Santos, terra bifronte, libertária: minha terra tem areias, eu amo lá ficar; o teu ar é meu todo, fui eu quem se fez teu par. Por amor, me permitam sereias, me deixem morrer neste mar... ” (poema do autor)

Cidade-irmã da cidade italiana de Trieste, de onde vem estes exemplos de uma ação humana e solidária a partir da ação de governo, Santos está localizada na região Metropolitana da Baixada Santista e é uma cidade situada no litoral do Estado de São Paulo, a 70 Km da Capital do Estado. Cidade de tradição libertária e revolucionária por conta dos imigrantes e migrantes que recebeu e recebe, também por conta dos ares renovados de sua natureza bifronte ao mar, é ligada a São Paulo - a maior cidade do hemisfério -, por rodovias e ferrovias. Tem o maior porto da América Latina, com 13 Km de cais acostável, cujo cais foi inaugurado em 1892 – um porto explorado desde 1532, antes do outro lado da cidade, na atual Ponta da Praia, desde 1506.

Santos fez 458 anos em 2004, em se considerando sua fundação como vila por Brás Cubas em 1546. Antes, desde 1506, foi sede de uma comunidade livre e heterogênea composta por portugueses, espanhóis e índios, liderada por um degredado chamado de Bacharel-mestre Cosme Fernandes Pessoa. Que fora deixado em Cananéia como degredado em 1502 – segundo o historiador Francisco Martins dos Santos, por “confabular contra o reino” português. O Bacharel comandou uma comunidade expulsa pelos donos da terra, que aqui impuseram suas mazelas e rigores sociais, que permaneceram com seus (maus) exemplos. Ele veio para cá, fundando no caminho núcleos que se tornaram vilas e cidades. E mantinha ativo o “Porto de São Vicente”, na atual Ponta da Praia, um porto presente em mapas internacionais da época, produzindo barcos e exportando escravos índios. Foi uma das primeiras, senão a primeira, comunidade produtiva do país.

Elevada a categoria de Município em 26 de janeiro de 1839, quando se comemora o Dia da Cidade, Santos – em homenagem ao dia de Todos os Santos, teria sido fundada em 1º de novembro. Tem atualmente cerca de 500 mil habitantes e um espaço geográfico de 474 Km 2, distribuídos entre o centro urbano localizado na ilha de São Vicente (que divide com o município assim denominado), com área de 39,4 Km 2 em que vive 99% da população, com quase 11 mil habitantes por Km2, sua densidade habitacional, mais de 6 mil sub-moradias. E a área continental, do outro lado do porto, de 434,6 Km2, formada basicamente por parques ecológicos protegidos pela legislação estadual.

A cidade atrai 3 milhões de pessoas às suas praias na temporada de verão, tendo um importante uma ampla rede turística e um passado histórico como a terra do “Patriarca da Independência” José Bonifácio de Andrada e Silva – que tem um monumento em Nova Iorque. Santos é o lugar onde passou – e se inspirou - o imperador D. Pedro II antes de proclamar a Independência do Brasil, em 1822. Foi neste porto, aliás, em que as lutas e conquistas de seus trabalhadores chegados de todas as partes do país e do mundo irradiaram – se exemplares para todos os portos brasileiros, desde fins do século XIX e início do XX, como um dos três maiores pólos da luta social brasileira nessa época.

Foi neste lugar, em que 80% dos trabalhadores eram imigrantes, em que se conquistou as 8 horas de trabalho diárias em 1908, conquista local na cidade chamada então de “Barcelona Brasileira” - expressão brasileira do anarcossindicalismo, a maior expressão desta corrente, ao tempo do sindicalismo livre do início do século XX -, depois de “Porto Vermelho” e “”Moscou Brasileira”, pelo empenho de seus trabalhadores e sindicatos, um dos três principais núcleos do movimento operário do país.

Santos foi uma das primeiras cidades brasileiras a conquistar o “shop closed sistem”, o mercado de trabalho da estiva, na prática mundial dos portos - os construtores da grandeza portuária, sistema regido pelo Sindicato, coletivamente, em uma luta de há quase 75 anos. Que foi apoiada, decididamente para sua vitória nos anos 30, pelo então Secretário do Estado da Segurança, o “tenentista” Miguel Costa - companheiro de Prestes na histórica Coluna, que atravessou o país desde 1924.

Costa veio para reprimir o movimento, mas apoiou a organização dos trabalhadores que já atuava no cais, ajudando na conquista que desabou no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Esta cidade praiana foi a terra de quem que fez o homem voar, no século XVIII, do Padre Bartolomeu de Gusmão. Pela primeira vez no mundo, quem criou o modelo do aerostato, o balão que subia aos céus. O Brasil tem o tamanho atual graças ao trabalho do irmão de Bartolomeu, o santista e diplomata Alexandre de Gusmão – que em 1750 fez o Tratado de Madrid, com o apoio do Marquês de Pombal, redimensionando a posse portuguesa das terras brasileiras, então reduzidas.

Terra de militantes sociais do porte de Silvério (o abolicionista, republicano e precursor do socialismo no Brasil, fundador do Centro Socialista de Santos, em 1895) e Martins, ambos Fontes e médicos, este o poeta, terra do fundador dos cursos jurídicos no país, o Visconde de São Leopoldo, a cidade foi a maior expressão da luta operária no início do século XX. A que rasgaria de fato o escravagismo, que tinha apenas abolido seu arcabouço legal – cuja luta abolicionista teve aqui seus maiores momentos e quilombos, no “Território Livre” dos escravos, como era chamada.

A escravidão foi derrubada aqui em fevereiro de 1886, antes da Abolição, assinada pela Princesa Isabel no Brasil em maio de 1888. Santos é a terra de Rubens Paiva, o deputado federal que foi assassinado e jogado no mar pela Ditadura Militar de 1964, de tantos como Mário Covas, cassados nesta época por denunciar a tortura institucionalizada. É a cidade de maior número de políticos cassados no país nessa fase. Aqui se localizou a primeira greve geral do país, iniciada no porto, em 1891, em defesa dos seus trabalhadores. Um século depois uma prefeita, a mesma que tinha feito a intervenção no Anchieta, promoveria uma outra greve geral com os mesmos objetivos da defesa da vida, em defesa dos cinco mil trabalhadores do porto, os que foram demitidos no Governo do presidente Fernando Collor – o que Telma reverteu, reintegrando-os ao trabalho.

Seria a mesma prefeita e a mesma cidade que ensinariam ao país as fórmulas do programa de assistência e redução de danos às vítimas da AIDS, destacando o Brasil no mundo por essa atitude partida de Santos, cujos projetos sociais na saúde alcançaram fama nacional e mundial. Aqui era a “Capital da AIDS”, pelo maior número de contaminados; passou a ser o exemplo nacional de políticas de combate e de assistência aos pacientes, com projeção mundial no setor. Destaque nacional também pela rede de policlínicas que implantou, da rede de assistência social que criou, também despoluindo as praias há tanto tempo contaminadas. Santos gravou a chaga de ser a única cidade do país a ter um navio-prisão , quando era 1964 - no Golpe Militar que vitimou o Brasil, o “Raul Soares”, chegado em um 24 de abril de 1964, logo após o Golpe Militar.

No Raul Soares, por suas idéias de mudança social, dezenas de pessoas foram presas e torturadas, mantidas em degradantes condições e sujeitas a todo tipo de arbitrariedade, com graves violações aos Direitos Humanos. Cidade que teve sua autonomia cassada por duas vezes (1948 – 1953 e 1969 – 1984), um prefeito que não deixaram ser eleito porque comunista e um eleito e cassado por ser negro e socialista, - Leonardo Roitman, em 48; Esmeraldo Tarquínio, em 69 -, cidade que foi vitima de interventores nomeados, mas que resistiu, Santos é este porto maior de metade do mundo, que ensinou à pátria a liberdade e a caridade.

1
INTRODUÇÃO
ANCHIETA, UMA HISTÓRIA, QUE PRECISA SER CONTADA –
para nunca mais acontecer

“Criar uma nova cultura não significa fazer, individualmente, descobertas originais; significa também, e especialmente, difundir criticamente as verdades já descobertas, socializá-las, por assim dizer e, portando, transformá-la em base de ações vitais, elementos de coordenação e de ordem intelectual e moral”
(Antonio Gramsci – 1891/1938)

Este livro é uma história de Santos, contada através de um de seus principais momentos de expressão libertária, de construção democrática e popular em defesa da vida. Esse foi o trabalho executado na extinção do manicômio santista – a Casa de Saúde Anchieta -, a partir de maio de 1989, a primeira das grandes ações do governo municipal da prefeita Telma de Souza. Que não o fez sozinha, mas assumiu com coragem esse enfrentamento heróico.

Foi em Santos que renasceu a luta contra a barbárie dos hospícios no país e é justo que saísse daqui o documento dessa batalha humanitária, narrando uma ação exemplar que irradiou seu sentido para as demais ações desta gestão e para o país e o mundo. Que cuidou da Saúde Mental não apenas de uma maneira acadêmica – mas humanitária, no cumprimento do dever - interrompendo a continuidade de um centro de torturas no coração da cidade às portas do século XXI, cuja descrição sugere ser ficcional. Tarefas executadas como outras que ampliaram a participação popular e os serviços sociais, criando uma rede que seria apenas administrada pelos governos que viriam, plantando o futuro.

Esta ação vem se juntar a uma tradição de mais de cinco séculos, desde a comunidade livre do bacharel, uma experiência de organização social independente dos colonizadores, neste espaço geográfico litoral nas terras conquistadas no século XVI. Cidade conhecida por sua ousadia e rebeldia inovadora, das lutas operárias intensas e de crimes outros como o “Raul Soares”, menos de três meses depois da vitória da sensibilidade e da inteligência contra a violência - a intervenção na “Casa dos Horrores”, em 3 de maio de 1989 -, a 21 de agosto partiria para sempre o “Maluco Beleza”, como chamavam o cantor e compositor Raul Seixas. Era ele que misturava lucidez com “maluquez” e oferecia a sociedade alternativa (“viva, viva, viva”): “Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal, em fazer tudo igual...”. Era um “louco” por opção.

Raul, assim como Paulo Coelho, já estivera em um manicômio (do Edmundo Maia, antigo diretor do Anchieta, só que em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo). Uma clínica bem diferente daqui, para ricos, artistas, terapias e homeopatias, “big chic”. “Raulzito” foi fundo musical genial deste ato santista e mundial, transmitido pela rádio Tam-Tam, a voz dos libertos do Anchieta, cantado a toda hora por mentaleiros e pacientes nas festas intensas que se realizaram na então feliz cidade de Telma. Uma atitude gerada a partir da unidade de um grupo de sobreviventes de 1968, do espírito heróico dos que tombaram na luta do “Abaixo a Ditadura” que escrevíamos nas paredes e nos enfrentamentos armados que vieram depois – um grito que se projetava sobre a Santos Libertária.

Vale a pena ouvir junto à leitura: “Quem não tem colírio usa óculos escuros, quem não tem filé come pão e osso duro, quem não tem visão bate a cara contra o muro”. E foi o que fizeram os primatas da psiquiatria, reveladas as tragédias do Anchieta, nas soluções que se espraiaram pelo mundo a partir de nossas praias. A tradição da reclusão e do isolamento vinha desde séculos, mil anos. Foi o que fizeram com os leprosos na Idade Média repetiram com os miseráveis, os vagabundos, os chamados “loucos” e delinqüentes, excluindo-os para “purificar” a sociedade, como se fosse possível.

A moderna psiquiatria escreve que mesmo que considerados “psiquiatricamente comprometidos” pela ciência acadêmica vigente, os chamados “loucos”, podem viver num clima de liberdade e autonomia e consideração mútua, bastando que se lhes respeite a condição de seres humanos. Não se trata de tingir a loucura com cores românticas: sem dúvida, são pessoas que viveram experiências difíceis, doloridas, dilacerantes, que na maior parte das vezes não encontram uma alocação possível na esfera gregária do sujeito e que resistem as formas de comunicação pelos códigos partilhados. Mas nem por isso essas pessoas são menos humanas, menos passíveis de reconhecimento e de solidariedade.

No Anchieta não era assim, pessoas humanas eram massacradas e violentadas – e essa “propriedade” fazia parte do “establishment” da cidade, afinal posse de um consagrado professor da faculdade de Medicina local, uma das melhores do país. Portanto, foi preciso coragem e vontade política para intervir e extinguir a “Casa dos Horrores” construindo novos paradigmas para a Saúde Mental a partir da desconstituição deste “saber” que fazia sofrer e irradiava sua desgraça para toda a cidade. A intervenção foi uma obra mundial de uma cidade capaz sempre de produzir fenômenos políticos e sociais, desde fazer o homem voar até o país independente com o Bonifácio santista, também o de libertar a vida presa no hospício.

O Anchieta – esse era o nome desta terrível casa “de saúde”, foi fundado em 1951 e tinha, então, quase 40 anos. Quase nada se sabia do que se passava atrás de seus muros, que atravessou uma ditadura (1964-1985). As histórias que corriam sobre o hospício eram tenebrosas, centenas – milhares – de pessoas torturadas. Mas eles, os internos, “eram loucos”. E não importava muito o que se passava ali e nem se discutia se aquelas pessoas podiam ou não ser recuperadas e superar aquela condição. Ficavam “depositadas” e sem esperanças, maltratadas e subjugadas. Falava mais alto o preconceito que negava a existência do que estava a vista de todos.

Depoimentos de funcionários antigos, que trazemos, mostram que a situação sempre foi igual ou pior a dos tempos em que Telma deu um basta à tortura e à violência fascista. Há quase 40 anos era esse modelo, aqui. Se bem que essa realidade não era apenas local ou recente e sim mundial e antiga, secular, era preciso mudar isso, a partir de algum lugar do mundo – e foi daqui que partiu o grito maior de libertação, de um movimento que renascia a partir daqui para país há mais de 30 anos. Lá no Anchieta não se recuperava ninguém, ao contrário, fabricavam-se loucos, inutilizavam-se seres, marginalizavam-se pessoas humanas, se aniquilava e matava a vida e o futuro de gente como a gente. Era um campo de concentração em que existia fome, tortura, maus-tratos, mortes, algo inacreditável neste então final do século XX.

Apesar disso, foi gigantesca a oposição ao ato de intervenção por parte dos setores dominantes da cidade, com suas ações judiciais e sua voz através da imprensa. Afinal, era uma “propriedade privada”, sagrada. Mas até mesmo eles, ao longo do tempo, mudariam de opinião, em função dos resultados positivos alcançados. Os loucos “desapareceram”, tratados em núcleos de uma rede construída. Sorte de Santos, que deu um exemplo de solidariedade humana, que, no governo municipal que assumiu em 1989, com a prefeita Telma, chamou para si a responsabilidade de transformar uma sociedade de excluídos, disseminando solidariedade e a visão do outro, compreendendo os diferentes. E seu primeiro e maior ato foi impedir a continuidade da violência no Anchieta, por tanto tempo admitida e escondida.

“Fizemos a intervenção porque como Poder Público, que tem que zelar pela cidadania e dignidade – e não ser apêndice de interesses privados –, não podíamos fechar os olhos para o que estava acontecendo dentro dos macabros muros do hospício. Aliás, foi o que muitos fizeram sendo cúmplices e coniventes destas barbaridades”

(prefeita Telma, 20 de abril de
1992, jornal Diário do Litoral)


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UM MAIO: NOIVAS, CASAMENTOS
E UMA PREFEITA - nada seria como antes, como cantava Elis

Foi a ação de um grupo social e político de sobreviventes de 1968 e das lutas que se seguiram contra a ditadura, de jovens que amadureceram na experiência da militância política universitária, cultural e reivindicatória, no histórico dos movimentos operários do porto e dos militantes da luta social mais intensa e arriscada, foi neste conjunto em que militou e amadureceu a prefeita Telma de Souza – uma filha de estivador que se tornou vereador, o “Joãozinho do Instituto”. E de Dona Hilda, que se incorporaria à luta representando a cidade no parlamento municipal, após a cassação de Joãozinho. Detalhe: Telma continua capaz de se indignar, é este seu traço.

Em atos de coragem, comandou uma radical transformação da cidade, que nunca mais seria como antes – mesmo nas mãos da classe dominante para que voltaria 8 anos depois de sua posse e do governo do sucessor que fez. Esse movimento que reunificava as forças de contestação e reforma social e se uniram e essa união deu origem a um partido político, formado a partir da oposição aos modelos então existentes das decisões de cúpula, incorporando a partir do movimento operário que renascia após o Golpe Militar de 64.

O novo partido de massas, na sua representação santista organizada desde 1979, consolidando-se em 1980, elegeria em 1988 uma de suas lideranças mais expressivas na cidade, que o haviam construído. Inquieta, sensível, choro fácil, extremamente capaz de indignar-se com o sofrimento alheio (“se és capaz de se indignar com o sofrimento de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, então somos companheiros”, diria Che), ela trouxe à discussão as questões fundamentais da cidadania, junto com intelectuais e setores engajados nas mudanças, velhos e novos militantes de lutas operárias passadas e presentes.

Telma era uma professora – pedagoga -, advogada e com pós-graduação em Psicologia da Educação, pela PUC-SP, com a extensão universitária na London University, liderança desse Partido. Ressurgia uma liderança popular que fora apagada, pela força, na cidade desde a eleição no mundialmente revolucionário ano de 1968 - a de Esmeraldo Tarquínio, cassado em 1969 e que faleceu em 1982. Telma chegava à Câmara Municipal este ano, ocupando o espaço deste que foi um dos maiores líderes populares que a cidade já teve, depois de integrar diversos movimentos sociais. Na Câmara em 1982, Telma seria a terceira colocada nas eleições da Prefeitura em 1984, afirmando o Partido. Seria eleita deputada estadual em 1986, prefeita de Santos, afinal, nessa crescente, em 1988 - com estreita margem, 25,5% do total dos votos, na divisão dos blocos de direita em turno único, o que existia antes da adoção do novo sistema eleitoral. Mas esta conjuntura de uma estreita margem de votos foi revertida através de um trabalho que modificaria por completo o cenário municipal, tanto que lhe daria expressão nacional e mundial nos atos que promoveu na cidade.

O trabalho de Telma à frente da Prefeitura fez com que, ao final de sua gestão, deixasse o cargo com 99% de aprovação em pesquisa IBOPE, 96% pelo DATAFOLHA, elegendo seu sucessor com uma diferença de 30 mil votos, hoje em seu terceiro mandato como deputada federal. Seu governo foi marcado pela reversão de prioridades em direção aos trabalhadores e à população mais pobre, tendo desenvolvido ações como a mobilização da cidade contra as 5 mil demissões no porto do Governo Collor, em 1991 - revertendo o destino imposto à cidade pelo Governo federal no então maior pólo empregador de Santos. Suas políticas em relação à AIDS tiveram destaque nacional e mundial e Telma esteve sempre ampliando e trazendo para a ação organizada os movimentos sociais, junto com os agrupamentos defensores dos direitos humanos, mais os setores corporativos reivindicatórios de ações sociais e setores da antiga resistência armada à Ditadura Militar.

A feição do engajamento do corpo da cidade – sua gente – foi instrumento da ação que alcançaria estes objetivos. Um dos primeiros de seus atos foi o da humanização da assistência psiquiátrica em Santos, dando exemplos para o país. Era mais um dos fatos históricos de Santos, que teve democratizadas suas relações sociais com a criação, em sua gestão, dos conselhos municipais nas áreas da cultura, da saúde, do meio-ambiente, do patrimônio histórico, do porto e outros. Engajando as pessoas diretamente nas transformações, Telma mobilizava para a população para o resgate de direitos e para a garantia das conquistas mesmo após o final de seu governo – quando, por exemplo, os setores conservadores tentaram fechar as policlínicas. Ela vinculara, na participação popular, o povo às suas conquistas.

Após uma difícil vitória eleitoral em 1988, um amplo processo de reversão de prioridades foi executado, com estabelecimento de sistemas de comunicação popular integrado a este processo, recriando o Diário Oficial do Município como órgão de imprensa divulgador das ações da Prefeitura. Era o “D. O. Urgente” distribuído em toda a cidade, democratizando a informação e quebrando o monopólio exercido na área. Tudo isso resultou em uma consagração popular que multiplicaria a cada eleição o apoio em termos eleitorais à titular do Governo Municipal de 1989 a 1992, Telma de Souza.

Que começara, no dia 3 de maio de 1989, logo após a posse desse novo Governo Municipal, ensinando saúde, vida e práticas sociais ao Brasil e o mundo. Em maio de 1989, um prefeito – aliás, uma prefeita –, ousava, humanitariamente. E livrava a cidade de uma chaga tenebrosa, um campo de concentração. Era o mês dos casamentos – e um novo poder político comandava a cidade. A mudança das relações éticas comandou o processo devolutivo da cidadania negada aos pacientes do Anchieta, na ótica da transformação social que, naquele microcosmo, não poderia reproduzir as pressões externas: seria como admiti-las, naquele momento em que a Prefeitura assumia o comando da situação e os humanistas da Prefeitura.

No Anchieta, tudo foi feito com experimentalismo, sem “know-how” do assunto aqui, apenas o exemplo de Trieste, as lições da Itália, indispensáveis. Uma lição que superaram, aplicando e aprendendo, o “dosceo docilis”, tão conhecido dos mestres. Era preciso formar profissionais especializados, o que se fez no exercício prático da intervenção humanista. Esta ação fez emergir o tema da violência das instituições e da instituição da violência, admitida silenciosamente atrás dos altos muros. A cidade guarda na memória aqueles tempos de festa, de uma feliz cidade. Depois de Telma, nada mais seria como antes, como cantava Elis.

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FOUCAULT, MARX E A TEORIA DO MANICÔMIO

“Fazer da palavra uma arma destrutiva e terna,
levar a linguagem ao limite de suas possibilidades” (Foucault)

As torturas e esquartejamentos, marcas de ferro quente nos internos em prisões e manicômios eram comuns até o início do século XIX – escreve o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), quem propôs a ruptura radical com a tradição iluminista e positivista baseada na autoridade e coerção, para quem a liberdade educa. As instituições, esses hospícios e manicômios, sempre foram “casas dos horrores”, como escreve a literatura, seus internos estigmatizados. As instituições repetem a violência da própria sociedade, na evolução do poder punitivo a todos os que divergem e contrariam as normas e postulados da produção em série do sistema capitalista, que tem como princípio a finalidade única do lucro. Esse fetiche obsessivo do capitalismo da reprodução do capital levou à sua desumanização e às guerras de conquista.

A exclusão é a política aplicada aos divergentes, que se mascarou mas que permaneceu, elemento fundamental do sistema econômico baseado na exploração do homem pelo homem, calcada no rebaixamento dos salários, permitindo o que o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) chamou de “mais valia” – a diferença entre o preço pago pela força de trabalho e o valor que o capitalista consegue extrair do produto. É no trabalho não pago que reside o caráter de roubo assentado sobre a sociedade capitalista, que se torna criminosa em suas ações. Nesse sistema, quem não tem e não produz tem valor equivalente – nenhum, sequer como gente.

Fazendo crescer a miséria, a opressão, a escravidão e as guerras, a destruição da natureza transformada em instrumento de produção como o homem - no regime que, segundo Marx, produz seus próprios coveiros, dele e do planeta. São destas políticas que decorre a marginalidade e as prisões, instrumentos repressivos como a polícia e o exército, garantindo a mão-de-obra rebaixada e sucateada, o manicômio e a loucura. Na construção de uma nova sociedade, é mister derrubar seus pilares fundamentais e isto foi feito aqui.

Na perspectiva da imposição globalizadora privatizando os serviços públicos e tendências maximizadoras da exploração do trabalho, bem diferente da globalização desejada de 1868 na Associação Internacional dos Trabalhadores, firma-se o objetivo neoliberal movimentando uma contra-tendência às taxas de lucro do capitalismo em crise, com ataque direto aos salários e ampliação dos horários com precarização das condições de trabalho. Evidente é o fato gerador da loucura. Porém, aceitar uma indústria de tratamento que submete seus pacientes é resignar-se aos ditames do sistema econômico: revoltar-se deveria ser a regra, mas foi exceção. Valeu o exemplo de Santos, que fez a Revolução que a cidade precisava.


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O LIVRO - GHANDI E A COMEMORAÇÃO

“Primeiro eles o ignoram, depois o ridicularizam, em seguida o combatem e, ao fim, você vence” (Mahatma Gandhi)

Trabalho histórico que reporta a concretização, pela primeira vez, de teses mundialmente debatidas desde os anos 40, este livro-registro da epopéia do Anchieta foi iniciado em 1993, encomendado a este autor por um dos idealizadores da ação, o então prefeito David Capistrano Filho. Mas interrompido em sua elaboração há dez anos, foi retomado e concluído neste 2004 – mergulhando nos quinze anos do que foi a profunda transformação e extinção do hospício - um dos pilares fundamentais da estrutura de opressão e exploração em que se assenta a sociedade capitalista, produtora dos desajustes trancados e torturados nestes manicômios. Derrubá-lo, pois, aqui e no país, foi tarefa heróica que legitimou uma proposta política e humanitária, uma tarefa de importância e repercussão mundial, que registramos.

No objetivo de traduzir para um público mais amplo a questão da batalha antimanicomial, a partir de um marco significativo que foi o Anchieta, contamos essa história em um livro-reportagem antes e a partir do reconhecimento mundial desta revolução mundial da psiquiatria, da coragem política que o fez possível - ao revés das políticas públicas aplicadas. Fizemos pesquisas primárias e secundárias, entrevistas, pesquisas, coletamos depoimentos que trazem uma história completa da caminhada da psiquiatria no mundo, no Brasil e em Santos, espaço em que a história narrada é inédita – trazendo informações publicadas na imprensa local, nacional e mundial, também depoimentos inéditos de gente que viu de perto a barbárie. Como exemplo, um funcionário que ajudou a segurar as vítimas de centenas de eletrochoques sem anestesia – 30 por semana, em 8 anos que esteve lá, como que acalmando porcos para o abate.

Trazemos os fatos recentes relativos às ações do Ministério da Saúde no setor, atualmente com suas inspeções aos hospitais psiquiátricos, uma ação determinada a partir dos fatos de Santos. Na narração das reportagens da imprensa dia a dia e ano a ano, de 1989 a 2004, detalhamos os enfrentamentos, discussões e as questões que povoaram estes 15 anos sobre o Anchieta e a intervenção que o modificou, extinguindo-o. Na abertura, trazemos o documento maior da luta antimanicomial – a Carta do filósofo Antonin Artaud - e dizemos de seu sentido, da ditadura da psiquiatria sobre os seres humanos, na lenda do poder e saber que o “filósofo da suspeita”, Michel Foucault, lançou contestação.

Mostramos o sentido lato dessa ditadura, fundamental, de segregar os excluídos na estratégia do sistema capitalista de produção. Falamos, neste livro, da história da cidade, trazendo fatos e análises que revelam nossa origem revolucionária e inovadora, contestadora do modelo colonizador. E a história do Padre Anchieta, que deu o nome ao manicômio, nas raízes locais e denominativas do núcleo analisado e do sentido dessa incursão religiosa no processo de dominação territorial. E pensamos antes: a partir da descrição de um fato ocorrido no Anchieta em 1982, que foi objeto de um artigo deste jornalista no jornal da faculdade de Comunicação da Universidade Católica de Santos, à época Mantenedora São Leopoldo - em que eu estudava -, adentramos ao tema e colocamos os parâmetros legais e constitucionais da intervenção, relacionando os exemplos da literatura sobre o tema e traçando paralelos.

Narramos também a visão da experiência a partir dos jornalistas que atuaram na cobertura do episódio, assim como as contradições dos antigos métodos expostos na crítica de um de seus maiores representantes: Phillipe Pinel, Benjamim Rush, Franco da Rocha e Edmundo Maia, um dos antigos donos do Anchieta, seu teórico, estão expostos às luzes de hoje. À fundamentação teórica das internações contada nos métodos de internação e tratamento da psiquiatria institucional autoritária - dá as bases para as ações que, antecedentes a eles, se sucederiam justificadas. Discorremos, também sobre a estrutura legal da novel Carta Maior de 1988, que possibilitou a intervenção municipal. assim como oferecemos a feição jurídica do tratamento legal aos internos dos hospícios – assim como a reivindicação de indenização aos seus torturados.

Contamos a trajetória do grupo que geriu a intervenção e dos profissionais que atuaram em sua prática, descrevendo seu conteúdo e o caráter inovador da gestão municipal que a praticou, liderada pela recém-eleita prefeita Telma de Souza, desfazendo a cultura manicomial e aproximando os pacientes da sociedade, com atividades lúdicas, de reaproximação familiar e reintegração social, de reingresso no trabalho e atendimento ambulatorial. A repercussão no jornal local da ação interventora da Prefeitura, exercendo o poder para garantir a liberdade – um marco diferencial no histórico das ações da psiquiatria mundial -, no dia-a-dia dos primeiros dias desde daquele 3 de maio, estão em nosso livro.

A dissolução do manicômio, descentralizado nos NAPS – os Núcleos de Atendimento Psicossocial, as estratégias para transformar as “enfermarias geográficas” internas em NAPS externos, tudo isto está presente nesta reportagem. O diretor teatral Renato Di Renzo e sua atuação no episódio, suas origens e ações envolvendo em programas culturais os pacientes, como terapias de ressocialização e a atitude ideológica presente nesse ato. Assim como a memória do quadro existente em Santos -, estão neste trabalho, como elemento essencial, base do redimensionamento das práticas na área da Saúde Mental.

Foram seminários, debates, publicações, programas de rádio e TV, eventos em geral, ressocializantes. Suas raízes, no restabelecimento da linguagem grupal e coletiva, estão colocadas e analisadas. Di Renzo vivenciou a ocupação nos seus maiores atos e desde seus primeiros dias, tendo encontrado diversos objetos que guardou, como um livro-base do pensamento “anchieteano” e uma misteriosa caixa com lâmpadas amarelas dentro com abertura para encaixe no pescoço. Para que serviria?

A descrição do quadro encontrado, seus números e o cenário da Saúde Mental brasileira estão presentes, a história dessa caminhada no país, trazendo como contribuição o manifesto de Austregésilo Carrano Bueno, uma vítima do sistema e expressão nacional do Movimento, que atribui seu renascimento a Santos. Na segunda parte do livro, contamos a conjuntura anterior e as raízes ideológicas da atitude inovadora, além de comentários da lei nacional que se seguiria uma dúzia de anos depois da intervenção municipal no Anchieta, de autoria do deputado do PT, Paulo Delgado, modificando cenário da Saúde Mental no Brasil, integram este trabalho – junto com a análise da questão jurídica do portador de transtornos mentais.

A apresentação recente ao Congresso Nacional do Projeto de Lei do Governo Lula “A volta para casa”, garantindo financeiramente o retorno às famílias e à cura dos pacientes internos nos hospitais psiquiátricos do país, neste início de 2004, era a confirmação da correção das políticas realizadas quinze anos antes aqui, que eliminou a segregação dos pacientes. A caminhada da luta pela libertação dos pacientes de Saúde Mental em Santos e no Brasil, seus fatos e sua teoria, fazem parte obrigatória, oferecendo o panorama e o significado desta etapa. Além do histórico da breve caminhada da psiquiatria no mundo, os antecedentes necessários.

Presente o acontecimento da Lei do vereador santista do PT Ademir Pestana, criando, no registro deste ato da intervenção que fez quinze anos em 2004, o mês de maio como o Mês da Saúde Mental em Santos. Maio é o mês do Dia Mundial da luta contra os manicômios, é o mês da fundação do mais famoso dos hospitais psiquiátricos brasileiros, o Juquery - e também por ser o mês da intervenção no Anchieta, que deu exemplos para o Brasil dos procedimentos no setor, até então carentes de humanidade e solidariedade. A psiquiatra Nise da Silveira, na raiz destes procedimentos, descrevendo seu trabalho, forma a origem dessa “ciência” de resgate dos direitos sociais das pessoas com problemas de transtorno mental e que caíram no sistema do qual difícil era sair. Contamos sobre ela.

Dizemos sobre uma estrutura garantidora da não-intervenção autoritária sobre as mentes humanas, recordando tempos recentes destas ações contra as quais se rebelou a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) no início do século e todo o movimento da nova psiquiatria que se seguiu. Falamos de Bira, o artista do Juquery, com todo o potencial de expressão artística presente nestes pacientes, a quem Nise chamava de “clientes” e que fez ela fundar, em 1926, o “Museu do Inconsciente”.

A “loucura brasileira” e as matizes do sistema econômico que provocam os transtornos mentais, o “taylorismo”, a alienação do trabalho, está descrita. Escrevemos também sobre a vitória da luta antimanicomial no processo movido contra o livro de Carrano – que deu um filme, o mais premiado do país -, “empurrando” as decisões institucionais que se produziram. A questão da eugenia e a visão ideológica de que o ser humano pode ser “aperfeiçoado” por ações determinadas, suas origens nos Estados Unidos e posterior aproveitamento pelos nazistas, são comentadas - ilustrando as ocorrências no Anchieta, que reproduziram essas visões. Contamos sobre Pinel, as novas teorias da psiquiatria, ao seu tempo, o da Revolução Francesa, sob a ótica do positivismo, na síntese da extensa caminhada da psiquiatria no mundo, caminhando para as novas políticas introduzidas no Brasil a partir da Santos.

O significado do psiquiatra americano Benjamim Rush e de seus similares nacionais, destes herdeiros da tradição opressiva que vem dos “psiquiatras do iluminismo” caudatários da Inquisição, é vital para entendimento do processo histórico. Como de Rush falamos dos antecessores e sucessores de práticas desumanas da psiquiatria e tradutoras de um modelo coercitivo. Todos eles, em seus momentos históricos, foram contraditoriamente inovadores, porém cristalizaram suas hipóteses e impuseram seus dogmas ao processo. Revelando as raízes da realidade de Anchieta que encontramos e revertemos.

A questão do trabalho em excesso e da geração de estados mentais alterados está alinhada na palavra de especialistas e dizemos das realizações desta gestão municipal em paralelo, no campo da saúde geral, como o Programa de Internação Domiciliar. E das Policlínicas, integradas por sistema informatizado – realizações que se fizeram aqui pela segunda vez no mundo e pela primeira vez no país, respectivamente, na perspectiva da otimização da Saúde Mental coletiva. São demonstrativos dessa visão de futuro e estão reportadas. A “República Anchieta”, capítulo desta reportagem, conta o que é o prédio do antigo hospital hoje, com seu aspecto de penitenciária, ocupado e administrado como residência coletiva. O cinema que fala das crueldades do tratamento da chamada loucura está presente.

A conclusão pergunta “E o que temos a ver com isso ?”, revelando o quadro da necessária solidariedade social para reversão do sistema de dominação que enlouquece na opressão, privação e exploração. Em 1961, na Itália, picaretas colocam abaixo os muros dos hospícios nas teses de Franco Basaglia, proibidos na Itália em 1978, episódio que descrevemos. Santos levou, em maio de 1989, o país adiante nesse processo humanitário. Palavras finais: fomos à procura do nosso personagem de 22 anos atrás, 7 antes da intervenção municipal, sobre o qual escrevemos na abertura. Não o encontramos, mas soubemos dele por parentes, vizinhos e amigos. Estava vivo, ao contrário das centenas de pacientes que foram aniquilados e assassinados no Anchieta. Era a conclusão necessária. Fica o registro da lição de Gandhi, com a vitória dos mentaleiros.

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OS MÉTODOS E A HISTÓRIA - O Brasil que faz o que Santos fez

“É loucura, mas há método” (Shakespeare)

Não bastassem as denúncias acumuladas, a (má) fama espalhada pela cidade, a divulgação no dia 22 de abril de 1989 de um relatório do SUDS-52, que havia realizado uma inspeção no hospital em março, precipitou os acontecimentos que narramos: denunciava superlotação e falta de pessoal. O relatório avaliava a insuficiência técnica, mas não as condições desumanas de tratamento. A perda de cidadania e de dignidade era o primeiro sintoma visível: era preciso construir (ou melhor, reconstruir) a identidade dos pacientes, delimitar espaços e tempo, enfim, reverter o quadro – humanizá-lo e eliminá-lo.

Com quase 600 pacientes em pouco mais de 200 vagas, sem as mínimas condições de dignidade e higiene, brutalizados e reprimidos, a intervenção em 1989 fez com que em 1992 fossem apenas 80 e, logo, nenhum. Ao invés de apenas humanizá-lo, ele foi extinto, apagando seu papel brutal e constrangedor. Ao tempo – 15 anos – necessário para se extinguir o manicômio de Trieste, o exemplo de Santos, aqui foi necessário apenas um terço, 5 anos. Se criou um programa de Saúde Mental alternativo e se apagou esta mancha que perdurava sobre a cidade libertária, contrária ao seu sentido. Era o produto de uma Administração Democrático-Popular, comandada pela prefeita Telma de Souza, do PT, mudando não apenas o manicômio mas a visão histórica e política da sociedade.

No Anchieta, a realidade de décadas eram os espancamentos, as “celas fortes” – os “chiqueirinhos” em que se trancafiavam os doentes, locais com dois metros quadrados, sem banheiro ou água, onde os pacientes ficavam trancados por dias a fio, em trágicas condições. Lá se mantinham os eletrochoques, chamados “eletroconvulsoterapia”, as “reservas” onde eram colocados os mais violentos, sempre com cerca de cem pacientes nus e jogados pelo chão. Estes “tratamentos” já tinham sido eliminados da maioria dos hospitais psiquiátricos brasileiros, por serem medievais – mas subsistiam aqui. Com os pacientes submetidos à tratamentos inadequados, o lugar se traduzia como um cenário dantesco, onde os mortos surgiam amiúde – 50 em 3 anos -, lugar sujo e violento.

O Anchieta era um mero depósito de seres humanos com problemas de transtorno mental, que segundo a Organização Mundial de Saúde, afetam cerca de 400 milhões de pessoas no mundo. Foi e é uma obra necessária esta ação exemplar da intervenção, que contamos. Mas existem, ainda hoje, 55 mil vagas em 244 hospitais psiquiátricos no Brasil, ao que se revelou muitas em condições análogas às do que subsistiam no Anchieta, embora a ação dos órgãos estaduais, do Ministério da Saúde e do coordenador nacional de Saúde Mental, militante antimanicomial Pedro Delgado – e do governo Lula, com o apoio do ministro Humberto Costa, que é psiquiatra -, estejam reduzindo estes números, que já devem estar desatualizados a estas alturas - para menos, felizmente. O militante antimanicomial Austregésilo Carrano Bueno faz referência a existência de 253 manicômios no Brasil em 2001. Segundo ele, a Rede de Trabalho Substitutivo que propõe no país – como a que foi instalada aqui – gasta 50% do valor necessário, atualmente a terceira maior despesa do SUS - e oferece um serviço sem barbáries.

As razões da intervenção
Diziam às crianças “levadas” da cidade: “olha que te ponho no Anchieta”. Era uma ameaça, uma imagem de terror, o que havia para as vítimas de transtorno mental, a não ser as celas “especializadas” do Segundo Distrito, o “chiqueirinho”. Foi preciso “explodir” esta Bastilha para garantir direitos. O que se está fazendo hoje em nível federal, de outra maneira que é a troca das vagas em manicômios por bolsas que são trocadas por vagas, que não reabrem, tema sobre o qual discorremos.

Existia um medo e um mistério sobre o que se passava ali. Um campo de concentração sobrevivia na área central de Santos, uma cidade historicamente comprometida com a liberdade e os direitos humanos, com as lutas sociais, duramente castigada pela Ditadura Militar. E esta Casa refletia não apenas a última, mas velhas ditaduras e suas torturas...Cercado por altos muros, o Anchieta trancafiava e torturava seus pacientes, seres excluídos, utilizando-se de métodos medievais de tratamento. Era o retrato do panorama da Saúde Mental no país, que em Santos mereceu atenção privilegiada da gestão municipal que se implantava, que a atacou de pronto com repercussão nacional e mundial.

Estudos revelaram e confirmaram-se pela pratica o sucesso das “soluções mistas”, que para pacientes com depressões menos graves, a psicoterapia se junta com a farmacoterapia, interagindo sinergicamente com a medicação para alcançar resultados. Descentralizando, devolvendo às famílias seus parentes, reintegrando e reassociando, Santos exerceu uma tarefa de Estado que é necessária em nível nacional, para recomposição da nação brasileira e de sua gente em patamares evoluídos de civilidade.

A “unidade na ação” de psiquiatras e psicólogos, junto com terapeutas e revolucionários em geral com uma vontade política militante e idealista de todas as áreas, fez possível a transformação. E Santos mas uma vez fez história, o que só é possível na mudança radical dos conceitos e sua operação concreta, anulando a reação de grupos instalados no poder econômico que sucumbem diante de uma nova opção política. Desta feita, os militantes venceram. Agora, estamos fazendo este que é um registro histórico de Santos, nos quinze anos dessa atitude solidária do governo comprometido com as maiorias, de compromissos humanitários.

O ato foi comandado por esta que um dia se elegeu prefeita e que promoveria uma atitude inédita no país, impondo a autoridade popular, delegada pelo povo, para interromper o sofrimento de pessoas humanas. Construindo a lição municipal que guiou as políticas nacionais na área da Saúde Mental, que aqui se escreve com maiúsculas - e que teve também repercussão mundial, exigindo coragem e ousadia. Libertária, esta atitude heróica desenhou os rumos de uma administração pública voltada aos interesses populares, que reverteu as prioridades até então eleitas.

A mesma cidade e gestão que pela primeira vez no mundo distribuiu gratuitamente remédios contra a AIDS, entre outras ações inéditas. Como a que aqui escrevemos, na história inédita da luta antimanicomial em Santos, que é a do Brasil: estão presentes seus momentos e personagens, que resgatamos para a nova história que estamos escrevendo. Ensinou aqui e no país, onde se desenvolvem projetos que apontam para extinção dos manicômios e a efetiva proibição das torturas, que permanecem. O que era tese, discussão, debate, aqui virou prática, pela primeira vez no Brasil. Como no pensamento latino:

“A Grécia pensou. Roma, pragmaticamente, fez”.
Santos fez. O Brasil precisa fazer.

6
O VELHO E O NOVO NA FELIZ CIDADE

“Autres temps, autres moeurs”: cada época tem seus costumes, diz o pensamento. Mas há os que sobrevivem ao revés da evolução necessária, por conta dos interesses dos mantenedores de sistemas desumanos. De tempos em tempos, entretanto, surgem vontades individuais e coletivas capazes de reunir vontades para modificar a velha ordem e introduzir o novo, fazendo presente o inexorável progresso popular, oriundo desse esforço de mudança. O Anchieta era o exemplo desse passado e sua evolução foi produto da vontade reunida no coletivo, por vontades fortes que fizeram valer o futuro. Uma prefeita que, fazendo uma cidade mais participativa, mais feliz, mais solidária, mais humana, gerava mais vida e reduzia as tensões – com mais Saúde Mental. Diz o princípio iluminista que na sociedade coletiva, a liberdade oprime e a lei liberta, o que se fez com a prática da intervenção que a lei permitia, bastava uma interpretação popular.

Esta, por sua vez permitiu aplicar a liberdade como método de cura dos problemas mentais, apesar de negada secularmente em que optaram pela coerção e pela repressão ainda mais enlouquecedora. Esta história é de Santos e tem lugar na trajetória mundial da psiquiatria e da psicologia. Procuramos contá-la, buscando traduzir a experiência médico-científica para seu significado de conquista popular, que foi de fato – dissolvendo a sombra que ameaçava a todos. No Anchieta, o diagnóstico de “loucura” justificando a internação poderia ser dado por qualquer policial e um rápido exame preliminar do médico, há exemplos registrados. Eles escreviam na ficha “esquizofrenia” e isso acompanhava a pessoa pelo resto da vida, em um país que já teve mais manicômios no mundo, criados como atividade econômica de internação e tortura de pobres revoltados.

Quando o mundo questionava os manicômios, o Brasil os construía. O fim deste terror, esta conquista foi da prefeita Telma – presente desde os primeiros passos dessa luta de desmonte do aparelho opressivo, uma década antes -, e do grupo reunido para executar aqui as mudanças exigidas. Foi a atitude antimanicomial que hoje revela ações do Governo Lula, que, ao lançá-las, lembrou a ex-prefeita emocionada. Oriundas daqui, cidade de exemplos libertários, para extinguir com esta lembrança medieval. Fome, frio, torturas, Pessoas simplesmente bêbadas sendo internadas e tratadas como loucos sem cura, piolhos, pulgas, doenças diversas, lixo. Choques, agressões, surras, celas fortes. Tragédias humanas no meio da cidade que se pensava livre do regime dos campos de concentração nazistas, mas que os escondia.

Outra vez, Santos marcou seu lugar na história e aqui fazemos o registro deste marco – porque tão importante como as conquistas dos trabalhadores que esta cidade irradiou na Abolição e expansão dos direitos humanos. Esta é a nossa “história oficial”, que tem ai sua beleza e amor em um cenário de crueldade, tomada dos que a escreveram no interesse de estreitos grupos, oferecendo versões ao seu interesse. Esta foi no das maiorias, guiou políticas que transformariam a cidade e a sociedade, apontando o norte de um novo mundo onde caibam todos os mundos, como escrevem os seguidores do revolucionário mexicano Emiliano Zapata, os zapatistas. Com dois meses de uma nova Constituição federal que forneceu a base legal da ação municipal, Santos, uma das primeiras cidades brasileiras a implantar o SUS com apenas dois meses de vigência da Carta Maior, tinha dentro de si o Anchieta, nome do hospital, extraído do nome do jesuíta José de Anchieta, personagem da colonização.

Este foi um membro da Companhia de Jesus, corporação da Igreja Católica cujos símbolos vieram nos navios da descoberta. Foi esta corporação que, com Anchieta em 1554, fundou a escola que iniciava a colonização européia no que seria São Paulo, os Campos de Piratininga no planalto. E que viera convencer – catequizar, impor - os índios na fé católica, introduzindo-os no sistema de exploração agora vigente na terra ocupada pelos portugueses. Eram outros os tempos e seus líderes, à época do nascimento da sociedade brasileira tal como ela é, trazendo intrínsecos estes valores de dominação econômica, que os Jesuítas vieram representar em termos ideológicos. Donos de uma “ciência” pronta e acabada, herdeiros da Inquisição, não seria diferente esta psiquiatria aplicada aqui, que aqui mantinha um núcleo de violência física e moral contra pessoas humanas, submetidos a graves condições de existência.

Sua humanização, embora necessária, não seria o bastante na promoção daqueles seres, também na idéia de uma projeção modificadora das relações sociais. A Casa de Saúde Anchieta existia, então, há quase 40 anos, já internara cerca de 80 mil pessoas e era chamada “Casa dos Horrores”, inicialmente sediada na avenida Ana Costa número 168. Era especializada no tratamento de ”doenças nervosas e mentais / repouso / alcoolismo / sífilis nervosa / desajustamentos emocionais”, como dizia seu anúncio em A Tribuna em agosto de 1951, na sua fundação. Nesta época, em que narramos esta história de Santos, ela ficava na rua São Paulo 95, Vila Mathias – em uma construção com traços exteriores modernistas, anos 50, e com “jeitão” de penitenciária internamente, em que faltava o raio de sol.

Objeto da ação determinada, a Casa de Saúde Anchieta foi alvo da intervenção do Poder Municipal em 1989, humanizando-o inicialmente e, posteriormente, extinguindo-o em definitivo - como seu objetivo primeiro, dada a imoralidade de sua existência como um campo de concentração na cidade. E historicamente, como instituição no mundo – negada em sua eficiência e papel. Era prisão e depósito de excluídos. O fato interventor ocorrido aqui repercutiria no país e no mundo, através de todas as redes nacionais de televisão, rádios e jornais, mostrando os novos tempos que chegavam por Santos. Mostrando que um manicômio não pode ser simplesmente melhorado ou humanizado, mas se exige extinto para revelar evolução.

O objetivo deste resgate histórico de caráter mundial, cientifica e politicamente reconhecido como um passo decisivo de sanar os desvarios desta cidade, foi atacar este sustentáculo da secular opressão do homem pelo homem, que se faz através da exclusão de um universo cada vez maior de pessoas, que não tem como agente principal os seres humanos, meros instrumentos da produção econômica, feito objetos. O Anchieta, palco de crimes praticados contra seres rebaixados em sua natureza, foi derrubado pela ousadia de um grupo político que reuniu os resistentes à Ditadura Militar - e que propôs saídas alternativas ao modelo conservador e tradicional que dominou por séculos a cidade. Uma reserva de soldados da resistência que sobreviveu aos “Anos de Chumbo”, que viveu o 1968 da Revolução juvenil.

No rumo acelerado do capitalismo que despreza o ser humano, na aplicação da idéia da produção de bens de forma barata a partir da exploração da mão de obra, ampliando assim os lucros – reduzindo salários e direitos sociais, impondo o desemprego e a insegurança -, se formulou uma equação geradora de desajustes chamados de “loucura”. Era essa a psiquiatria, a aplicada no Anchieta, integrada ao regime de opressão e exploração subsistia – e subsiste – com verbas oficiais da saúde – da vida – para acumulação privada dos mercadores da loucura, os empresários do setor. Que conseguiram se manter mesmo após às mudanças democráticas - continuando com as “terapias” tradutoras de extrema violência e coerção similares às torturas aplicadas aos presos políticos, aliás derivadas delas, oriundas, antes, dos tempos da Inquisição católica. Fazemos este retrato.

Era a base do sistema econômico fundamentado na exclusão que, aqui, começou a ser derrubado com exemplos para o país que frutificaram. Foram ações deste governo da Unidade Democrática Popular, como a intervenção na empresa de transportes, em relação às crianças e à população de rua, às vítimas da AIDS, às adolescentes vitimadas pela exploração sexual, na proteção aos idosos - ações derivadas de um único perfil de ação política transformadora da realidade local, gerando exemplos para o país e para o mundo, em uma gestão que começou com a singela derrubada das cercas colocadas em volta da praça Independência, monumento à liberdade.

Diversos atos desta natureza de ruptura social do modelo assentado foram adotadas por este grupo político, alinhado com as concepções de tomada da responsabilidade pelos poderes públicos de seu papel social, aliados a setores profissionais e intelectuais atrelados a um humanismo inerente às questões em debate. Aliados aos sobreviventes dos enfrentamentos e a resistência aos ditadores de 64 – quando há um lapso no progresso social e cultural do país. Mas nenhum outro setor atacou – e teve sucesso – como este, que seguiu o que disse Gramsci: “O progresso não será alcançado com sonhos utópicos, mas com uma longa marcha através das instituições”. Mas não seria utopia sanar injustiças a partir de uma pequena comunidade litoral? Valeu a tradição da Santos Libertária, buscamos esta amnese.

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A TRADIÇÃO AUTORITÁRIA
E O FIM DOS MANICÔMIOS NO BRASIL
uma conquista traçada a partir da intervenção no Anchieta

Utilizando a internação psiquiátrica com elemento institucional de controle social desde o século XVII, sucedendo e disciplinando a Inquisição católica que se tornou laica, esse método de “tratamento” das doenças mentais, que nunca curou ninguém, vem sendo contestado mundialmente desde os anos 40. Mas foi aqui que estas formas se aplicaram concretamente pela primeira vez, com a mobilização popular dos setores atingidos direta, indireta e ideologicamente engajados. Esse método de participação popular aplicado aqui, alem do seu papel de fazer com que fossem alcançados os objetivos seculares do Movimento Antimanicomial em tempo recorde, graças à participação dos familiares, vizinhos e comunidade - foram necessários dois terços do tempo do que o mesmo processo levou para ser executado no modelo exemplar de Trieste, na Itália -, fez com que as mudanças se consolidassem “na base”, construíssem um castelo inexpugnável e indestrutível de face humana.

Por isso Santos foi a cidade que traçou o rumo do fim dos manicômios no país, que já tem cronograma nacional. Fosse a sociedade estratificada e atacada em cada um de seus fundamentos, com a competência desta ação de um exército humanitário e o destino da sociedade seria outro, distante da triste realidade de nossos dias, uma utopia. E a utopia é apenas algo que ainda não foi realizado. Um exército humanitário convocado em todo o país (“uma brigada internacional”, apelidou Zanetta), composto por psiquiatras e médicos de todas as especialidades, psicólogos, terapeutas ocupacionais, artistas, teatrólogos, enfermeiros, auxiliares e enfermagem, dentistas, marceneiros, arquitetos e assistentes sociais, jornalistas e diversos outros profissionais e militantes, com apoio da comunidade local, nacional e internacional mobilizada, atendeu de pronto o convite e veio para esta revolução que se efetivava. Tal como na Espanha, na luta contra o fascismo na Guerra Civil, no final dos anos 30 do século passado. Só que nesta a brigada venceu.

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ENSINANDO A DIGNIDADE HUMANA:
OS PASSOS DA MUDANÇA NO ANCHIETA

Escolhido como referência para a América Latina nos processos de desinternação e prevenção em Saúde Mental pela Organização Mundial de Saúde e pela Oficina Pan-Americana de Saúde – OPAS -, repercutido a nível internacional, este trabalho foi a coroação de um projeto para o setor desenvolvido em Santos há mais de uma década, propagando uma ideologia humanitária que se espalhou pelo país. Fazendo justiça e resgate às tradições da cidade, Santos impunha sua marca de inclusão social – abrindo as portas de um hospício-prisão, um verdadeiro campo de concentração cercado por altos muros e sustentado por verbas públicas rentáveis para seus donos. A cultura da gestão municipal 1989 - 1992 foi, desde esse passo, incluir os excluídos, devolver cidadania e liberdade aos contingentes preteridos em todos os campos, começando pelas crônicas vítimas desse processo de violência secular, que permanecia, fazendo história.

A Prefeitura fez a mudança e integrou soluções inéditas, com técnicos da psiquiatria, atendendo aos até ali jogados no lixo da sujeira e da morte. A cidade que primeiro colocou em prática os instrumentos da municipalização da saúde incorporados pelo SUS - Sistema Único de Saúde, antes mesmo de instalar o sistema de policlínicas, promoveu o saneamento desta chaga com que Santos não podia conviver. Foi a primeira ação de defesa popular de Telma. Viriam muitas. Há 15 anos, Santos era, outra vez, libertária, no mês das flores e casamentos. Ela, a prefeita, chegava eliminando métodos segregadores de pessoas humanas, quem iniciou o resgate dos direitos, começando pelas mais oprimidas. E derrubou as paredes da opressão da “Casa dos Horrores”, como chamavam o Hospital Anchieta, um verdadeiro campo de concentração que não perdia em nada para os campos nazistas, como ela mesmo discorreu.

Como primeiros passos, foi preciso realizar a identificação individualizada de cada um dos casos, para sua revisão, com a criação de um sistema eficiente de registros, que não existia, o que foi feito após a mobilização da comunidade que acorreu em apoio à medida, trazendo desde alimentos até pastas de dentes e demais itens de higiene pessoal, no envolvimento necessário. Que a partir dali pôde entrar, cantar e se divertir junto com os pacientes, antes isolados, eles mesmos enfeitavam o ambiente para receber famílias e visitantes. Eram outros aqueles tempos propiciados pela nova mentalidade que vigia. Com a estabilização das mudanças, a Casa de Saúde Anchieta e o Programa de Saúde Mental de Santos tornaram-se nacionalmente conhecidos e despertaram interesse da comunidade acadêmica.

Fizeram parte desse processo estagiários das áreas de psicologia, Serviço Social, Comunicação, Terapia Ocupacional (USP), Direito e Educação Física, entre outros. Foi feito um programa de intercâmbio com a Escola Paulista de Medicina, junto ao Departamento de Psiquiatria e os avanços alcançados firmaram-se de modo insofismável, obtendo apoio da comunidade local. Em pouco mais de um ano a intervenção na Casa de Saúde Anchieta transformou radicalmente a assistência à Saúde Mental na Baixada Santista, seguindo as diretrizes do Ministério da Saúde na primeira Conferência Nacional de Saúde Mental, em julho de 1987, assim como do Sistema Único de Saúde - SUS.

Eles apontavam para a necessidade de superação do atual modelo assistencial, centrado nos asilos psiquiátricos, devido ao seu potencial efeito cronificador dos problemas originais que levavam às internações. Era preciso substitui-los por serviços extra-hopitalares e comunidades terapêuticas, de acordo com as diretrizes da Organização Mundial e Saúde. Isso motivou a decisão da Oficina Pan-Americana de Saúde – Organização Mundial de Saúde (OPAS / OMS) de enviar um assessor deste organismo para cooperação técnica com o Programa de Saúde Mental de Santos.

Na seqüência deste projeto, estava a gradual descentralização dos serviços da Casa de Saúde Anchieta, criando o ambulatório, centros de convivência, núcleos de Inserção no Trabalho e os Núcleos de Atenção Psico-Social, os NAPS. Era neles que residiria o objetivo da dissolução do manicômio. Este processo produziu efeitos terapêuticos, com a redução do número de internações e atendimentos, do tempo de permanência, diminuição da taxa de ocupação e, concomitantemente, com menos pessoas atendidas nos serviços extra-hospitalares. Caminhando-se, assim, para o estabelecimento de um serviço tecnicamente qualificado e condizente com os direitos de cidadania e de dignidade humana.

O “Corpus Hipocraticum”, o juramento de Hipócrates, fundador da Medicina (460 – 377 A.C.), é a base do questionamento ético nos procedimentos em relação à saúde humana. Cada sociedade tem, em razão das variáveis sócio-políticas, a sua moral em relação à saúde humana e aos limites de intervenção, a ética em movimento. E as condições de dignidade da população são elementos vitais para sua felicidade e estabilização política e social.
9
OS APOIOS AO ATO SOLIDÁRIO

Entre as centenas de apoios de todo o mundo recebidos pela prefeita pelo se gesto no Anchieta, figuram a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, SP, Centro Studi Regionali per Salute Mentale Del F.G.V., Psiqhiatria Democrática Triveneta, Service Salute Mentale di Trieste, sindicatos de trabalhadores, conselhos profissionais, prefeituras, governos estaduais, entidades nacionais de trabalhadores de Saúde Mental, movimentos de moradia, Centro de Psicodrama Psicanalítico Grupal de Buenos Aires.

As três entidades de Assistentes Sociais, Associação Nacional, Sindicato e Conselho paulista prestaram apoio.Prefeitura e secretaria de Saúde de Campinas e Jaboticabal. Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco e secretarias de Saúde de vários Estados fizeram manifestações de apoio, como da Bahia e Rio Grande do Sul, também a da cidade de São Paulo e a Equipe Técnica do Centro de Atenção psico-social Professor Luiz da Rocha Cerqueira. Hospital-Dia A Casa de São Paulo, deputados como Jamil Murad e muitos outros parlamentares se solidarizaram por este ato de progresso popular.

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MAIO, 1982: 7 ANOS ANTES, O AUTOR
DENUNCIAVA O ANCHIETA NO JORNAL UNIVERSITÁRIO

Por uma dessas coisas que só destino pode explicar, foi no jornal - laboratório da Faculdade de Comunicação da Unisantos, que 7 anos antes da intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta, em maio de 1989, também em um maio - de 1982 -, que este autor fez uma matéria-denúncia sobre a tragédia da “Casa dos Horrores”, existente, então, há 31 anos, no texto que reproduzimos. Eu, que me sinto enjoado e indignado contra o sofrimento, depois de ter acumulado e atuado contra as brutalidades e injustiças sociais, estudando jornalismo no propósito de uma ação de transformação social, minha oportunidade desse ”furo” jornalístico se dava com o episódio ocorrido com uma pessoa próxima, filho de uma amiga da mãe deste autor – vítima da barbárie do Anchieta. Internado ali por problemas com drogas, quase foi levado à morte por torturas e maltratos que recebeu. Conseguiu sair e relatar para os “de fora”: poderia ter sido mais uma vítima da “Casa dos Horrores”.

Mas sobreviveu. Hoje, quinze anos após a intervenção no Anchieta, vinte e dois anos após o episódio em que denunciei a instituição no jornal universitário 7 anos antes, cinqüenta e três anos depois da fundação da Casa de Saúde Anchieta, chega a oportunidade de, outra vez, escrever sobre o tema – em outro tom e em outra época. esta é uma história que fala de uma sombra, uma chaga e uma ameaça à cidade libertária - e reporta os que chegaram para trazer humanidade à cidade, devolvendo os dizeres à seu brasão: à pátria ensinei a caridade e a liberdade. “Patriam charitatem libertatem docui”: a liberdade é fruto de ti. Desta feita, historiamos a revolucionária intervenção municipal - que promoveria uma ruptura nesta trágica história, através da modificação radical das terapias existentes no país, considerando que ali estavam seres humanos. A oportunidade de contar este episódio tem o significado de desforra contra os que marginalizam, maltratam e matam seres humanos, em uma sociedade discriminatória e cruel, que em ações como esta começamos a reverter.

Nosso personagem, real, quase perdeu a perna, que por pouco não teve que ser amputada. Denominada “Cura ou loucura”, a reportagem deste iniciante jornalista, que escolhera a profissão como especialização em denúncias sociais, traça a história vivida pelo jovem de 20 anos na sua curta estada no Anchieta, como conta, “...um testamento vivo do tratamento dispensado aos pacientes com problemas mentais no país”. Voltamos ao tema, vamos ao texto de 22 anos atrás:

CURA OU LOUCURA?

O relato do jovem C.E.T.G., de 20 anos, sobre sua curta estada no Hospital Psiquiátrico Anchieta, é um testamento vivo dispensado aos pacientes de problemas mentais no país. E esse exemplo fica aqui bem pertinho de nós, nos fundos da Beneficência Portuguesa, onde se localiza o Hospital. C.E.T.G. foi internado pela mãe no dia 20 de abril, depois de chegar em casa sob os efeitos do Optalidon – um estimulante proibido, mas facilmente conseguido nas farmácias. O estado eufórico é seguido de um estado agressivo e violento, o “revertério”, que sua mãe já conhecia de outras passagens.

Hoje, junto com a mãe, ele descreve o “pavoroso” ambiente que encontrou – graças ao qual foi obrigado a andar nu, viu os funcionários tratarem brutalmente os demais doentes – “dos abandonados” e foi sem causa aparente trancafiado em uma “cela forte”. Lá sofreu uma queda “na verdadeira cela de presídio que é” e infeccionou o joelho. Com dores e febre, ficou por uma semana implorando cuidados dos médicos, sem que lhe dessem ouvidos.

No dia 1º de maio, como seu estado piorasse, os enfermeiros pararam de responder “só amanhã” e avisaram sua mãe. Correndo para buscá-lo, ela internou-o às pressas no Pronto Socorro de Fraturas São Lucas, onde ficou. De acordo com o médico que o recebeu, se demorasse algum tempo mais teria a perna amputada. Foi um método ingrato de me fazer voltar à realidade”, confessa C.E.T.G. “Não aconselho ninguém a passar o que passei. Agora quer mais é saúde, depois desse tratamento de choque”.
José Paulo de Oliveira Matos


Era o exercício da denúncia no jornal da escola. Sete anos passariam até o mesmo maio da intervenção. Vinte e dois anos depois, instituímos Maio como o Mês da Saúde Mental em Santos, pelo exemplo que deu ao país e ao mundo no setor este ato humanitário, tema sobre o qual discorremos. Entre estas datas, uma ocorrida há uma década e meia, fazia história, obra da vontade política de uma personagem oriunda das lutas sociais e que ocupava o cargo de prefeita em 1989: era a intervenção municipal no Anchieta, “em defesa da dignidade humana”, como dizia a faixa fixada na porta do prédio da rua São Paulo, detrás do Hospital Beneficência Portuguesa, em frente ao seu necrotério.

Em 1982, a Casa de Saúde Anchieta era o mesmo campo de concentração de 1989, no meio da cidade, em fins do século XX. Existia há 31 anos - e se espalhavam tenebrosos sussurros sobre o que ocorria por trás de suas paredes. A intervenção humanitária, interrompendo a brutalidade exercida há 4 décadas, desde 1951, foi um dos primeiros atos de gestão da Administração Democrática Popular liderada pela prefeita Telma Sandra Augusto de Souza – a 120 dias de sua gestão, o primeiro dos atos que repercutiram nacional e internacionalmente. Neste trabalho, pois, retomamos a denúncia e cumprimos a tarefa de narrar sua extinção.

Ao mesmo tempo, 7 anos antes, um então aluno de Medicina, Sérgio Zanetta, no estágio de psiquiatria, visitava o Anchieta com seu professor – ninguém menos que Edmundo Maia -, quando não aceitou aquela realidade e teve com ele “uma pequena diferença”, diz. Mas 7 anos depois, ele contribuiria para exaurir aquilo que recusara aceitar como aula. Antes, em 1980, em junho, se realizava em Santos o I Seminário de Saúde Mental da Baixada Santista. A conclusão é que “os maiores loucos são aqueles que estão no poder”, conforme a ampla matéria de duas páginas do jornal A Tribuna, assinada pelo jornalista Lane Valiengo, em 15 de junho de 1980. Nascia organizada a ação libertária da anti-psiquiatria, que iria frutificar.


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A LOUCURA QUE SE PRODUZIA NO ANCHIETA,
COMO NO CONTO DE GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ

“Tudo que é sólido se desmancha no ar” (Marx e Engels)

No rumo para o futuro e por ato de vontade comum, o Anchieta desapareceu, como edificio da ordem antiga: restou um prédio com “jeitão” de penitenciária. Era um aparelho do sistema dissolvido pelo avanço popular. Lá, não internavam-se “loucos”: as pessoas eram encarceradas, embora sem condenação, e torturadas, o que é proibido aos presos comuns. Uma penitenciária é um paraíso perto do que foi esse manicômio, pois lá produzia-se loucura, autêntica e original. É Alfredo Naffah Neto, mestre em filosofia na USP e doutor em psicologia Clinica pela PUC, que analisando um conto de Gabriel Garcia Márquez - denominado “O estigma da loucura e a perda de autonomia” – mostra como isso ocorre. É um dos contos do livro “Os doze contos peregrinos”, do autor.

“Só vim telefonar” conta a estória de Maria Luz de Cervantes, casada com um mágico de salão, o Mago Saturnino, que tem seu carro quebrado na estrada e pede socorro para os veículos que passam. Quem pára para ela é um ônibus estranho, cheio de mulheres sonolentas envoltas em cobertas. Ela não sabe, mas são as loucas de um hospício – e que nessa situação existe apenas uma porta, a da entrada. É difícil sair, às vezes impossível. Maria dorme no ônibus, chega ao destino e mandam-lhe entrar em uma fila. Pede por um telefone e respondem-lhe com ironia, sem contrariá-la, como manda a regra no trato com os loucos: “Depois, depois”. Alguém viria a um hospício só para telefonar? Se estava no ônibus e se não era funcionária é louca, consideraram, ainda que não tivesse registro – mas isto era de menos.

O pedido insistente do telefone que ela precisa para falar com o marido vai sendo adiado infinitamente. Ela suplica, tenta fugir, fica horrorizada com o que vê e o que sente, se rebela – e estes são “indícios de loucura”. Logo Maria recebe uma inscrição com número de série, qualificação e um diagnóstico: “agitada”. Pronto, ela está rotulada. Tenta fugir, recebe injeção de terebintina nas pernas, para que a inflamação não permita a locomoção. Fica ensangüentada ao se atirar contra uma vidraça, é amarrada. O marido finalmente a descobre no hospício, ela lhe telefona quanto tem acesso ao aparelho, o que consegue após seduzir a guarda da noite, Herculina, em troca do telefonema. O marido, então, conversa com o diretor - mas este descreve a “gravidade” do caso de Maria e lhe convence da necessidade de contê-la ali. E o mago Saturnino acredita na autoridade médica, que tem poder absoluto, credibilidade inquestionável: “Puxa, era ele temperamental, mas chegou a isso!”. Ela se desespera ao ver que o marido também fora “capturado” pelo sistema e incorpora a loucura, reage aos gritos. Está “louca”, finalmente.

Esta é uma loucura produzida socialmente, construída parte por parte, detalhe por detalhe, desde a carona no ônibus na estrada. A perda de autonomia decorre dessa série de eventos casuais, em que o “louco” se torna um “sub jectum”, um sujeito, aquele que subjaz as ações, às enunciações do discurso. A doença mental se instala quando a marca lhe foi aplicada, suas manifestações passam a ser “sintomas” e não expressões, é incapaz de decidir o seu destino sobre o que faz ou para onde vai, se torna um fantoche nas mãos do médico. Essa condição justifica sua internação, os remédios, eletrochoques, sua tutela gerida pelo poder / saber do médico psiquiatra. Quantos casos semelhantes existiram? A recusa desse poder médico em decidir sobre o destino das pessoas é uma obediência ética. É a vanguarda da psiquiatria e do bom-senso que dizem isso.

“Nós, os psiquiatras, estamos abdicando de todo o poder que nos foi conferido, em busca da integração com todas as áreas. Estamos ao lado dos oprimidos e não do opressor”.

(Psiquiatra Domingos Stamato, A Tribuna, em 15 de junho de 1980)

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O ANCHIETA E SEUS ELETROCHOQUES: ALTA VOLTAGEM

“Eletrochoque? Só para assar frango” (psiquiatra Suzana Robortela)

Eletrochoque no câncer: Alemanha, anos 40? Não, era Santos
Uma adolescente chega ao Anchieta chorando, porque havia brigado com os pais. E foi diagnosticada como louca rapidamente pelo médico, eletrochoque nela. A tia de uma depoente, que fora internada no Anchieta pelos gritos espantosos que dava, tomou doses cavalares de “medicamentos”. E muito choque elétrico, que transformam a paciente em doente mental. Depois, descobriram que ela tinha câncer avançado e esta era a razão dos gritos. Mas já era tarde. Estagiários depõe sobre os conflitos com os médicos em função dos diagnósticos feitos em cinco minutos.

“Era gangsterismo mesmo”, escreve a reportagem de A Tribuna em 1980. Nessa época, falam de peruas Komby recolhendo pessoas nas ruas e jogando no Anchieta, com o tratamento conhecido. Alemanha, anos 40? Não, era Santos. Existem relatos (“A caminhada da luta antimanicomial em Santos”, capítulo XXX) da aplicação de eletrochoques e celas fortes para quem fosse pego cantando no Anchieta. Eram aplicados 4 ou 5 eletrochoques por dia, sem anestesia, segundo a descrição de quem aplicava esse “tratamento” descoberto com excelente amansador de porcos para o abate. O que os porcos achavam dele nunca foi perguntado.

Dona Elza, hoje com 69 anos e morando na rua Liberdade, é ex-funcionária e trabalhou no Anchieta durante 8 anos, isso há mais de 30, tendo ajudado a aplicar centenas de eletrochoques. “Os médicos que aplicavam os eletrochoques eram o Dr. Wilson Cortes, o Dr. Sebastião, o Dr. Aníbal e o Dr. Orlando Vaz”, conta. “Eu ajudava a agarrar as pessoas e elas ficavam se batendo, depois saiam desacordadas, só voltavam depois de 15 ou 30 minutos”, diz. “Paguei todos os meus pecados”.

Tratando gente como porcos
Adelma Matos, esposa deste autor, quando criança viveu em uma fazenda em que, às vezes, se matavam porcos. “Nestes dias – diz – eu saia de casa, tamanho é o escândalo que o animal faz. Eles sentem que vão ser mortos e é um sofrimento pegá-los. Fortes e violentos, mordem e se debatem, desesperados. Guincham alto, terrível e angustiante, tristes. O som vai longe. Para eliminar o problema, inventaram o eletrochoque, tratando gente como porcos”. Como eles acalmavam, resolveram aplicá-los em pessoas humanas, desconsiderando seus efeitos de médio e longo prazo, danos permanentes. É evidente o direito das vítimas dos eletrochoques à indenização. É a única terapia dos anos 30 que subxistiu até hoje.

Imagine-se amarrado e submetido a choques elétricos. Isto era possível em Santos, bastava uma vontade, podia ser qualquer “otoridade” – um PM, policial civil e até mesmo um Guarda Noturno. Era mandar o cidadão para o Anchieta e em alguns minutos ele estava catalogado – louco! -, e nunca mais iria se livrar dessa marca. Em 1989, há quinze anos, existia um hospício - asilo, um manicômio, um hospital psiquiátrico -, na área central de Santos, que desrespeitava a dignidade e os direitos humanos dos pacientes. Quase 600 deles eram submetidos à fome, jogados pelo chão e sujeitos ao frio, aos maus-tratos, à ausência de qualquer higiene, camas ou móveis, aos eletrochoques, às doenças, de uma simples sarna até as mais graves, hipertensão, diabetes,diarréias, piolhos. Era uma ameaça para qualquer pessoa, daqui ou de fora, que fosse cair lá.

E foram muitos os casos, por motivos diversos: bastava ser “diferente”, às vezes nem tanto, uma bebedeira e pronto. Até estrangeiros, por não serem compreendidos na sua linguagem, acabaram internados. Para cada interno, uma fatura SUS, quanto mais gente melhor. Pessoas com câncer terminal sendo internadas como doentes mentais e tratadas com choques elétricos. Bêbados internados como loucos, eletrochoques para todos. Foi nessa instituição, uma fábrica de malucos, que a Prefeitura interveio em 1989, episódio que foi reportado em milhares de notícias e trabalhos universitários na cidade, no Estado, no país e no mundo.

Segundo o psicólogo Rivaldo Leão, o eletrochoque tem indicação certa e específica para depressão, em caso de não reação em outros tratamentos, aplicada para que o paciente não chegue ao suicídio. Destaque-se que esta terapia tem restrições de cada vez mais amplos setores. Após análise médica, oferece-se a sedação (narcose ou adormecimento) e imobilização – jamais se aplicando o tratamento em casos paranóides (psicoses). Isto era um mero princípio acadêmico no antigo Anchieta, pois diagnosticado pelo guarda ou delegado, ou mesmo levado por um paciente ou vizinho, alcoolizado ou drogado, o paciente era imediatamente levado para o eletrochoque. Ou em caso de rebeldia contra a fome, o frio, a absoluta ausência de condições de vida daquele calabouço medieval.

O receituário para a aplicação de eletrochoques, mesmo de psiquiatras que ainda defendem a utilização desde sistema, nunca foi obedecido em qualquer um de seus itens no Anchieta, onde os médicos os ignoravam solenemente e os impunham como punição a rebeldia. Foi descoberto em 1938 por Ugo Cerletti e Lucio Bini, que criaram a convulsoterapia elétrica. A terapia convulsiva havia sido criada por Ladislau Von Meduna, em 1934.

Altas voltagens nas têmporas
Foram descargas elétricas de 180 a 460 volts nas têmporas, provocando a convulsão desejada, como as que sobreviveu Carrano (21 descargas), o autor do livro que deu origem ao filme “O bicho de 7 cabeças”. Carrano estava denunciando os manicômios e editou manifesto pedindo a proibição dos eletrochoques. Segundo o psiquiatra James C. Coleman, autor do livro “A psicologia do anormal e a vida contemporânea”, a corrente americana estabelece os limites entre 70 a 130 volts. Henry Ey, da corrente francesa, em seu livro “Manual de Psiquiatria” estabelece os limites entre 100 a 200 volts, em aplicações que atualmente são 4 a 6, dadas no hemisfério não-dominante, ou seja, do lado oposto ao que o paciente tem o comando das ações – de é destro do lado esquerdo, se é canhoto do lado direito – embora no Anchieta, segundo depoimentos, isto nunca tenha sido seguido.

O Dr. Rubens Pitliuk, especializado na Suíça e Alemanha, psiquiatra de diversos consulados, defende o uso do ECT. Antes, porém – indispensável – jejum e analgésico. E esclarece as medidas anteriores indispensáveis: exames de sangue, eletrocardiograma, tomografia computadorizada de crânio, raio X do tórax, fundo de olho e avaliação dentária. Mas lá no Anchieta isso era luxo, não era assim – aliás, não faziam exame nenhum. Alguns remédios devem ser suspensos, outros discutidos com o médico. Brincadeira: há casos que entraram direto pro eletrochoque. Referido como “um tratamento controverso e polêmico”, o ECT produz uma ampla variedade de efeitos sobre o sistema neurofisiológico, neurotransmissor e no eixo neuroendócrino. No início de sua aplicação, nos anos 30, morriam um em cada mil vítimas do eletrochoque.

Hoje, há relatos de 4,5 mortes a cada 100 mil séries de aplicações de 10 a 12 ECT. As complicações decorrentes dessa tortura, no início existentes em 40% dos casos - fraturas vertebrais, apnéia, insuficiência circulatória, dano nos dentes, entre outras – hoje são “apenas” raras exceções. Mas tem seus defensores. O militante ecológico Condesmar Fernandes tem um histórico da época em que era militante do movimento estudantil, em 1977, quando foi preso e despejado na clínica de Itapira, o Instituto Américo Bairral, ocasião em que conviveu neste sofrimento, descreve, com um engenheiro ucraniano e uma líder estudantil de nome Mariliza. Em função da natureza do castigo não tem recordações exatas daqueles momentos terríveis.

A ciência da convulsão: como chegaram ao eletrochoque
A justificativa do Projeto de Lei proibindo os eletrochoques, do deputado estadual do Rio Grande do Sul Marcos Rolim, nos traz importantes informações sobre a evolução da idéia de curar a loucura com convulsões. Em 1786, um médico chamado Roess observou que pacientes mentais melhoravam após a inoculação com vacina contra a varíola. Um estudo de Renato Sabbatini, que escreveu “A História da Terapia por choque em Psiquiatria”, observou que raros eram os casos de esquizofrenia em epiléticos. Essas evidências empíricas foram consolidando a noção de uma provável incompatibilidade entre convulsões e doenças mentais. E se apelou para elas.

Entre 1917 e 1935, pelo menos 4 métodos para produzir choque fisiológico foram, então, usados na prática psiquiátrica: a febre induzida por malária, para tratar paresia neurosifilítica, aplicada em Viena por Julius Wagner-Jauregg, em 1917; a coma e convulsões induzidas por insulina, para tratar a esquizofrenia, aplicada em Berlim por Manfred J. Sakel, em 1927; as convulsões induzidas por metrazol, para tratar a esquizofrenia e psicoses afetivas, aplicada em Budapest por Ladislaus von Meduna, em 1934. E terapia por choque eletroconvulsivo, o eletrochoque, criada em Roma, Itália, por Ugo Cerletti e Lucio Bini, em 1938. A idéia de usar o choque eletroconvulsivo em seres humanos ocorreu-lhe pela primeira vez ao observar porcos sendo anestesiados em eletrochoques, antes de serem abatidos nos matadouros de Roma. Ele, então, convenceu dois colegas – Lúcio Bini e L.B. Kalinowski, a ajudá-lo a desenvolver um método e um equipamento para ministrar breves choques elétricos em seres humanos.

O historiador médico David Rothman afirmou, em 1985, que “A terapia por eletrochoque se destaca de forma praticamente solitária entre todas as intervenções médicas e cirúrgicas, no sentido em que seu uso impróprio não tinha a meta de curar, mas sim o de controlar pacientes para o benefício da equipe hospitalar”. Com a palavras, às vítimas dos eletrochoques, tratadas como porcos.

“O estranho no ninho”: a derrota mundial do eletrochoque, nos anos 70
Na década de 70, começaram a surgir importantes movimentos contra a psiquiatria institucionalizada na Europa e, particularmente, nos EUA. Juntamente com a psicocirurgia, a terapia por eletrochoque foi denunciada pelos partidários dos Direitos Humanos - e o mais famoso libelo de todos foi um romance escrito em 1962 por Ken Casey, baseado em sua experiência pessoal em um hospital psiquiátrico no Oregon. Intitulado “One Flew Over the Cuckoo’s Nest”, o livro foi posteriormente roteirizado em um filme de grande sucesso dirigido pelo tcheco Milos Formam, que recebeu no Brasil o título de “Um Estranho no Ninho”, como ator Jack Nicholson.

Uma exposição desfavorável na imprensa e na TV desembocaram em uma série de processos jurídicos por parte de pacientes envolvidos em abusos da terapia por eletrochoque. Em meados de 1970, a terapia por eletrochoque estava derrotada como prática terapêutica. Em seu lugar, os psiquiatras passaram a fazer um uso cada vez maior de novas drogas poderosas, tais como a torazina e outros fármacos antidepressivos e antipsicóticos. Mas aqui se continuava a aplicá-lo – e no país até hoje.

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A IMPRENSA DO ANCHIETA E O SONHO DE MORE
O “assalto aos céus”. O D.O. Urgente como agente

Como diria Lênin, o revolucionário soviético, mais do que um informativo, o jornal é um órgão de organização social. E este foi o D.O. Urgente.

Nada acontece por acaso e também não foi apenas a contratação de “profissionais da imprensa” para o D.O. Urgente, o Diário Oficial do Município transformado em divulgador de informações das ações municipais de transformação social, o que alimentou a estrutura auxiliar e essencial de divulgação da masmorra que se abria no Anchieta – e do o avanço político decorrente. Os jornalistas são unânimes em confessar que foram “ajudados” pela “nobreza da causa” e seu ponderável impacto nesse sucesso da empreitada noticiosa. Ela produziu o engajamento popular da questão – fator essencial para seu sucesso, consolidação e manutenção até mesmo com governos reacionários. Eram fatos de forte apelo emocional através da simples revelação.

Como diz Leda Mondin, “a imprensa jogou uma luz sobre a questão escondida, fez um ‘como é que se faz’ pedagógico”, explica, que encontrou receptividade na índole solidária da população”. Era o “gancho” necessário. Esses jornalistas eram todos antigos militantes ecológicos e ambientalistas, de movimentos sociais em defesa das crianças de rua, pessoas que incorporaram interesses coletivos de mudança, em tempos de ditadura.

Uma forma renovada de militância política que surgia após as batalhas da esquerda tradicional presente nos movimentos sindicais e estudantis, da luta armada, da qual surgiria, por volta de 1979, o encontro para formação do Partido dos Trabalhadores – reunindo setores organizados do movimento estudantil e popular e movimentos da Igreja Católica. Era essa imprensa a sede dessa transmissão de notícias, que por si só significavam idéias e conceitos que eram superados na clareza dos fatos revelados. Pessoas de boa índole, engajados na contra-cultura e no humanismo, na contestação, se reuniriam aqui para a tarefa de transformar, exercendo a função da comunicação em paralelo com o trabalho militante dos companheiros da Saúde Mental, ouvindo, traduzindo e transmitindo.

Nada mais seria como antes: ocorreria um tal nível de transformação, por estas mensagens quase pedagógicas de um novo mundo que se abria para a psiquiatria e para a psicologia e para a sociedade, que dali em diante os antagonistas (e defensores do ideário decorrente dos interesses da classe dominante) se revelaram confusos, contraditórios. Veremos isso. E, em outra fase, aderentes às novas concepções – um processo que levaria décadas se fez apenas em alguns anos. Ou seja, a imprensa do Anchieta produziu um sistema de evolução ideológica e humanitária que, incorporando setores, dava propulsão ao sentido transformador da gestão municipal, parceira necessária.

Como motor das transformações operadas na administração democrático-popular da gestão da prefeita Telma de Souza, foi necessária a implantação de um sistema de informação que, ao mesmo tempo em que não deixasse o monopólio da notícia nas mãos da versão nem sempre real da imprensa oficial da cidade, abrisse corações e mentes para a nova realidade que se tornava possível com as medidas adotadas. Essa ação política era como o “assalto aos céus” que Karl Marx descrevera, analisando a Comuna de Paris, que aqui se viabilizava na correção dos rumos tomados há tanto tempo. De repente, a justiça era possível, a liberdade uma porta aberta, o fim da crueldade mais do que uma possibilidade, mas um serviço pronto para ser feito por pessoas que estudaram e idealizaram esta missão utópica até então, tornada possível como o sonho de More.

A Prefeitura passava a utilizar o Diário Oficial da cidade, chamado agora de D.O. Urgente, para veicular as informações sobre o que se passava nas atitudes revolucionárias do novo governo municipal, ampliando as visões sobre o tema. Em relação ao Anchieta não foi diferente, com o jornalista José Roberto Fidalgo na cobertura diária da intervenção, na chefia de reportagem do jornalista Helder Marques e na chefia geral da jornalista Leda Mondin, que comandava a Assessoria de Comunicação de Telma. A edição do D.O. Urgente era dos jornalistas Oswaldo F. de Melo e Marcos Ferreira, além de Carlos Mauri Alexandrino. “O segredo da estratégia”, conta Mauri, um afinado e ousado profissional que já tinha militado na grande imprensa, “era a informação em massa. Bastava ela, pois a característica humana do ato de intervenção em um manicômio cruel exigia apenas que a população fosse informada sobre a realidade”, diz.

Mauri Alexandrino
“O Anchieta – conta Mauri – era uma ‘ilha’ na cidade, uma realidade hedionda ignorada pela maioria ou por quase todos. Ninguém sabia o que se passava ali. Bastava contar e foi o que fizemos. Era um assunto quente, uma ‘puta noticia’, do ponto de vista jornalístico. Sabíamos que a ousadia do ato traria enfrentamentos com o poder dominante, reações imediatas – e era necessário uma blindagem que, exercida democraticamente, consistia em produzir uma massa de informação que trouxesse o apoio popular.

Não era propaganda, era informação, mesmo”, explica. Além da intensa cobertura da imprensa enviando notícias para todo o país e exterior, além da presença de cada ato no D.O. Urgente, Mauri descreve a invenção do “release eletrônico”, em que eram produzidas e enviadas em bruto para as TVs material bruto de filmagem para ser editado pelos próprios canais, permitindo noticiários diferenciados que, por seu caráter inédito, apareceram em todos os veículos de comunicação televisiva da capital. “Deu samba”, classifica Mauri falando sobre a idéia de Leda, “cumprimos a tarefa construindo a contraposição opinativa desse ato humanitário e revolucionário”, diz.

Leda Mondin
Leda Mondin, à época dos primeiros passos da luta em defesa da humanização dos hospitais psiquiátricos, que não era ainda chamada “a luta antimanicomial”, que caminhava junto com os ecologistas e defensores das crianças de rua, cobria o setor pelo jornal A Tribuna. E acompanhou quando o grupo em que Telma participava trouxe um psiquiatra, de nome Humberto Mendonça, para explanar na cidade sobre a questão. Ele trabalhava com comunidades carentes em Diadema e pretendia instalar em Santos uma cooperativa de assistência mental, com internamentos por períodos, em que o paciente volta para casa todos os dias. Humberto foi assassinado em circunstâncias não esclarecidas. Intermediando contatos com a rede de imprensa nacional, que gerou noticiário internacional, a imprensa do Anchieta “escancarou” aquele mundo perverso destruidor de pessoas, nos explica Leda.

“O Anchieta era sinônimo de coisa ruim, as pessoas o ignoravam, tinham medo. Quem entrava ali era rotulado, oprimido, destruído. E a experiência de Santos deu origem a um novo discurso em todo o país sobre as políticas de Saúde mental”, conta a jornalista que atualmente é assessora da deputada Maria Lúcia Prandi, então secretária de Educação. “Trabalho intenso”- diz, “em que a imprensa soube reconhecer o ato corajoso que se efetivava ali, o caráter inovador da experiência. Essa característica haveria de dar – e deu- repercussão ao fato. No centro da atitude, Telma era uma pessoa capaz de se indignar com as injustiças e essa atitude foi uma coisa de alma. Ela disse “Eu não posso ser prefeita de uma cidade que tenha esta chaga. A intervenção no Anchieta não foi um mero ato administrativo”. Essa referência seria repetida por outro jornalista, Fidalgo.

Fidalgo
Durante todo o primeiro ano da intervenção, o período dos conflitos mais intensos e dos maiores enfrentamentos, o jornalista José Roberto Fidalgo estava lá, na assessoria direta dos fatos que sobrevinham daquela crueza de beleza mágica da cena aberta do manicômio que se projetou transformar, em plena época de obras. Ao invés de pedreiros e carpinteiros, lá estavam psicólogos, psiquiatras, dentistas, médicos, terapeutas – e o trabalho era grandioso. “Foi uma das experiências mais marcantes de minha vida”, conta, construída na visão de vida e humanidade, abolindo de nós mesmos os pré - conceitos de discriminação, colocando-os em cheque e promovendo uma verdadeira revolução interior”, sintetiza o jornalista.

Hoje assessor de Telma, ele diz que “Você tem certeza de algumas coisas e de repente tudo aquilo é posto em dúvida, na convivência com uma nova realidade. Gratificante a experiência da coragem vencer o medo de lidar com dedicação em um tema que estava no armário, debaixo do tapete, escondido – e cuja solução certamente não daria IBOPE. Lá no Anchieta as pessoas não foram curadas, mas se levantaram por si mesmas a partir das condições resgatadas e inerentes à sua face humana, igual.

“Não existe possibilidade neste tipo de assunto de trabalhar sem um envolvimento pessoal, ideológico, passional, para que você tenha um resultado positivo, para você transmitir aos colegas com a exatidão frutificada da sua percepção dos fatos”, conta Fidalgo. Segue dizendo o jornalista que Telma pensou duas coisas antes de intervir no Anchieta: será que eu tenho estrutura para isso? Não, não tenho. Mas mesmo assim eu vou em frente, porque eu não poderia governar uma cidade que está doente, que mostra este sintoma de um manicômio dentro de si, que merece ser tratada. E fez o que tinha que ser feito.”

As profecias de Lane Valiengo. O raio de sol
Na trajetória da imprensa engajada na luta da Saúde Mental há fatos explicáveis e outros nem tanto. “Coisa de louco”, reverbera a frase popular. Na antológica reportagem sobre o I Seminário de Saúde Mental da Baixada Santista, assinada pelo jornalista engajado Luiz Augusto Lane Valiengo – quem forneceu o registro histórico, hoje assessor do vereador Adelino Rodrigues -, publicada em A Tribuna de 15 de agosto de 1980, este articulista escreve por sua conta e risco na página 23, bloco 5 – sintetizando pensamentos manifestados:

“As duas coisas estão juntas, é impossível separar: somente a mobilização de toda a comunidade poderá criar um espaço para modificar o panorama da Saúde Mental e, ao mesmo tempo, da questão social e política brasileira. Atacar apenas um destes pontos será inútil, segundo psicólogos e psiquiatras”.

Foi, profetizaria o jornalista nove anos antes, a mobilização social que garantiu a conquista e consolidação da modificação do panorama da Saúde Mental, na caminhada para mudança da questão social do país. Evidente é que esta é uma lógica conhecida, mas valeu o seu resgate. Mas havia outra profecia, a do “raio de sol”: vinte e quatro anos depois da reportagem, na comemoração dos 15 anos da intervenção no Anchieta, o desenho especialmente produzido para os cartazes e panfletos do evento histórico ocorrido na Unisantos era de uma visão descrita por um paciente, como explanou Tykanori, de um raio de sol entrando dentro do hospício quando a porta se abria para a chegada dos “libertadores”. Havia escrito o jornalista no ponto 7 da referida reportagem, no bloco denominado “A casa dos loucos”:

“Todos em fila, os homens vestidos com roupas largas e brancas andavam pelo corredor, como sempre fazem, envoltos com imagens de seus mundos particulares. Era apenas mais um dia, como tantos outros, no Hospital Anchieta. Mas, de repente, um dos pacientes teve uma visão extasiante: um raio de sol, que teimava em entrar por uma porta qualquer, que alguém havia deixado entreaberta. Todos correram, para ver o sol mais de perto, sentir o calor. E ficaram ali, como uma benção divina tivesse caído desavisadamente naquele mundo de loucura e demência. Afinal, eles já tinham esquecido até que o sol existia, depois de tanto tempo vivendo apenas com luz artificial, por aqueles corredores frios e celas úmidas. No hospital psiquiátrico, até o sol é proibido”. O raio de sol foi o tema.

O quadro 6 da reportagem de Lane, intitulado “Perseguições, ameaças e violência”, escreve sobre pacientes morrendo afogados dentro das celas. Em Santos, pessoas com câncer terminal sendo internadas como doentes mentais e tratadas com choques elétricos. Em Minas, doentes mentais junto com leprosos. Pessoas simplesmente bêbadas sendo internadas e tratadas como loucos sem cura. Perseguições e ameaças contra médicos psiquiatras e psicólogos, atingidos pelo Ato Institucional número cinco ou pela Lei de Segurança Nacional por se rebelarem contra os horrores que acontecem nos hospitais psiquiátricos, os que se arriscam a denunciar estes fatos, a eliminação física de pacientes-problema. É a realidade de 1980, que naquele momento se articulava para reverter. Denunciá-los, um papel da militância na imprensa, sem o que não haveria solução.


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A FORMA CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO MUNICIPAL – ARTIGOS E PRINCÍPIOS

No entendimento de que as leis foram criadas para organizar a sociedade e limitar os espaços de cada um para garantir a autonomia e a liberdade de todos, no momento posterior à derrubada da Ditadura Militar a elaboração pelos Constituintes da nova Carta Magna, que seria promulgada em 1988, buscou garantir estes direitos. Restabelecendo-os e inovando a partir da consolidação de novas conquistas que a sociedade obtivera, no princípio da democratização da vida política do país, descentralizando competências para aproximar a administração pública da realidade popular.

A intervenção municipal foi decretada na compreensão que esta Carta Maior, a Constituição “Cidadã” de 1988, fixou o direito à saúde como fundamental e assegurado a todos, brasileiros ou estrangeiros fixados aqui, no cumprimento aos princípios de dignidade humana, igualdade e justiça social, a Constituição de 1988 elegeu como princípios fundamentais do Estado brasileiro a cidadania e a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, Incisos II e III). O governo democrático-popular de Santos haveria de aproveitar essa porta aberta para a ação solidária.

A Constituição fixa como objetivo fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais, exige-se promovendo o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outras formas de discriminação (Artigo 3º, Incisos I, III e IV). E estes mandamentos gravados estavam presentes no ato interventor. Como princípio a ser observado pelo Brasil em suas relações internacionais, a Constituição garante a prevalência dos direitos humanos (Artigo 4º, Inciso II) e os direitos fundamentais à vida e à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (Artigos 5º, “caput”) E no Artigo 6º, os direitos sociais entre outros à saúde. No Inciso III do Artigo 5º, “Caput”, ninguém será submetido à tortura nem a tratamento cruel ou degradante .

Seria ser repetitivo enunciar o porquê da realidade do Anchieta que foi encontrada se encaixar com precisão nas afirmativas legais, sujeitando-a às medidas da gestão pública. O Artigo 23, Inciso II, atribui como competência comum da União, dos Estados, do Distrito federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. E no Artigo 30, determina, como competência dos municípios, I – legislar sobre assuntos de interesse local. No Inciso VII, prestar, com cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população. O Artigo 196 diz ainda que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O Artigo 198 institui que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única de cada esfera de governo. Em cumprimento ao Artigo anterior, o de número 197, que estabelece como de relevância pública as ações e serviços de saúde, nos termo da lei, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle é que foi feita a intervenção municipal.

O Artigo 200, em seu Inciso I, determina que ao Sistema Único de Saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei – e no Inciso I: I – Controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesses para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados outros insumos. Para o exercício da aplicação concreta da norma constitucional e legal não bastava, porém, sua existência e previsão legal, com que se pôde enfrentar uma oposição armada e secular vencendo todas as questões judiciais que tentaram impor.







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O RECONHECIMENTO MUNDIAL DA INTERVENÇÃO
MUNICIPAL NA CASA DE SAÚDE ANCHIETA

“Telma, você foi a primeira pessoa no mundo a assumir responsabilidade por um manicômio privado, para poder oferecer aos pacientes caminhos para resgatar sua vida e construir um futuro”. (Tommasini)

Há 15 anos, Santos se tornava mais célebre e humana, expandindo este sentido para todas as relações sociais da cidade que se pretendia humanizar, como se fez nesta gestão liderada pela prefeita Telma, que no Anchieta deu o primeiro de seus passos. A declaração acima é de Mário Tommasini, conselheiro regional (equivale à figura do deputado estadual) de Emiglia-Romana, Trieste, Itália, a cidade que derrubara o manicômio em 1971. Foi feita a então prefeita de Santos Telma de Souza, na manhã do dia 17 de junho de 1991.

Tommasini reportava-se à intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta – um hospital psiquiátrico que violava os direitos humanos, elogiando, pouco mais de dois anos após sua implantação, a iniciativa que veio visitar e que ganhou diversos prêmios internacionais como da Organização Mundial de Saúde – quando Santos mais uma vez deu exemplos para o país e para o mundo. Tommasini era, na ocasião.

E o Anchieta era um exemplo similar que, arrastando séculos de violência no tratamento de seres humanos com transtornos mentais, afirmava com crueldade as antigas teorias pseudo-científicas da psiquiatria. Em 3 de maio de 1989, uma nova paisagem surgia no cenário político santista e colocou fim aquele terror urbano. Era um passo mundial na defesa dos direitos humanos, presente em todas as publicações nacionais e internacionaIs sobre o tema como um marco histórico na luta antimanicomial. A prefeita incorporava o sentido solidário em suas ações pela cidade e a Santos Libertária se consagrava para além da liberdade e da caridade, como diz o seu brasão, mas para a humanidade.

Foi de Trieste que Santos trouxe o exemplo, se tornando a primeira cidade no mundo a concretizar uma experiência concreta de dissolução de um hospital psiquiátrico através de métodos terapêuticos modernos, com participação e envolvimento da comunidade. Esta experiência foi classificada por Guattari, um dos maiores nomes internacionais do setor e responsável pela Reforma Psiquiátrica na França, como “a quarta revolução mundial da psiquiatria”. A terceira havia sido com Basaglia em 1971, esta aplicando o modelo com participação popular fazendo e garantindo conquistas que, apesar da perda do poder político, continua íntegra na sua estrutura.

Era o dia 17 de junho quando Tommasini foi recebido na Prefeitura de Santos, acompanhado do psiquiatra Franco Rotelli, coordenador do Programa de Saúde Mental de Trieste e consultor da Organização Mundial de Saúde / OMS para o Brasil, Argentina e República Dominicana para assuntos de Saúde Mental. “Essa ação se tornou um símbolo da luta antimanicomial”, disse na ocasião, visando implantar um processo de atenção psiquiátrica. O psiquiatra Franco Rotelli informou que o Programa de Saúde Mental de Santos já obteve o reconhecimento mundial.

O Programa de Saúde Mental de Santos teve a colaboração e solidariedade de todos os envolvidos, dos internos aos seus parentes e vizinhos de bairros diversos, de autoridades nacionais e internacionais como o psiquiatra argentino Valentin Baremblitt e, como reportamos, do psiquiatra italiano Franco Rotteli, coordenador do Programa de Saúde Mental de Trieste, Mário Tommasini, conselheiro regional (deputado) de Emiglia-Romana, em Trieste, do coordenador interino de Saúde Mental do Ministério da Saúde Alfredo Schechtman, do representante da OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde, Itzhac Levaz, e do diretor do Sistema de Informação em Saúde Mental do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, Ronald Nanderscheid, entre outros, – tendo recebido diversos prêmios mundiais, transformando a cidade em pólo da luta antimanicomial. A lição santista da psiquiatria não teve só a ver com a especialidade médica em si, mas tocou todas as relações sociais da comunidade, disseminando solidariedade.

A situação existente não comovia demais a comunidade local, como de resto a nacional e mundial diante da opressão dos manicômios, porque estes são marginais. Não no sentido de infratores da lei, mas marginais da sociedade de consumo, desempregados, filhos de famílias desestruturadas, “gente sem eira nem beira”, como se dizia – excluídos. Mas humanos. A atitude santista foi baseada no exemplo italiano, que evoluiu dos processos americano, inglês e francês em que apenas se humanizou – e não se extinguiu – o hospital, tendo superado o modelo em eficiência, agilidade e resultados, daí a importância da visita e da manifestação de Tommasini homenageando este feito mundial.

A importância deste ato no universo da psiquiatria e da luta antimanicomial no Brasil e no mundo reservam (mais) um capítulo especial na história de Santos na defesa dos direitos e liberdades, notadamente por atacar um dos pilares fundamentais – o manicômio secular - da manutenção do sistema de controle social e de dominação de uma elite sobre as maiorias, que produz estes excluídos da cidadania. O movimento antimanicomial nacional e local, reunido em torno desta questão determinante para a construção da cidadania, priorizando aqui o fim de arcaicos campos de concentração no meio da cidade, elegeu este ato do governo Telma como um dos mais importantes da história da psiquiatria mundial e da evolução de seus paradigmas, adotando ideologias libertárias e progressistas no trato com estes setores excluídos e marginalizados. O resgate histórico desta questão é fundamental não apenas para a cidade como para a história do progresso humano. Contá-la sem cientificismo para que maiores grupos possam compreender e se envolver nesta batalha que não terminou – este o nosso objetivo.


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UMA AÇÃO AO REVÉS DA DITADURA
Quinze anos depois do Anchieta, a intervenção no maior manicômio do mundo

Poluição e loucura, políticas da Ditadura
O modelo brasileiro de internação psiquiátrica não apenas deu seqüência à secular tradição histórica manicomial, como se reforçou, na contramão da história, a partir da implantação da Ditadura Militar de 1964, que em suas ações ofereceu o perfil de um regime que apostava na exploração, na poluição que enlouquece e na opressão com repressão. Por exemplo, nos anos 70 o Brasil pediu “desenvolvimento com poluição”, anunciava a Ditadura em jornais americanos, atraindo indústrias que eram barradas na Europa. Isso enquanto em Cubatão nasciam crianças sem cérebro em face das substâncias químicas das indústrias e os danos à sanidade mental eram evidentes.

Os Governos dos “gorilas” de 1964 não apenas torturavam: em seu impulso de industrialização, a Ditadura Militar massificou a indústria da saúde: de 1961 a 1971, informa J.C. Braga na sua Dissertação de Mestrado na UNICAMP em 1978 (“A questão da saúde no Brasil”), reportada na revista “Saúde e Loucura”, a importação de equipamentos médico-hospitalares cresceu 599,9%. E enquanto o mundo voltava-se para a desospitalização, para o fim dos manicômios, o Brasil os ampliava através do aumento de leitos e na multiplicação da rede privada contratada.

A.C. Cesarino, no artigo “A experiência da Saúde Mental na Prefeitura de São Paulo”, publicada na revista “Saúde e Loucura” de 1989, destacando o privilegiamento do setor privado com predominância da lógica de mercado para o desenvolvimento, salienta que no Brasil de 1965, um ano depois do Golpe Militar, eram 110 os hospitais psiquiátricos. Em 1970, seis anos após, eram 178 e em 1978, eram 351 hospitais psiquiátricos conveniados – com 90% das verbas do INAMPS destinadas para a compra de leitos privados.

A proposta de campanha do então candidato à presidência da República Lula nas eleições de 1989, presente no programa da Frente Brasil Popular, já advogava a superação do modelo asilar e investimento em serviços alternativos, com objetivo de reintegrar socialmente o doente mental – em consonância com o movimento social antimanicomial. Neste ano, dois fatos marcam a luta no país: a ação santista no Anchieta e a apresentação do Projeto de Lei 3.657, o da Reforma Psiquiátrica, do deputado mineiro Paulo Delgado, que propunha a reestruturação da assistência psiquiátrica brasileira com a substituição progressiva dos manicômios por serviços alternativos.

Quem pensa que o horror dos manicômios acabou deve lembrar-se que, ainda em 2004, foram revelados novos escândalos, gerando a intervenção, entre outros, no maior hospital psiquiátrico do Brasil e um dos maiores do mundo - um hospício carioca, na cidade de Pacambi, a Casa de Saúde Dr. Eiras, com 1.500 internos e 500 mil metros quadrados de área. Um gigantesco depósito de gente que fora vistoriado em junho de 2000. E em Pernambuco, Itamaracá – em que uma inspeção da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia, em auditorias feitas em março, constataram diversas e graves infrações à dignidade humana.

Na visita que fizeram a Santos nesse ano os psiquiatras Ricardo Dutra Vaz e Wilson Bittencourt Filho, que atuavam no “Pólo de Saúde Mental” da Secretaria de Saúde de Pacambi, a terra em que ficava o Dr. Eiras, – vieram conhecer o modelo implantado aqui. Então, já se falava de uma provável intervenção naquele hospital, em face de denúncias do Sindicato dos Servidores da Saúde.

Mas o Estado não teve capacidade política de implantá-la e apenas passou a supervisão técnica para o Município. A intervenção só viria 12 anos depois, em 2004. Na reportagem do D.O. Urgente que fala dessa visita, de 1/ 10 / 1992 tem o titulo “Saúde Mental é modelo para cidade do Rio de Janeiro”. “Os manicômios são instituições assassinas”, declarou o presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, Marcus Vinícius de Oliveira, oferecendo um atestado para o setor no país que começou a mudar em Santos. Em agosto de 2004, eram feitas intervenções em mais dez manicômios brasileiros. Valeu o exemplo.


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UM FILME DE TERROR, TEMA DE MOJICA
MARINS: você já se imaginou trancado no Anchieta?

Locum religiosum et sacrum non possumus possidere etsi contemnamus religiosum et pro privatum erum teneamus.
(Não podemos possuir o lugar religioso e sagrado, ainda que o desprezemos como religioso e o tenhamos como particular)

O princípio do Direito, gravado em latim para que seja eterno, diz respeito aqui ao espaço público, o do relacionamento com seres humanos. É o conteúdo da sociedade organizada – que não admite tratamentos diferentes, sob pena de se atentar contra ela. Da apropriação de funções públicas e sociais como empreendimentos particulares, em busca do lucro, decorrem os desvios de finalidade, a arbitrariedade e o tratamento desumano – e o lugar das pessoas é religioso e sagrado, o lugar do ser. Exigindo, pois, a intervenção da poder popular que, em uma circunstância temporal e extraordinária, estava no poder em Santos nestes fatos narrados próximos à década final do século XX.

Imagine-se trancado no Anchieta: esta ameaça estava presente sobre todos os cidadãos e poderia ser “diagnosticada” sua “loucura” por qualquer policial, diante de qualquer confusão, com envio imediato para a casa “de saúde” da rua São Paulo. Existem casos registrados dessa situações. “Se você não é louco fica”, declaram profissionais que já trabalharam no Anchieta, ao jornal A Tribuna em 15 de junho de 1980. Sobre a entrada diretamente para o choque elétrico temos depoimentos e testemunhas. Há o caso descrito pelo jornal A Tribuna nessa reportagem sobre uma adolescente que chegou chorando, porque havia brigado com os país – e foi diagnosticada como louca rapidamente pelo médico.

Outro caso foi da tia de uma depoente, que fora internada no Anchieta pelos gritos espantosos que dava. Mas depois de doses cavalares de “medicamentos” e de muito choque elétrico, que já tinham transformado a paciente em doente mental, descobriram que ela tinha câncer avançado. Mas já era tarde. Estagiários depõe sobre os conflitos com os médicos em função dos diagnósticos feitos em cinco minutos. “Era gangsterismo mesmo”, escreve a reportagem. Para reverter isso, foi feita a intervenção, modelo mundial de ação humanitária, política e de Saúde Mental, mundialmente premiada e indicada como exemplar pela Organização Mundial de Saúde. A intervenção, que exigiu disposição e forte vontade política, introduziu uma equipe multiprofissional com atividades não apenas médicas, mas esportivas, culturais, associativas e recreativas. Foi um mundo novo para os de dentro e também para os de fora, enfim, que nunca tinham visto o manicômio de altos muros sem janelas.

O novo Anchieta teve assembléias constantes, muitas festas – reintegrando pessoas e refazendo - fortalecendo laços familiares e comunitários. Uma nova sociedade nascia ali, no projeto de construção de um novo mundo daquelas pessoas que integravam o novo governo municipal santista comandado pela militante Telma de Souza. Estava na raiz ideológica do partido político que a levara ao poder este compromisso de solidariedade. O resultado é que os “loucos” simplesmente desapareceram do cenário da cidade, embora aqueles assim catalogados estejam entre nós – vivendo e contribuindo.

A estratégia aplicada em Santos baseou-se em duas idéias, simples, baseadas nas reformas dos manicômios da Itália por Franco Basaglia nos anos 70: a primeira é que estas pessoas sofrem de uma doença crônica – ou não -, sem perspectiva de alta hospitalar. Se sofrem, não adianta interná-los, porque não vão ser curados, nunca terão alta. Se sofrem desajuste, devem ser reenquadrados, reintegrados, como nos programas que foram desenvolvidos. A segunda idéia é que eles não são perigosos e não merecem ficar presos, sendo torturados, submetidos a fortes medicamentos, eletrochoques, privações - que podem melhorar sensivelmente apenas com a evolução dos seus níveis de qualidade de vida, de contato uns com os outros, com os “de fora”, com a família, com atividades esportivas, culturais, sociais.

Santos foi notícia no país e no mundo inteiro por sua ação redentora de seres e sistemas produtores de vida. Por este episódio importante da história a cidade é que fazemos este registro do resgate de pessoas humanas, rumo à construção de um novo paradigma social que exige novas formas de procedimento não-egoísta e mais solidário, que respeite o outro como a si mesmo. Nos tempos em que atuou como diretor do Hospício de Gorizia, na Itália, o autor do exemplo modelar de Santos Franco Basaglia, refletindo sobre a natureza da instituição, propõe a ‘destruição’ da instituição psiquiátrica, propondo, como método de cura, a devolução da liberdade que havia lhe sido tomada pelo próprio psiquiatra, que deveria recusar a idéia da institucionalização do manicômio – não apenas ‘melhorá-lo’, mas extingui-lo, o que foi feito em Santos.


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“O ALIENISTA” E O ANCHIETA: de perto, ninguém é normal

O Anchieta era como a “Casa Verde” do livro “O alienista” (como antigamente se chamavam os psiquiatras), de Machado de Assis, quando um médico inova na separação dos “loucos” dos “normais”. Ele, o Dr. Simão Bacamarte, pretendia separar o reino da loucura do reino do prefeito juízo, como se existisse e fosse possível esta separação. Mas a confusão entre estes reinos leva o doutor, na busca para saber o que é normalidade, a no começo internar a todos os que era diferentes da maioria. Como havia sido feito, na realidade, aqui. O hospício é a casa do poder instituído e Assis sabia disso muito antes de Foucault e Basaglia, dos estudiosos e demolidores desta barbaridade da civilização que era o manicômio – que ainda existe. No livro de Assis, o trabalho do Dr. Simão Bacamarte é inicialmente é bem recebido pela população de Itaguaí, a cidade em que transcorre a estória, mas a aprovação cessa quando o médico passa a recolher na “Casa Verde” pessoas em cuja loucura a população não acreditava.

Então, o barbeiro Porfírio lidera uma rebelião contra o hospício, que é sufocada. Numa primeira etapa, são internados os que manifestem hábitos ou atitudes discutíveis, tolerados pela sociedade: os politicamente volúveis, os sem opiniões próprias, os mentirosos, os falastrões, os poetas de versos empolados, os vaidosos. Mas para pasmo geral da população de Itaguaí, o Dr. Simão Bacamarte um dia solta todos os recolhidos no hospício - e adota critérios inversos para a caracterização da loucura: os loucos agora são os justos, os leais, os honestos.

A terapêutica para estes casos de loucura consistia em fazer desaparecer de seus pacientes as “virtudes”, o que o Dr. Simão consegue com certa facilidade. declara curados todos os loucos, solta-os todos e, reconhecendo-se como único louco irremediável, o médico tranca-se na Casa Verde, onde morre meses depois. Qualquer semelhança da ficção com a realidade não é mera coincidência: quem são os “normais”? Ao tempo da intervenção e da mobilização em torno da atitude local de libertação, se dizia “De perto, ninguém é normal”. Basta não se encaixar na “normalidade” ditada externamente para, não se enquadrando, ser “louco”. A nossa razão é a medida da loucura alheia, disseram – e por ela medimos “o outro”. Desde que não tenhamos o poder de interná-lo, como o Dr. Bacamarte, tudo bem. A coisa só piora quando somos autorizados a prendê-lo, dar-lhe remédios e eletrochoques. Aí a coisa pega. O rompimento dessa autoridade, do princípio da autoridade, foi a aula do Anchieta.


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A PSICOLOGIA E A PSIQUIATRIA NA ANTIPSIQUIATRIA,
na raiz da atitude de intervenção no Anchieta

A Psicologia estuda a personalidade humana através da análise e compreensão do comportamento dos seres vivos. O termo origina-se do grego, unindo “alma” e “ciência”. Foi utilizado pela primeira vez em 1590, no título de um livro de Goclênio, professor de Marburg. O termo vem do grego “psiche” (mente ou alma) e “logia”, de “Logus”- palavra, estudo, conhecimento, saber. A psiquiatria é o ramo da medicina que estuda que cuida do diagnóstico, prognóstico e tratamento das alterações mórbidas da vida psíquica, doenças mentais e do sistema nervoso. O termo vem do grego “psiche” (mente ou alma) e “iatréia” (cura, tratamento). E a antipsiquiatria é o movimento que, contestando o modelo milenar do tratamento das pessoas com problemas de transtorno mental, propõe uma nova compreensão do problema com a extinção dos manicômios e das internações que tem tratamentos cruéis e degradantes, da idéia da “doença mental”. Como diz Joseph Alfons,

“Antipsiquiatría es oposicion a ver y tratar la salud mental desde la óptica de los valores del satatu quo y a violencia que eso implica contra la diferencia”
“...és decir, la antipsiquiatria se sitúa em el mirar hacia la estructura social, en lo micro y en lo macro, y hacia lo biográfico y el deseo de cada cual , para encontrar una vision comprensiva del sufrimiento emocional, incluido o que llamamos loucura, y en la busqueda de una salida positiva a este, vale decir una salida terapéutica” (Josep Alfons, boletim “Contrapsicologia y contrapsiquiatria”, Madrid)

PARA ENTENDER :
Antipsiquiatria é o movimento que está na base do pensamento que levou à atitude tomada no Anchieta santista, uma ação contra a violência exercida contra parcelas sociais como exercício de dominação e exclusão de pessoas, para manutenção da sociedade que privilegia poucos, que impõe sua vontade sobre todos. É uma atitude do movimento contracultural, levado por setores engajados com uma política libertária e crítica ao capitalismo e ao individualismo, que questionou a doença mental tal como sempre foi colocada e o tratamento psiquiátrico da forma em que era considerado há três séculos e meio, desde Phillipe Pinel e a criação do hospício na França.

Baseado em internações compulsórias e aplicação de tratamentos cruéis e pseudo-científicos, em uma atividade mundial secular e reforçada como indústria nos anos pós-64 no Brasil, a antipsiquiatria combate a indústria dos manicômios, cujos donos fizeram fortuna com o discurso cientificista. Que tentou catalogar o sofrimento mental, cada vez mais expandido quanto maior é o avanço do sistema econômico capitalista e gerador de ansiedade e desequilíbrio, que, como diz Josep Alfons, que impõe um “deprisa, deprisa”(“depressa, depressa”) que arrasa o habitat natural, plantas, animais e populações, um ritmo estressante e negativo para os ritmos biológicos humanos.

Antipsiquiatria é um termo criado pelo terapeuta e revolucionário David Cooper nos anos 60 na Inglaterra, pondo em questão a psiquiatria e também a psicologia, o trabalho social, a pedagogia, a educação, a criminologia, enfim, o modelo hegemônico que incluem como terapêuticas estas ações distantemente de seu sentido etimológico do grego, em que terapia é servir e cuidar. Do tema antipsiquiatria cuidaram Cooper, Ronald Laing, Basaglia, Gonzalez Duro, Berke, Ramon Garcia, Morton Schatzman, Onésimo Gonzalez, Thomas Szasz, Guillermo Rendueles, Aaron Esterson, Sartre e Foucault. Na explosão da questão social em 1968, em seus grandes momentos explodiu também o movimento antipsiquiátrico na oposição aos manicômios, instituições que controlam totalmente a vida das pessoas que segregam e isolam. É a negação do saber pretensamente terapêutico e de todo conhecimento destinado à manutenção do “status-quo”.

Como diz Josep Alfons, após a Revolução Francesa, mudando as relações entre exploradores e explorados, modificam-se as práticas de controle e dominação social antes com as torturas medievais e as execuções públicas como exemplos de representação máxima. Agora são métodos “científicos” na educação universal e obrigatória, a pedagogia e a psiquiatria. O que antes era pecado agora é enfermidade mental, anti-sociabilidade, fracasso escolar – “especialidades”. Para manutenção das políticas de dominação, opressão e exploração do homem pelo homem foi fundamental a prática de meios como a agressão física e o domínio dos corpos.

A antipsiquiatria busca, em suma, sua libertação de uma das formas de opressão, sustentáculo do regime capitalista que é junto com os demais poderes instituídos pelo homem como o exército, a polícia, o governo. Uma opressão que condena o homem à infelicidade, à dor, ao abandono, ao preconceito e ao medo, ao rancor, à todas as formas de violência, que vai do manicômio às prisões e fábricas, favelas e cortiços.

A exclusão social, instrumento essencial para manutenção do sistema econômico baseado na exploração do homem pelo homem, garantindo a corrida pelo emprego a qualquer preço ampliando as taxas de lucro, se manifesta de todas as formas, como no manicômio. Derruba-lo é construir, como dizem os seguidores de Zapata no México, os “zapatistas”, um mundo onde caibam todos os mundos. O manicômio está sendo ampliado nas cadeias superlotadas, nas câmaras nas ruas, nos altos muros separando universos que convivem na mesma cidade, dos ricos e dos pobres.

Corrigir esta formação social é algo que se começa a fazer demolindo o manicômio. A visão secular da loucura sempre foi a de rebaixar e maltratar os portadores de transtorno mental, quando não mascarando-os e cronificando-os. Psicopatas, alienados, doentes mentais, os termos foram se alternando conforme os períodos, assim como os sujeitos incluídos neles. Alcoolismo ou depressão, por exemplo, foram durante muito tempo incluídas no rol da “loucura”. Muitos dos que estavam no Anchieta eram assim.

Até a Revolução Francesa, os loucos eram enjaulados e expostos, no qual se pagava um “penny” como entrada, com direito de provocá-lo. Com a “razão”, que endossou do pensamento grego, o Iluminismo alterou a maneira como o louco seria visto pela sociedade, o que foi ganhando autoridade a partir da metade do século XVII. E nessa prática se incluía o isolamento do doente mental do convívio social – no início uma prisão, mas também com a idéia de sua recondução ao meio. Então, se tinha o isolamento como imprescindível para o tratamento e a cura da doença mental, o que evidentemente não acontecia. A liberdade era o caminho e a humanidade levou séculos para descobrir esta evidência.


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A CAUSA E OS MÉTODOS
As contradições do modelo antigo e as palavras-chave da psiquiatria democrática. Basaglia é uma ”mentira”?

“A criatividade vale mais que o conhecimento” (Einstein)

A ecologia da loucura: o “Estadão” reporta Santos, a primeira cidade do país a humanizar a questão Saúde Mental

“A Casa de Saúde Anchieta foi o primeiro manicômio brasileiro a trocar, em 1989, o excesso de medicação, tratamentos com eletrochoques e o confinamento dos internos pelo atendimento descentralizado e aberto nos núcleos espalhados pelos bairros de Santos. ‘Na época, segundo Auro Lescher (o psiquiatra Auro Danny Lescher, da Universidade federal de São Paulo, que então montava um espetáculo teatral com o grupo ‘Biruta’, encenando teatro como terapia), não passava de um depósito de excluídos’, diz, ‘até a rua em que estava localizado mudou, porque historicamente as pessoas tem medo de se aproximar da loucura’, afirma o psiquiatra, que propõe, com o Biruta e com a abertura dos manicômios, o que chama de ecologia da loucura. ‘Quando o hospital se abre e as pessoas retornam para sua comunidade, elas tem que lidar com esta situação nova’, explica. ‘De certa forma, a sociedade se ‘birutiza’, olha para suas loucuras, os pacientes são acolhidos e também acolhem. E isto é a própria cura’”.

(jornal O Estado de São Paulo, 20/11/1995,
reportagem de Maria Lygia Pagenotto)

Como o psiquiatra Edmundo Maia, figura de destaque não apenas em Santos, em que era o principal dirigente do Anchieta e professor da faculdade de Medicina, foi uma referência na prática dos antigos métodos da psiquiatria baseada na internação e tratamentos de choque - e ser um dos antigos donos do Anchieta e seu inspirador -, utilizamos suas palavras como contraponto das novas políticas do setor. Ele disse, na ocasião da intervenção municipal, em reportagens publicadas, que “estes jovens que estão ai não entendem nada de psiquiatria”, na medida em que se propunham novos métodos alternativos ao modelo hospitalocêntrico de internação compulsória, cuja realidade trágica já era pública. Em Santos foi feita uma experiência inédita sobre o tema, o da não-reclusão de seres humanos por seu estado mental, como política pública disposta a não submeter pessoas humanas a tratamentos cruéis que, por menos, apenas cronificavam seu estado – além de significar uma espécie explícita de violência.

Os novos métodos e seus papéis revelam as contradições do modelo antigo
Os novos métodos: a internação apenas em momentos de crise ou surto; hospitais / dia, muito próximos aos ambulatórios de hospitais-gerais, onde as pessoas não são trancadas, mas ficam um pequeno período em um ambulatório quando em crise; Centros de Atenção Psico-Sociais – os CAPS, em que o paciente é levado e trazido pelos familiares, passando ou não o dia. São apenas pacientes ambulatoriais, incluídos na vida da cidade como quaisquer outros cidadãos. Além de reintegrarem os pacientes na sociedade, economizam dinheiro da saúde, tratando dois pacientes com o que era (mal) pago para apenas um. Maia disse à imprensa na ocasião, à moda antiga, que “não se pode dar liberdade ao louco porque ele não tem capacidade para discernir”.

Se reconduzido à sua condição humana, com o acompanhamento por uma equipe de interprofissionais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, psiquiatras, enfermagem, voluntários. Centros de Convivência – um espaço que não tem como objetivo atendimento clínico e sim com o fazer artístico e de coisas do cotidiano – isto não apenas se inverte, como se prova que a liberdade recupera. Cooperativas, acompanhamento do psiquiatra à distância. Os NAPS – Núcleos de Atenção Psico-Social, muito parecidos com os CAPS, mas com leitos e enfermaria, menores do que os CAPS mas possibilitando um melhor acompanhamento para os tratamentos mais intensos. Psicodrama, terapias individuais em grupo substituem os remédios.

Abertos 24 horas por dia, inclusive fins-de-semana e feriados, os NAPS e os CAPS substituem o antigo manicômio – atendendo, prioritariamente, pessoas com sofrimento mental grave e aquelas que se sentem deprimidas, ansiosas ou que estão passando por problemas familiares e/ou sociais. O processo terapêutico individualizado de reabilitação é baseado em métodos científicos de revalorização da “parte sadia” da pessoa adoecida – e tem visitas e terapias familiares, atividades artísticas e ressocialização com atendimento médico. Ao contrário do manicômio que cronifica, as atividades dos NAPS são, por não provocarem isolamento e desagregação dos asilos, curativas e preventivas.

“Basaglia é uma mentira”?
Outra frase de Edmundo Maia, ideólogo de uma era na psiquiatria santista e com estabelecimento em São Paulo. Ao revés do “tratamento secular, faça-se o resgate da cidadania, jogos, arte, música, como propôs o realizador da terceira revolução mundial da psiquiatria. Artesanato, terapias ocupacionais eram métodos da reversão dos “tratamentos” aplicados como castigo há séculos, aos que Basaglia fez mudanças. Teatro, pintura, Projeto Tam-Tam, criação local. São fórmulas simples que caracterizam a caminhada para o desmanche do manicômio e a libertação da loucura, compreendida, como diria Nise da Silveira, como um dos “variáveis estados do ser”. Residências terapêuticas, voltadas para pessoas que perderam todo o convívio familiar, profissional e social em geral e não podem se manter inicialmente, funcionando como uma república ou pensão, sendo a casa delas. Pessoas que ficaram muitos anos no manicômio são os casos mais comuns destes moradores, que se deparam com os “incômodos” dos vizinhos que não querem “os loucos” por perto.

“Louco é todo aquele que não sabe viver”, disse Edmundo Maia. Mas com movimentos culturais, festas, aniversários comemorados, negação a exclusão, integração, contato, se observa o inverso, o apego. Oficinas terapêuticas e de produção, hospitalidade noturna / internação. Consulta ambulatorial ou domiciliar, atendimento terapêutico individual. Atendimento à família ou grupal, reabilitação psico-social, ações sócio-assistenciais, interconsultas. Há muito o que se fazer e que foi feito aqui. Casas e lares abrigados. Atendimento em postos de saúde. Uma rede de trabalhos substitutivos que reduz pela metade as milionárias verbas para sustentar os empresários da loucura no país que mantém os manicômios impositores de sofrimento para tantos, que consome a terceira maior despesa do SUS. São palavras-chave que sintetizam uma escola de solidariedade social na psiquiatria. É sobre esta causa que escrevemos.


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PINEL, RUSH, ROCHA, MAIA: A DEFESA DO MANICÔMIO

A escola, a igreja, a polícia, o exército e o manicômio são instituições que garantem a dominação desse “estado democrático”, que substitui o totalitário, mas que vai cumprir o papel de repressão voltado à preservação e à conservação do estado - que protege quem tem de quem não tem e mantém a “ordem” desejada pelos possuidores

É curioso, contraditório aparentemente mas parte do processo histórico que os “símbolos malvados” desta trajetória da psiquiatria institucional e autoritária – Pinel, Rush, Rocha, Maia – tenham, em seu momento, significado avanço e humanização no tratamento psiquiátrico, em seu momento histórico. Todos eles ampliaram as condições do contingente sob seu controle, embora mantendo a visão de dominação. Toda esta história aqui narrada, de um hospício libertado em Santos, na construção de novas políticas de Saúde Mental, não surgiu de comportamentos isolados, faz parte de uma trajetória das práticas aplicadas no mundo. Desde que, como diz o psiquiatra americano Thomas Szasz, defensor das teses da antipsiquiatria de Cooper e Laing - nascidas na Califórnia, se espalhando pelo Canadá, Inglaterra e Itália - a psiquiatria médica substituiu a caça às feiticeiras religiosas da Inquisição católica, que durou do século XII até o XVII, impondo suas torturas e seu terror. Muitas das torturas aplicadas como “tratamentos” até nossos tempos são, na verdade, cruéis métodos de imposição de sofrimentos, são heranças da Inquisição que matou milhares de pessoas em cinco séculos.

A Inquisição como matriz da psiquiatria institucional
Presente nos ritos de iniciação religiosa dos povos antigos, a tortura foi depois utilizada como punição e aproveitada como método de “tratamento psiquiátrico”, sem se alterar nos seus fundamentos, sobrevivendo até os nossos dias. Tem uma origem religiosa: os deuses pagãos não tinham misericórdia, eram vingativos, injustos e cruéis. O Velho testamento mostra um Jeová, o Deus de Israel, que aprovava a punição de negligências em relação ao dever com atitudes em que se queimavam e apedrejavam pessoas vivas até a morte.

“Não deixava de ser natural que as autoridades eclesiásticas ao punir faltas cometidas pelo povo se inspirassem no exemplo do deus que admiravam e temiam”, escreve o livro “Torturas e Torturados” falando da atitude da Igreja, em especial aqueles crimes contra Deus e seus mandamentos. Aliviava a concepção da vida eterna em que a morte não era aniquilação, mas porta para uma vida despida de pecado, muito melhor. E isso os desobrigava da culpa da imposição do sofrimento, o que se nos sugere absurdo.

A política de vingança dos hebreus foi adotada pelos cristãos primitivos, que não se afastou nem com o humanismo cristão tão reiterado nos evangelhos. São Mateus: “O filho do homem mandará seus anjos e eles expulsarão de seu reino todas as coisas faltosas e ofensivas e aqueles que perpetraram a iniqüidade; e os lançarão ao fogo do inferno; haverá gemidos e ranger de dentes”, frisa o pensamento. A lei romana concernente à tortura relativamente à traição foi aplicada à heresia, entendida como uma “traição a Deus”(“Crimen laesae majestatis divinae”), sem contar que o aspecto financeiro do confisco dos bens dos hereges favorecia o procedimento, no interesse dos detentores do poder católico.

De tal modo a Igreja demonizou os hereges e todas as religiões não-católicas, despejando-lhes a cólera divina, que toda grande catástrofe passou a ser atribuída aos hereges, ao “inimigo de deus”. E praticou por si mesmo a tortura que, incorporada pela Igreja de modo oficial, a “lei” da turba antecipou ou sugeriu a lei do estado (a Igreja), que alastrou sua aplicação e sistematizou-a, implantando-se como o mais rigoroso sistema de tortura que queimava pessoas vivas entre outros bárbaros métodos, que se expandiram para as ações penais, concomitantemente às da Inquisição em todos os países da Europa – denunciados por Beccaria só em 1764, mas que prosseguiram.

A Inquisição era uma corte de justiça ou tribunal fundado pela Igreja Católica Romana há mais de sete séculos, com a finalidade expressa de suprimir a heresia, ou seja, qualquer desvio religioso. A guerra contra a heresia antecipou em mil anos a Inquisição: desde o ano de 382 D.C. – século IV - já existiam normas da Igreja de execução aos apontados como hereges. Como crescessem os cultos alternativos, ameaçando o domínio da Igreja Católica, na primeira metade do século XIII foi instituída a “Santa Inquisição”, estabelecida pela primeira vez em Toulouse em 1233 e em 1238 em Aragon, ambos na França. Alemanha, Holanda, Portugal e Espanha também logo tinham seus tribunais, palácios com calabouços escuros e úmidos, cruéis.

A tortura inquisitorial foi introduzida pelo Papa Inocêncio em 1252, em uma bula papal - e durou cinco séculos, matando na fogueira um número incalculável de pessoas, milhares, talvez milhões. Muitos dos métodos de tortura gravados pela história permaneceram na trajetória da psiquiatria até os dias de hoje, inclusive as torturas aplicadas nas delegacias e mesmo as torturas aplicadas aos presos políticos tem herança nos métodos da Inquisição católica. Esse terror da Inquisição foi “disciplinado” pelo iluminismo e do positivismo da Revolução Francesa que, pseudo-cientificamente, dissociando-se da Igreja, pretendeu dar soluções científicas aos males da terra, instituindo os manicômios, separando os doentes mentais dos infratores legais. O positivismo foi um pensamento dominante que, após o término da Segunda Guerra Mundial, foi colocado em questão por sua ineficiência prática: a ciência, o progresso, a razão (“ordem e progresso”, o lema de nossa bandeira extraído do positivismo) não tinham impedido a tragédia, ao contrário, a acirraram. Desse pensamento antiquado nasceriam as experiências eugênicas e toda a barbárie psiquiátrica que discorremos.

Herança e tradição
Como exemplo, o psiquiatra Benjamim Rush, o positivista iluminista, era um teórico obcecado da violência, defensor obstinado do internamento psiquiátrico compulsório, de “terapias” como surras e fome impondo o controle absoluto sobre o doente mental. E defendia o açoite e as correntes para conter as crises, assim como o encarceramento de bêbados. Para Szasz, a chamada psiquiatria institucional foi uma conversão da teologia, da religião, para a ciência. São muitas as semelhanças que ligam as tradições da tortura a estes “tratamentos”.

O que chamavam “heresia”, ”patifaria”, “possessão” na “Santa Inquisição” da Idade Média – que mandava para a fogueira os suspeitos de feitiçaria e desvio da fé católica -, foram reclassificados em termos médicos - levando ao que se convencionou chamar de psiquiatria: a natureza substituía Deus, o Estado substituía a Igreja, a doença mental substituía a feitiçaria e a linha da autoridade igual. Ou como se diz aqui, “mudou o delegado mas a borracha é a mesma”. Nessa crítica, o pensamento do psiquiatra Thomas Szasz conflui com o de Foucault, que destaca que o confinamento do louco, radicalizando o processo de dominação, se inicia muito antes do aparecimento da psiquiatria, como historia este estudioso da mente humana.

É, na verdade, um processo de marginalização e exclusão. Como herdeiros dessas políticas de poder, seria impossível falar de manicômios sem contar sobre um de seus maiores defensores, um de seus instituidores, da política de internações compulsórias prisões sem condenação judicial: é o fundador da psiquiatria americana, o psiquiatra Benjamim Rush (1766 – 1813) – herdeiro pródigo da Inquisição, que inaugurou muitas das políticas aplicadas até hoje no mundo, cujo absurdo e brutalidade falam por si mesmo, sem necessidade de conferir valores a elas.

Para se entender o manicômio Anchieta, é preciso conhecer seus similares históricos, seu sentido, seus defensores. e, principalmente, sua filosofia. Ela é vinculada a da dominação econômica das minorias sobre as maiorias, baseada no controle social enclausurando os excluídos. Basaglia expõe que “podemos dizer que assim como o hospital é o túmulo do corpo, túmulo da doença e a derrota da medicina, o manicômio é a derrota da psiquiatria”. E que “o hospício é constituído para controlar e reprimir trabalhadores que perderam a capacidade de responder aos interesses capitalistas da produção”.

Em “Vigiar e punir”, o filósofo Michel Foucault (1926-1984) dá a pista de que a partir das transformações das regulações jurídicas dos indivíduos – os suplícios, as punições, as disciplinas – ele investiga a forma singular de organização de nossa sociedade, a que denominou ”disciplinar”. A constituição do homem da modernidade nesta sociedade é ditada pelos dispositivos institucionais organizados sob os mesmos princípios coercitivos: a prisão, o hospital, o manicômio e a escola, revelando suas práticas de adestramento, regulação, classificação e disciplinarização, micropoderes que interpenetram toda a sociedade. São relações de força construídas com a imposição por estes institutos de “verdades” e “saberes” indiscutíveis que reproduzem o modelo e o justificam.

Entre os maiores defensores do manicômio enquanto instituto figuram homens como Benjamim Rush, “pai” da psiquiatria americana, contemporâneo da independência daquele país e uma de suas expressões, amigo de Thomas Jefferson e John Adams - líderes e presidentes da Nova República. Ele assinou a Constituição dos Estados Unidos da América. Rush era um psiquiatra que igualava inconformismo social e saúde mental, atraindo todas as questões morais e sociais para a medicina: fosse contra, era louco – só abrindo exceções aos poderosos, na típica e dual moral burguesa.

Autor do livro “Pesquisas e observações médicas a respeito das doenças da mente”, editado em 1812, não fosse Rush tão defensor do poder e seu justificador e teria classificado como “loucos” seus amigos que fizeram a Independência americana - na lógica de seu pensamento, pois que inconformes com o estado anterior de submissão nacional à Inglaterra. Mas era amigo do poder este nosso personagem, tanto que o justificava “clinicamente”, como fez com a escravidão: os negros, para ele, eram leprosos – e precisavam ser tratados.

Rush achava que o homem sem razão, assim julgado pelos médicos, não tinha direitos de cidadania, restava anulado seu contrato social. Os médicos são os melhores juízes, respondia sobre quem deveriam ser os julgadores. O crime era uma doença, para ele, a cuidado não da policia, mas dos médicos. a mentira era uma doença, para as pessoas comuns, mas considerava terapêutico mentir para os pacientes, na hipótese de curá-los através da consolidação de suas próprias visões irreais.

Homem que acreditava no instituto do manicômio tanto que internou por toda vida seu próprio filho, foi o criador da “cela forte” como as que haviam no Anchieta – hospital em que só estava ausente a “cama com pregos” que instituira, entre outras inovações à sua época como a “cadeira giratória”, em que os pacientes eram amarrados e “girados” para que o sangue lhes chegasse à cabeça. Willian Bean, historiador da medicina e professor na universidade de Yoha, nos Estados Unidos, diz que o dogmatismo de Rush e sua capacidade de enganar-se sempre o ajudaram a matar um número incalculável de pacientes na Filadélfia. Mas como diria um inquisidor espanhol anônimo, “não importa se os que morrem por causa da religião sejam culpados ou inocentes, desde que aterrorizemos o povo com estes exemplos”.

Líder maior do chamado imperialismo psiquiátrico, ideólogo de suas sanções quase-médicas, com seu retrato na sede da associação psiquiátrica americana como fundador e pai, Benjamim Rush é a descrição típica e característica dessa “ciência” que se propagou e começou a ser destruída em Trieste e em Santos, exemplo mundial. Também Phillipe Pinel, o iluminista francês da psiquiatria e chamado “humanizador” dos tratamentos, era adepto da coerção e da intimidação, como se depreende de seus textos. Diz Szasz que a violência temida do louco é a violência projetada de seu perseguidor, que a partir do século XIII não é mais a “Santa Inquisição”, mas os psiquiatras. Na introdução deste trabalho, a memória das teorias e práticas de Benjamim Rush são elemento essencial para compreender os atos seguintes.

Em 1656, quando foi criado o Hospital Geral destinado aos pobres de Paris, esta é uma instituição que mesclava caridade e previdência, assistência e repressão na sua função de impedir a desordem traduzida na mendicância e o ócio. Base, pois, do manicômio, o Hospital Geral de Paris busca resolver o problema público que se tornara a miséria e a multiplicação da população de rua nestes tempos de adensamento urbano e da proliferação de favelas, focos de doenças, mendigos e desocupados nas ruas, disciplinando o cenário urbano na ótica positivista. No asilo, a medicina é a justiça e a terapêutica é a repressão. Como observamos, há pouco a ver com a questão do transtorno mental.

A rejeição ao modelo veio com as novas políticas de Saúde Mental, a chamada “teoria basagliana”, a terceira revolução da psiquiatria, Chegaram em 1971, com a noticia da demolição das paredes do manicômio de Trieste. Em maio de 1978, o parlamento italiano aprovou a Lei da Reforma Psiquiátrica (180), a chamada Lei Basaglia, proibindo novas internações e estabelecendo a desativação gradativa dos manicômios. Reduzindo de 120 para 28 mil o número de internos – no caminho da evolução da psiquiatria que superava sua face de coerção e dominação.

Em 1945, um levantamento jornalístico dos hospitais psiquiátricos estaduais nos Estados Unidos - a maioria situado nos locais de maior riqueza -, efetuado pelo psiquiatra Albert Deustch, mostrava cenas que podiam ser comparadas aos horrores dos campos de concentração nazistas, de acordo com o livro de Thomas Szasz: “..eram centenas de doentes mentais nus, entulhados em enfermarias imensas, semelhantes a estrebarias, cheias de sujeira, em todos os graus de deterioração, não atendidos nem tratados, despidos de qualquer vestígio de dignidade humana, muitos em estado de semi-inanição”. Qualquer semelhança com o quadro encontrado no Anchieta não será mera coincidência. De Pinel a Maia, passando por Rocha e Rush, uma trajetória linear de opressão e invasão.

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BREVE TRAJETÓRIA DA PSIQUIATRIA NO MUNDO

A trajetória do processo de tratamento dos portadores de distúrbios mentais, secularmente isolados do convívio social em toda a história da humanidade, esteve sempre em sintonia com a visão social predominante, como fruto da circunstância econômica vigente. Traduzindo a relação entre dominadores e dominados, espelhando as fórmulas aplicadas aos demais contingentes marginalizados pela força do poder econômico e político. Em uma dominação baseada, fundamentalmente, na exploração do homem, das maiorias pelas minorias através da violência. Fica clara a estreita ligação, atribuída por Szasz , da psiquiatria institucional, a Inquisição e a Escravidão, alterando apenas seus signos e utilizadas por todos os governos e regimes políticos.

Como nasceu o hospício
“Hospício” deriva de “Hospital” que por sua vez vem do latim “hospes”, que significa “hóspede”. “Hospitalis” quer dizer hospitaleiro, generoso e “hospitium” pode ser um aposento ou um covil de animais, onde na antiguidade se hospedavam, além de enfermos, viajantes e peregrinos. Observe-se que “hospita” e “hospes” tem a ver com visitante, estrangeiro, estranho. Quando o lugar era ocupado por pobres, incuráveis e insanos, era chamado de “hospitium”, diferente de “hospitalis”, já marcando o hospício e o “estranho”. Desde antes da era cristã já se contam prédios junto aos templos para os enfermos, colocando o doente “perto de Deus para que a ação dos sonhos associada aos medicamentos empíricos preparados pelos sacerdotes pudessem curar”. Deslocados para as estradas onde passava o exército, nascido em 360 D.C., o hospital era um depósito de doentes sem recursos, isolando e tratando na ótica da solidariedade cristã. E seu sentido é o da segregação dos diferentes, dos “estrangeiros” – estranhos - como o do livro de Albert Camus, “O Estrangeiro”. Já em 1377 o “Bethlehem Hospital”, em Londres, foi usado para abrigar doentes mentais. Segundo o livro de Thomas Szasz, daí se origina o termo “bedlam”, que em inglês significa “hospício”, como explica este autor.

Segundo Foucault, em “A história da loucura na Idade Clássica”, o primeiro hospício surge no século VII e tem origem na cultura árabe. Os primeiros hospícios europeus são criados no século XV, quando da ocupação árabe da Espanha. Na Itália eles datam do mesmo período, surgindo em Florença, Pádua e Bérgamo. No século XVII, os hospícios proliferam e abrigam juntamente com os doentes mentais os marginalizados de outras espécies, recebendo tratamento desumano, pior do que o recebido nas prisões.

Esquirol, estudioso dos manicômios no século XIX, autor do livro clássico “Tratado das doenças mentais”, de 1838, em um livro de 1818 - na informação reproduzida por Ugolotti em 1949 -, retrata o quadro: “Eles são mais maltratados que os criminosos; eu os vi nus, ou vestidos de trapos, estirados no chão, defendidos da umidade do pavimento apenas por um pouco de palha. Eu os vi sem água para matar a sede e das coisas indispensáveis à vida. Eu os vi entregues às mãos de verdadeiros carcereiros, abandonados à vigilância brutal destes. Eu os vi em ambientes estreitos, sujos, com falta de ar, de luz, acorrentados em lugares se hesitaria até em guardar bestas ferozes, que os governos, por luxo e com grandes despesas, mantém nas capitais”.

Até o fim do século XVIII, a Psiquiatria jamais foi tratada com especialidade autônoma, apenas referidos os casos de patologia mental em livros gerais de Medicina, quer dos antigos Hipócrates, Asclepíades, Areteu, Celso, Célio, Sorano de Éfeso, Galeno), quer em autores medievais ( Alexandre de Tralles, Paulo de Égina, os árabes Rhazes, Averrões e Avicena), quer dentro da Idade Moderna (Charles Lepois, Paulo Zachias, Plater, Thomas Willis Bonnet, Thomas Sydenham, Herman Boerhaave, Cullensm Sauvages, Cabanis, Broussais e outros). Como disciplina autônoma, didática e clinica, a psiquiatria nasce no início do século XIX, sobretudo na França e Alemanha.

Do “hospizio” ao “asylum”, “madhouse” ou “asile”, através dos séculos pouco variou esta realidade. Utilizada como meio de controle social e de afirmação ritualizada da ética social dominante, a psiquiatria institucional mostrou ser uma sucessora digna da Inquisição, diz Szasz, que busca comprovar a tese em seu livro. Alguns anos após a fundação do Hospital Geral de Paris, em 1656, escreve Michel Foucault (1926-1984), um dos principais críticos do positivismo psiquiátrico e da herança iluminista centrada na razão, estavam internas 600 pessoas, um por cento da população. Em 1805, é fundado o sistema alemão de hospitais psiquiátricos, ao que diz o príncipe Karl August von Hardenberg: “O Estado deve preocupar-se com todas as instituições para os que tem a mente perturbada...”

Psiquiatria e Poder
A tendência predominante de se isolar em sanatórios esse contingente, submetendo-o a tratamento de choque, insulina e medicamentos – sem contar as violências perpetradas contra os chamados loucos nas décadas e séculos passados -, revela a mesma face autoritária que os sistemas governamentais dispensavam ao trato com todas as questões de interesse da maioria, reservadas a uma pequena parcela de pessoas o poder de discussão sobre elas - a detentora de todo o arco de coerção em nome dos governos instituídos. Como escreve Basaglia, a conclusão cientifica é sempre produto de uma elite e universo da doença submete-se a ela, que se utilizou da psiquiatria institucional como meio de exercer o poder. Em 1886, o rei da Baviera Luís II é deposto e diagnosticado como louco paranóico. O rei mata o psiquiatra e se suicida: ele – o psiquiatra – tinha o poder e o que havia dito era a verdade absoluta perante o todo.

Esta estratégia de se estigmatizar e isolar os “diferentes” se conjugou sempre com a ideologia vigente, baseada na equação produção / lucro / acumulação. Improdutivos, os chamados loucos foram desde logo cidadãos de segunda classe e submetidos a toda espécie de experimentações e crueldade. A reversão desse quadro só daria, portando, mediante alterações de caráter econômico e político, que ditaram seus procedimentos após a Revolução Francesa.

Mas esta não seria tanto a ponto de resgatar os direitos dos diferentes, apenas de “especializar” seu tratamento, agora não mais vítima da religião mas dos psiquiatras. Foi na queda do Absolutismo, na Revolução Francesa, irradiado a partir daí para todo o mundo, que nessa afirmação da democracia, os doentes mentais começaram a ter reconhecimento como tal. Essa teoria foi implantada sob forte resistência - a sua libertação do confinamento junto com os marginais comuns -, sendo recolocados em locais distantes e imundos, sem conforto ou higiene, indefinidamente presos a grilhões. Era essa sua realidade até fins do século XVIII, vivendo em condições precárias e desumanas- ainda sob o peso de velhas superstições, que os considerava possuídos pelo demônio ou copiando penas por pecados tenebrosos.
Pinel: a razão do Estado na psiquiatria
Foi Phillipe Pinel (1745-1826) quem tratou, pela primeira vez, a psiquiatria como especialidade autônoma - até 1800 referida nos livros gerais de Medicina como “patologias mentais”-, escrevendo em 1801 o “Tratado médico-filosófico sobre a mania“ e, em 1808, “Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental”. Coube a ele implementar a primeira revolução no tratamento com psicopatas. Ele retirou as correntes do insano, criando o hospício, mas era um defensor irrestrito da coerção psiquiátrica. É um iluminista, positivista, defensor da “razão” dos revolucionários de 1789 na França.

Seu livro “O tratado da Insanidade” está cheio de elogios à intimidação e à coerção: “Se ele (o louco) enfrenta uma força evidente e convincentemente superior, submete-se sem oposição ou violência”. E “...em outros casos, rastreamos os bons efeitos da intimidação sem severidade”. Szasz cita o psiquiatra Jules Masserman, autor do livro “A prática e a dinâmica da psiquiatria”, que também aponta na direção da sanção, dizendo que a psiquiatria funciona melhor entre militares do que na vida civil, porque lá se pode exercer a “autoridade”.

Diretor do “Hospice de La Bicêtre” e “Salpêtriére”, em Paris – em que seria experimentada a guilhotina à época de sua invenção, em 1792 -, Pinel advogou e obteve, contra fortes pressões, o direito de libertar os doentes e dar lhes espaço e sol, na condição de seres humanos. Obra idêntica realizaram, na mesma época, Chiaruggi, na Itália, e Hans Tucke, na Inglaterra. Não seriam assim tão drásticas as bases desta evolução, vinculada às transformações estruturais da sociedade em favor das maiorias, pois a “razão” instalada com os princípios iluministas de Rosseau e com esforço do revolucionário Jean-Paul Marat na Revolução Francesa, manteve a lógica do poder, apenas alterando sua concepção. Como vimos, ele ainda abraçava a violência.

Mas é antes de Pinel que se demonstra o processo para o qual evoluiriam os manicômios, precisamente em 1656, quando ocorre o que é chamado de “a grande internação” - pois neste ano, por um édito real, foi criado o Hospital Geral destinado aos pobres de Paris. Esta é uma instituição que mescla caridade e previdência, assistência e repressão, na sua função de impedir a desordem traduzida na mendicância e o ócio. Base, pois, do manicômio, o Hospital Geral de Paris busca resolver o “problema público” que se tornara a miséria e a multiplicação da população de rua nestes tempos de adensamento urbano e da proliferação de favelas, focos de doenças, mendigos e desocupados nas ruas. Era preciso disciplinar isto na ótica da ciência e da disciplina. Não são apenas abrigos, são institutos morais encarregados de assistir, isolar e corrigir marginalizados cujas regras são semelhantes às das prisões, como explica Foucault na sua “História da Loucura”. Os cuidados médicos não constituem nem o sentido e nem o objetivo do internamento, o que iria ocorrer em principio a partir de 1770 com a prática do asilo: a medicina é a justiça e a terapêutica é a repressão.

Não se aceitava mais a visão mágico-religiosa da alienação mental e seu tratamento a base de purgantes, sangrias, jejuns, disciplinas e rezas. O Estado liberal, que nasce como produto de uma ruptura que marcou o mundo, é abstrato: sua concepção é a da “razão”, o direito de todos de trabalhar e viver com dignidade. Este cria em torno de si uma rede de instituições para concretizar esta abstração, perÍodo em que nascem as ciências humanas, que tem sua expansão. Neste momento, Pinel recebe a delegação do Estado para separar loucos de criminosos, separando manicômio do cárcere, ambos dirigidos pelo Estado. É o iluminista francês da psiquiatria. Os loucos continuaram trancafiados, não mais junto com os sifilíticos e os marginais comuns, e não mais despachados em navios para locais distantes - como se fez na Idade Média: naquela época, a loucura era “pobreza de espírito” e “coisa de bruxaria”.

Houve épocas, na antiguidade grega, em que os loucos eram romanticamente reverenciados como profetas e conselheiros: agora, eram considerados animalizados, mas doentes. Duas correntes diferentes de pensamento passam a existir desde que os “loucos” passam a ser assunto médico-científico, quanto ao seu tratamento e sobre a origem de seus males. Uma crê no tratamento “moral”, nas práticas psico-pedagógicas, nas terapias afetivas. Outra focaliza o tratamento físico, crendo ser a loucura um mal orgânico, fruto da lesão ou mal funcionamento encefálico, não considerando o ambiente manicomial importante para o tratamento. Mesmo após Pinel, o criador da “medicina manicomial”, o tratamento era mais baseado na tortura do que na ciência médico-científica. Nenhuma das duas correntes citadas dispensava o tratamento físico baseado no “choque” provocando no paciente uma sensação intensa que o tirasse de seu estado de alienação.

Práticas de sangria, isolamento em quartos escuros, banhos de água fria, aparelhos que os faziam rodopiar até que perdessem a consciência. Alternam-se estes dois momentos da psiquiatria. Os psiquiatras Benedict Morel (1809-1873) e Valentin Magnan (1835-1916) postularam que a doença mental era hereditária e agravante, levando à extinção. Na Itália, Cesare Lombroso (1836-1909), considerado o “pai” da Antropologia Criminal, achava características degenerativas nos criminosos.

Benjamim Rush, coerção e violência
Benjamim Rush (1746-1813), o pai da psiquiatria americana, diretor da faculdade de Medicina da Pensilvânia, foi o primeiro médico a defender a transformação de problemas sociais em problemas médicos – e seu controle coercitivo através de sanções “terapêuticas” e não “punitivas”. Segundo Szasz, Rush era um mestre da metáfora médica, rebatizando problemas morais e sociais com termos médicos, chegando a fazer um dicionário com os equivalentes médicos dos termos morais.

Rush é um defensor da coerção e da autoridade sobre o doente mental, a hospitalização involuntária, tendo inventado mecanismos como a “cadeira tranqüilizante”, em si semelhante aos aparelhos de tortura da Inquisição. Inventou também o “girador”, que levava o sangue à cabeça do paciente em se girando o infeliz que caísse em suas mãos. E o “mergulho”, em que a cabeça do paciente era enfiada na água. Autoritário, dominador, violento e fanático, como o classifica Szasz, sustentou que a cor negra da pele dos africanos derivava da lepra. É necessário falar de Rush porque é ele um dos principais nomes da psiquiatria institucional e seus métodos “terapêuticos”, demonizando o “outro” e só aceitando a sua adaptação ao “eu”, do controle comportamental – ou o “outro” será um deficiente, física, moral e mentalmente.

Sua teoria era, para ele, “socialmente útil” e assim a propagava, justificando, por exemplo, no caso da “lepra negra” a revelação cristã de que viemos de um só e justificando a escravidão, uma negritude a ser “curada”. Em 1752, abre-se o Pensilvânia Hospital, na Filadélfia, a primeira instituição americana a receber doentes mentais. Desde meados do século XVIII que era aceito o tratamento pelo Estado dos doentes mentais. Em 1773 seria na Virginia, o Asilo Williamsburg, a primeira instituição exclusivamente para doentes mentais. Em 1784 é inaugurado o Narreturm, em Viena, na Áustria, descrita em 1843 como uma prisão suja, fechada, mal ventilada, com cheiro insuportável e doentes acorrentados e nus. É no final do século XVIII que surge o hipnotismo, por Anton Mesmer, médico alemão que achava que a produção de delírios e convulsão nos pacientes baniriam o mal.

James Braid modernizou a técnica e trabalharam com ela Charcot e Freud, que se afastou dela por notar que agrava casos psicóticos, derivando para a psicanálise. Em 1811, Theodoric Romeyn Beck, da cidade de Nova Iorque, publica a sua “Dissertação inicial sobre a insanidade”, em que defende a “vigilância humanitária” e a camisa-de-força para os “lunáticos”. Em 1911 surge o termo “esquizofrenia”, tão utilizado para rotular transtornos mentais. Nesse ano, na Alemanha, existem 225 hospitais psiquiátricos particulares, 187 públicos, 85 para alcoólatras, 16 clinicas universitárias, 11 enfermarias, 5 delas em hospitais militares, com mais de 143 mil pessoas internadas em um ano e 1.376 alienistas praticantes (psiquiatras). Em 1814, a Câmara dos Comuns da Inglaterra indica uma comissão para investigar as condições desumanas nos hospícios.

Em 1855 são separados insanos criminosos dos demais, pelo Legislativo de Nova Iorque. Em 1860, um marido podia mandar sua esposa para um hospício, bastava um pedido, nos Estados Unidos. Em 1885, em Paris, a histeria é tratada através da extração do ovário; em Londres e Viena, do clitóris, na Alemanha, pela cauterização do clitóris.

Freud
Em 1875 nasce Jung e em 1881 se forma em Medicina Sigmund Freud, nascido em (1856 – 1939), que se especializa em Neurologia e seria o fundador da Psicanálise, quando inaugura um novo discurso cujo objetivo é emprestar um estatuto científico à psicologia. Na verdade, longe de acrescentar um novo capítulo à área das ciências chamadas positivas, ele introduz uma ruptura radical na relação do homem com o mundo. O freudismo é a aliança de um sistema de pensamento com um método terapêutico, uma concepção do inconsciente que exclui qualquer idéia de subconsciência ou supraconsciência, em uma teoria da sexualidade que se estende a todas as formas sublimadas da atividade humana.

Embora nascido da medicina e da psiquiatria, freqüentemente praticado por médicos e psiquiatras, o método terapêutico freudiano é a psicanálise e tão somente a psicanálise. Sua característica é tratar através da fala - e unicamente através da fala - as doenças da alma (psicose, melancolia), dos nervos (neurose) e da sexualidade (perversão), excluindo totalmente qualquer outra forma de intervenção tais como exames clínicos e cuidados corporais – a cirurgia, a hipnose, a hidroterapia, a farmacologia, a internação, a sugestão, a coerção, entre outros métodos. Freud conhece Josef Breuer em 1878 e estuda neuropsiquiatria infantil nesse ano.

Em 1879, Freud freqüenta os cursos de psiquiatria de Theodor Meynert, ano em que nasce o psiquiatra e psicanalista inglês Ernest Jones, fundador da psicanálise na Grã-Bretanha e parceiro de Freud, que contribuiu para expandir as idéias no Canadá e Estados Unidos. Em 1880, Freud traduziria ensaios sobre a questão operária e o socialismo de John Stuart Mill (1806-1873). A neurologia é reconhecida como disciplina autônoma e em 1882 Jean Marie Charcot, médico fisiologista francês, é o titular da recém-criada cadeira de doenças nervosas, com quem Freud faz estágio – e na Inglaterra, para onde vai em 1891, elabora o método da psicanálise das “associações livres”, em que o paciente diz tudo o que lhe vem a cabeça, libertando-se das repressões.

Entre 1886 e 1890 Freud exercia a medicina como especialista em doenças nervosas, tendo praticado a hipnose em 1887. Intérprete de sonhos, em 1896 nasce o termo psicanálise para nomear um método específico de psicoterapia, entendida como método de tratamento não apenas de enfermidades nervosas como somáticas. Freud descobre o inconsciente como sistema. Em 1901 nasce o psiquiatra e psicanalista francês Jacques Lacan, que reformularia a obra freudiana e em 1902 é fundada a primeira sociedade psicanalista no mundo, a Sociedade Psicológica das Quartas-feiras. Stkel, um amigo de Freud, começa a praticar a psicanálise e em 1906 nasce o relacionamento intelectual com Jung.

Em 1910, chega a Associação Psicanalítica Internacional, que tem Jung como primeiro presidente, em 1912 a associação americana de Ernest Jones. Em 1913, Jung rompe com Freud, após tentar dessexualizar sua doutrina. Franco da Rocha e Durval Marcondes fundam em 1927 a Sociedade Brasileira de Psicanálise. A terminologia freudiana é banida do vocabulário da Alemanha a partir de 1933, a psicanálise é considerada uma ciência judaica e desprezível. Psicanalistas alemães emigram para a França, Inglaterra e Estados Unidos.

Os livros de Freud são queimados na Alemanha de Hitler. Jung exclui judeus de uma sociedade composta por psiquiatras e psicoterapeutas, aderindo ao nazismo. Freud morre em 1939. Como sistema de pensamento, o freudismo marcou as artes e o campo do saber que lhe eram preexistentes, como a psicologia, a psiquiatria, a filosofia e a história, a religião, a pintura e a literatura. E também todos os que se constituíram ao mesmo tempo que ele, como a antropologia, a sexologia, a criminologia e a lingüística, tendo atravessado todo o século XX e formado gerações de seguidores, os psicanalistas culturalistas como Erich Fromm e Karen Horney.

Lobotomia, loucura e rotulagem
Em 1933, chega o choque de insulina na psiquiatria, pelas mãos de Manfred Sakel, de Viena, a convulsoterapia química, de Ladislau van Meduna, e, dois anos depois, Egas Moniz, de Lisboa, introduz a lobotomia pré-frontal, ou psicocirurgia, prêmio Nobel de Medicina em 1955. Viriam, depois, a neuroplegia, a sonoterapia e a impregnação. A rotulagem é característica e nada científica: nessa época, um grupo de psiquiatras alemães tenta tirar Hitler do poder, classificando-o como louco. Cerca de 50 mil pessoas, alemães e não-judeus, são mortos na Alemanha, muitos internados em hospitais psiquiátricos, de 1939 a 1941: é a eutanásia. Em 1952, chega a psicofarmacologia e os medicamentos para problemas mentais, afirmando a crença de que os transtornos mentais são doenças e que existem remédios para eles.

Este passo é importante para afirmação da tendência brutalizante da psiquiatria. Mais rotulagens: Em 1960, o líder do Partido Nazista Americano é considerado louco e, no ano seguinte, declara que os judeus é que são loucos. Mas Adolf Eichmann, o criminoso nazista, genocida compulsivo, analisado por seis psiquiatras, é considerado “normal”. Mais: assassinado John Kennedy em 1963, tanto seu assassino, Lee Harvey Oswald, como o assassino deste, Jack Ruby, são considerados loucos. “Se tivessem sido tratados na infância, Kennedy estaria vivo”, escreve a imprensa. Percebe-se a classificação aleatória dessa condição de insanidade, que dependeria basicamente da ótica e da vontade de quem a aplica.

Em 1968, acaba a Inquisição. Só em 68?
Mas ninguém classificou tão bem uma sociedade como Dick Gregory, comediante negro americano, em 1967: é a nação mais racista do mundo, diz ele, o país “está doente e louco”. O mesmo diz o escritor Norman Mailler em 1968 e Herbert Marcuse no mesmo ano, na crítica que faz à uma sociedade que, com melhores meios econômicos, precariza os serviços sociais e médicos. Só em 1968 a Espanha declara nula a decisão de 1492 de expulsar os judeus – a Inquisição, antecessora desta psiquiatria -, em 16 de dezembro: a brutalidade tem história extensa. Era a “prima facie” da psiquiatria institucional. A estrutura de dominação que cooptou a ciência como criminalizadora, ao invés de responder às necessidades da pessoa, cria a ideologia da eliminação desta, a que não está dentro do jogo da produtividade – e o doente mental é um deles. Instala-se a lógica do valor positivo a quem produz e vice-versa.

O hospício, escreveu Basaglia, foi construído para controlar e reprimir trabalhadores que perderam a capacidade de responder aos interesses capitalistas de produção, vitimas que foram de pressões insuportáveis.

A ciência positivista na psiquiatria
Na segunda metade do século XIX, a teoria positivista era predominante e ela julgava que o louco era incapaz de raciocinar, pois não tinha qualquer lógica, sendo incurável. No fim do século passado, a medicina procurava curar males mentais por intervenções físicas e químicas. Já dissemos do tempo em que, nos Estados Unidos, Benjamim Rush inventou uma cadeira giratória, na qual o paciente era amarrado e rodopiava até que o sangue lhe subisse à cabeça. Acreditava-se que, com mais sangue, esta funcionaria melhor. Manfred Sakel usou pela primeira vez os choques insulínicos para esquizofrênicos, levando-os ao estado de coma sucessivamente, refazendo-os com glicose. A idéia era “refazer” a mente do indivíduo. Drogas convulsivas, como cânfora e o cardizol, eram ministrados nos psicóticos e as pessoas tinham ataques epiléticos artificiais tão violentos que chegava a sofrer fraturas ósseas. Inicia-se o uso das camisas-de-força e das celas-fortes.

Em 1938, os italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini criam o eletrochoque – a convulsoterapia elétrica -, largamente usado no regime fascista, descoberto como amansador de porcos, antes do sacrifício dos animal - sem considerar que os mecanismos de transmissão de impulsos elétricos do cérebro são desconhecidos e que os danos resultantes na estrutura cerebral são permanentes. Alguns ficam como o que disse Nise da Silveira sobre os lobotomizados, os que sofrem operações cerebrais - ficam inúteis para os desenhos artísticos, revelando falência cerebral. Apesar disso, o sistema foi usado até recentemente aqui e ainda é aplicado no país. Sedativos sintéticos, para aplacar as ansiedades e agitações dos doentes mentais, são usados desde 1850, mas as indústrias farmacêuticas ganharam impulso nos últimos 40 anos - sendo produzidos, em larga escala, diversos psicofármacos. Como são lucrativos, são incentivados nos hospitais psiquiátricos pelos laboratórios multinacionais.

Inquisição, feitiçaria e escravidão. A psiquiatria americana e o “Caso Donaldson”
Nos Estados Unidos, o destaque nas ações da antipsiquiatria foi do psiquiatra e professor da Universidade de Nova Iorque Thomas Szasz, que em suas obras compara a “psiquiatria involuntária” - as internações e tratamentos compulsórios - à escravidão e à Inquisição. Autor de vários livros e centenas de artigos, lecionando desde 1956, Szasz traça paralelos entre a terapia forçada, as drogas e os choques dos hospitais psiquiátricos às práticas da Idade Média contra a feitiçaria e os judeus e da Igreja Católica contra os “hereges”, todos os que se desviassem ou sugerissem desvio da fé católica – que iam para a fogueira. Para ele, o principal problema da psiquiatria foi e continua sendo o da violência, como diz em seu livro editado em 1976 “A fabricação da loucura”: a violência do “louco” é a violência real da sociedade e da psiquiatria contra ele – de onde resulta a desumanização, a opressão e a perseguição do cidadão estigmatizado como “mentalmente doente”. E chama a atenção, se concordarmos com essa tese, para a frase de John Stuart Mill: “...é contrário à razão e à experiência supor que possa haver qualquer controle real da brutalidade quando a vítima é deixada nas mãos do carrasco”.

Diz Sazsz que o conceito de doença mental é análogo ao de feitiçaria. Como se atribuíam atos de feitiçaria no século XV, hoje se atribuem atos insanos, o que relata ter demonstrado desde 1966. Citando historiadores da Medicina americana como Henry Sigerist, prova essa evolução da feitiçaria para a psiquiatria. As feiticeiras, ao invés de tratadas como insanas, foram castigadas por heresia, a maioria incendiadas pela Inquisição católica. A elas foi atribuída esta condição de “feiticeiras”, que não escolheram – vítimas da Igreja e do Estado, por comportamentos “divergentes”. Como se criaram as feiticeiras criaram os doentes mentais, diz Sazsz, por não serem “iguais”.

Bruxas, mulheres de expressão
Ao seu tempo, na Idade Média, às mulheres restava a subserviência absoluta ou, na revolta e atitude, a acusação de feitiçaria, sendo esta a origem da estigmatização e perseguição das “bruxas” – vide Joana D’arc, um fenômeno relacionado com a loucura.

O que se traduz, para Sazsz, é que a “evolução” a partir de Pinel transformou a psicologia em medicina, o alienista (psiquiatra) em inquisidor, o movimento religioso por um movimento médico de massa e a perseguição dos heréticos em perseguição aos doentes mentais. Para ele, a psiquiatria institucional é, como a Inquisição, um abuso em si mesma, não que cometa abusos. “Há nos Estados Unidos um maior número de confinados em hospitais psiquiátricos do que nas penitenciárias”, escreve ele em seu livro “A escravidão psiquiátrica”, de 1977, lançado aqui em 1986.

“Como se justifica essa prisão de pessoas que não infringiram as leis? Por que os tribunais e advogados, as associações de direitos civis e os psiquiatras apóiam a hospitalização compulsória dos doentes mentais?”, pergunta. Militante da causa antimanicomial, Thomas relata, neste livro, o caso Kenneth Donaldson, internado a pedido de seu pai em um hospital psiquiátrico nos Estados Unidos, no Florida State Hospital, em Chattahooche, em janeiro de 1957.

Liberado em julho de 1971, com pedido deferido por um juiz distrital da Flórida - ele que travou extensa batalha judicial contra sua internação compulsória, indo até a Suprema Corte do país. Foram dezoito petições a diferentes Tribunais da Flórida, além da Suprema Corte. Donaldson promoveu ações coletivas e ações de indenização contra seus algozes, que venceu, com apoio da Mental Health Law Project – uma associação pela mudança das leis de Saúde Mental, com dez advogados, fundada em 1972 e destinada, segundo Szasz, a “refinar” a psiquiatria institucional e não a aboli-la. A Corte examinou o caso sob a premissa da escravidão psiquiátrica – e a decisão foi em favor de Donaldson que, no entanto, teve a indenização pleiteada negada. Na verdade, para Szasz foi mais uma vitória da psiquiatria institucional.

“Inúmeros conceitos psiquiátricos baseiam-se em deslavadas mentiras, tal como é mentira chamar de hospitais os prédios em que pessoas inocentes são aprisionadas. e um sem número de procedimentos psiquiátricos não constituem hoje senão coerções grosseiras, como é coerção o encarceramento de pessoas sob os auspícios da psiquiatria, sob a denominação de hospitalização psiquiátrica”, apontando seu apoio na religião, ciência e no estado”. (Thomas Sazsz)

Rotteli: a reação e a luz
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, os psiquiatras Felix Guattari e Monik Elkain, entre outros psiquiatras e psicólogos fundaram as primeiras comunidades terapêuticas. Ao inverso, a psiquiatria institucional estendendo-se para os Estados Unidos de forma diferenciada, amparando-se no sistema oficial de saúde, resultando na maximização da utilização de drogas - hoje um grave um grave problema no país, onde cerca de 80 milhões de pessoas utilizam medicamentos psíquicos. Laing, Cooper e Esterson realizaram avançadas experiências na Inglaterra, chamados representantes da antipsiquiatria, defensora da tese de que o paciente tem direito de ser diferente. Na Itália, Franco Rotelli dizia que a apatia encontrada nos pacientes não era sintoma da doença, e sim do ambiente em que ele se encontrava, o comportamento gerado a partir do tratamento recebido. Era uma luz que se lançava.

Basaglia, a terceira revolução mundial da psiquiatria, em Trieste
Em 1971, picaretas são distribuídas por uma união de novos-pensadores da psiquiatria, uma corrente chamada de anti-psiquiatria ou de psiquiatria democrática, que põe abaixo o manicômio e cria uma forma mais inteligente de lidar com a questão. O nome desse precursor do Movimento Psiquiátrico italiano é Franco Basaglia, que está na raiz do movimento santista, nascido em 1924 e desaparecido em 1980. Após a Segunda Guerra Mundial, depois de 12 anos de carreira acadêmica na Faculdade de Medicina de Padova, Basaglia ingressou no Hospital Psiquiátrico de Gorizia – e promoveu mudanças no sentido de transformá-lo em uma comunidade terapêutica, melhorando as condições de vida dos internos.

Porém, a percepção de que era preciso avançar para além da mera humanização do manicômio foi a lição do psiquiatra neste exercício, exigindo profundas transformações no modelo e no relacionamento da loucura com a sociedade. Ele rejeitou a postura tradicional que colocava o indivíduo e seu corpo como mero objeto de intervenção clínica, assumindo uma posição crítica em relação à psiquiatria clássica e hospitalar por esta se centrar no isolamento e na internação, portanto excludente e repressora. Foi na leitura de Michel Foucault que Basaglia formulou a tese da “negação da psiquiatria”, que para ele não era suficiente para dar conta do fenômeno complexo da loucura.

Existiam outras necessidades, considerava, agregando doenças que se sobrepunham ao paciente como fruto da internação. O psiquiatra Franco Basaglia , no objetivo da reversão da história da psiquiatria, ao impor modificações nos tratamentos no Hospital de Gorizia, reformulando os conceitos em vigor. ao se difundir estas críticas se aceleram o processo da Reforma Psiquiátrica na Itália, baseadas na política do setor inglesa e na experiência francesa que antecede Trieste com Guattari. Ela questiona a natureza ideológica da ciência, absorvendo Foucault no sentido de que o manicômio é um sobrevivente arcaico, um produto do iluminismo e do capitalismo. É caminho para a Lei de Reforma Psiquiátrica de 1978, inspirada pela ação demolidora do Hospício de Trieste, que acolhe o processo de desinstitucionalização, proíbe novos hospitais psiquiátricos e novas internações nos hospitais existentes, abolindo a tutela do doente mental e sua “periculosidade social”.

Derrubando as paredes do hospício
Nomeado diretor do Hospital Provincial da Cidade de Trieste em 1970, Basaglia iniciou o processo de fechamento do hospital, promovendo a substituição do tratamento hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento, da qual faziam parte serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias assistidas, a que chamava “grupos-apartamento”, abrigando os ex-internos que libertara. Em 1971 ele oferece picaretas para que os ex-internos demolissem o manicômio. Em 1973, a Organização Mundial de Saúde credenciou esse serviço como a principal referência mundial para a reformulação da assistência à Saúde Mental.

Em 1973, surge o Manifesto de Bologna, já como expressão da crítica de Basaglia ao modelo de Gorizia em que atuou e contestou. E em 1978, a lei 180, que Franco Rotelli, em um artigo na revista “Divulgação em Saúde para o debate”, em 1991, resgata como a crítica a Gorizia ao saber, ao poder e à operacionalidade da psiquiatria que legitimou a exclusão de milhões de cidadãos, geralmente oriundos das classes pobres. A partir de 1976, o Hospital Psiquiátrico de Trieste foi fechado definitivamente e a assistência em Saúde Mental passou a ser exercida totalmente na rede territorial montada por Basaglia. Em função desse fato, em maio de 1978, a Lei Basaglia seria aprovada pelo parlamento italiano, proibindo novas internações e determinando a extinção gradativa do sistema de confinamento, na época de mais de cem mil pacientes, regredindo para menos de 30 mil. Ele esteve várias vezes no Brasil, em seminários e conferências e sua influência foi determinante, em relação direta com o Anchieta – que teve, como seu diretor, o antigo estagiário que trabalhou com Basaglia, Tykanori.

Foucault e a crítica
Crítico sagaz dos métodos de concepção da sociedade capitalista que denomina “disciplinar”, para Foucault o homem da modernidade é moldado a partir de instrumentos de regulação e disciplinarização, de julgamentos de faltas e de sua correção, do arbitramento de danos e de suas responsabilidades. Para ele, foi a partir das complexas técnicas do inquérito jurídico que nasceram as fórmulas utilizadas na ordem científica e na ordem de reflexão filosófica, originado que é o inquérito como forma de pesquisa da verdade entre a baixa e alta Idade Média, que o capitalismo teve baseada sua formação e estabilização.

Iniciador de estudos de gênero, sexualidade e cultura, sobre a formação das instituições e “disciplinas”, analisa os micro-poderes e a “formação da subjetividade”, tendo analisado o classicismo e a antiguidade, tornado um mito no final do século XX. O Saber, o Poder e a Ética são seus temas. Considera Foucault que na senda dos processos jurídico-penais que nascem a psicologia, a sociologia, a criminologia e a avaliação escolar - a base da estabilização do sistema econômico. Que se fundamenta na prisão, no hospital, no manicômio, na escola. Considera que é pelo controle ininterrupto que a sociedade produz indivíduos obedientes, com o máximo de eficiência física e psíquica.

A partir da fundamental contribuição de Freud e sua psicanálise no começo do século XX existiram alternativas em paralelo como de Adler, Jung, Stekel, Karen Horney e outros. Ousar pensar, suspeitar da razão, fazer da palavra uma arma destrutiva e terna, levar a linguagem ao limite de suas possibilidades – foi essa a tarefa que Foucault se impôs. foi ele um “desconstrutivista filosófico”, crítico do positivismo quando ele demonstrava a ineficiência da ciência, da razão e do progresso, foram colocadas em questão, contestadas abertamente em 1968 em Paris e no mundo.

Como se constituiu e se organizou o saber? historiando a loucura a partir dos confinamentos da Idade Clássica, seus discursos, percebe que ao invés da psiquiatria ter descoberto a essência da loucura e a liberado, radicalizou os processos de dominação sobre o louco – que se iniciara muito antes de seu aparecimento como ciência, confluindo com Szasz que a registra como herdeira da Inquisição e sucessora da escravidão.


23
BREVE HISTÓRIA DA LUTA ANTIMANICOMIAL NO BRASIL

Para Carrano, a luta antimancomial no país foi
retomada em Santos, em 1987
O militante antimanicomial Austregésilo Carrano Bueno dá a pista para a retomada do Movimento no Brasil, que nos anos 70 existia com o nome de “Movimento Anti-Psiquiatria”. Para ele, foi em Santos, em 1987, que reacendeu o movimento. No seu manifesto lançado em 2003, “Exigências na reforma psiquiátrica”, Carrano denuncia os cemitérios clandestinos no Juquery e conta que “no ano de 1964, com a tomada do poder pela Ditadura Militar, todos os movimentos populares foram proibidos no Brasil. E a psiquiatria brasileira teve o terreno apropriado para suas incursões de pesquisas e experiências com as mais variadas drogas e eletroconvulsoterapia (eletrochoque) em cima de suas cobaias humanas, presas aos milhares em suas instituições psiquiátricas.”

Informa o militante antimanicomial que em 1964 havia 79 hospícios no Brasil, em 1985 eram 453. “O Governo Militar bancava facilitando financeiramente as construções dos Hospitais Psiquiátricos, desde que os donos se comprometessem em aceitar as pessoas enviadas por eles. A Ditadura Militar e a Psiquiatria Brasileira se vestiram como mão e luva, chegando ter uma média de 600.000 (seiscentas mil) internações ano.

Muitos brasileiros desapareceram, foram inutilizados, torturados e mortos dentro dos Hospícios Nacionais, na sua grande maioria hospitais particulares, pertencentes a grupos de psiquiatras. E desses grupelhos de empresários da loucura, associados e diretos participadores dos terrores da Ditadura Militar, ainda hoje muitos atuam e são os donos e associados das instituições Psiquiátricas Brasileiras”, relata Carrano. Segundo ele, estes foram “sócios-coniventes” com as crueldades do sistema, que usava os hospitais psiquiátricos como mais um dos locais de desovas dos indesejáveis pela Ditadura Militar - fossem eles “negros, prostitutas, cabeludos, militantes políticos, homossexuais, subversivos, todos que afrontavam a moral e os interesses dos ditadores”, diz. “Em 1998, continua, nós do MLA – Movimento de Luta Antimanicomial - denunciamos, através da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, 30.000 (trinta mil) covas clandestinas dentro da Colônia Psiquiátrica Juqueri, nesse Estado. Nos anos 70, o Juqueri teve o absurdo número de pacientes, na mesma época, de 18.000 (dezoito mil) internos. Em outras instituições do gênero já foi encontrado outro cemitério clandestino, em Santa Catarina. Nós acreditamos que haja mais cemitérios clandestinos em outras colônias e hospitais psiquiátricos”, analisa.

Carrano, que identifica “como parte da história” da luta antimanicomial os fatos de 1987 em Santos - uma reunião com um grupo de técnicos em Saúde Mental, revoltados com o chamado “tratamento psiquiátrico” dado aos pacientes do “chiqueirão Hospital Psiquiátrico Anchieta” -, no movimento em que estava presente o psiquiatra Domingos Stamato, em instituições que Carrano chama de “Casas de Extermínio”. E reivindica pagamento de valores como aos anistiados políticos para os torturados psiquiátricos. Ele saúda a Lei da Reforma Psiquiátrica e reivindica a instituição da Rede de Trabalho Substitutivo para os 60 mil internos do país.

Como escreve o psiquiatra Walmor Piccinini, o Brasil sofreu “uma certa defasagem” nos acontecimentos da Saúde Mental, inaugurando asilos quando seu questionamento era questionado em várias partes do mundo. Ao invés de utilizarmos antigos mosteiros ou lazaretos como na Europa, construímos prédios imponentes. Segundo o IBGE, em 1983 o Brasil tinha 427 hospitais psiquiátricos e 106.605 leitos, sendo 40.708 em SP. Nos últimos dois anos, apenas, morreram nos hospitais psiquiátricos brasileiros 3.222 pessoas, sendo 1.332 em São Paulo. São quase dez mil “moradores” (que permanecem de 6 meses a 50 anos) só em SP.

Mais de 75 mil pessoas internadas em 260 hospitais no país a um custo de R$ 500 milhões, que recebiam eletrochoques e eram vítimas de operações cerebrais– lobotomias, que secionavam o cérebro e idiotizavam para sempre - 80% deles privados e conveniados, realizando 400 mil internações anuais e tratando de apenas 0,52% da população.

Uma pequena parcela desse meio bilhão de reais eram aplicados – estes dados são de 2000 / 2001 - em unidades extra-hospitalares nas modernas políticas de Saúde Mental, que adotam práticas de reintegração social e participação comunitária, como as utilizadas no Anchieta. O nível de resolução é de 80%, escreve, quando associados métodos de reabilitação e reintegração com adesão espontânea do paciente. Em Santos, estes investimentos “inteligentes” fizeram reduzir drasticamente, ano a ano, as internações em hospitais especializados. Voltando atrás: mais de mil pessoas mortas por ano só em SP, nessa época de horrores, mortes sem nenhuma relação com a causa da internação.

Os manicômios eram depósitos de gente que, improdutiva economicamente, eram despejados lá pelas famílias e se tornavam fonte de renda para empresários da Saúde Mental – em condições subumanas de existência, sob fome e tortura. Era essa a realidade até anos atrás no país, que aqui não era diferente. Bastava uma explosão, uma bebedeira, uma crise – e o destino podia ser o Anchieta, onde se entrava mas não era certa a saída. Muitas foram as vidas que se perderam nesse redemoinho ceifador de vidas, típico de uma sociedade que separa e discrimina grupos sociais que expulsa de sua convivência, pois inaproveitáveis para o mercado de trabalho.

O passado: o primeiro hospício
Em 1923 era fundada a Liga Brasileira de Higiene Mental, que a partir de 1930 passa se chamar Assistência a Psicopatas do Distrito federal, sob a tutela do recém-formado Ministério da Educação e Saúde Pública. No Brasil, a movimentação pela criação do primeiro hospício havia tido início em 1830, quando a recém-criada Sociedade de Cirurgia e Medicina do Rio de Janeiro lança palavras de ordem que se tornaram um bordão bastante conhecido: “aos loucos o hospício”. Clama-se pela necessidade de construção de um local específico para o abrigo de loucos, especialmente dos loucos pobres que vagavam perigosamente pelas ruas, já que os loucos ricos já eram presos ou isolados em casa.

A cadeira de psiquiatria só seria criada em 1881 na faculdade carioca e a loucura era tratada como uma questão jurídico-criminal no sentido da proteção social. Então recolhidos à Santa Casa de Misericórdia, cujo provedor José Vicente Pereira teria grande participação na construção do primeiro hospício brasileiro, o Pedro II. No início, os pacientes ficavam em porões sujos e com fome, acorrentados, entregues a carcereiros e guardas. A substituição das irmãs de caridade por médicos se deu apenas no final do século XIX, quando os psiquiatras assumem a direção do hospício.

Em 1839, José Clemente Pereira salienta as deficiências do atendimento aos doentes mentais, isolados em células na Santa Casa de Misericórdia. Em seu relatório sobre a questão, em 26 de julho de 1840, prevê a construção de um “hospício de alienados”. Em 2 de novembro de 1840 é constituída a comissão que administrará sua construção e ainda antes de seu início os doentes mentais são transferidos para uma casa existente no local, sob a guarda do administrador de obras. “Deve haver um professor que vá duas vezes por semana ao local para prescrever e formular tratamentos”, discute-se em reunião em 11 de novembro de 1842. Durou mais de dez anos a construção do Pedro II.

De maneira geral, até meados de 1850 no Brasil os doentes mentais eram colocados nas prisões ou em celas especiais nas Santas Casas de Misericórdia. O primeiro hospício brasileiro foi o D. Pedro II, subordinado à Santa Casa de Misericórdia. Foi construído em 1851, inaugurado em 5 de dezembro de 1852, no Rio de Janeiro, em 18 de maio de 1898 sua colônia agrícola. Dirigido por religiosos, só depois de 30 anos pelo médico de clinica geral, Nuno Andrade, foi o exemplo pioneiro na América Latina do regime de liberdade para os psicopatas. E em 1896 Franco da Rocha constrói o Hospital Colônia do Juquery, em uma área de 170 hectares, próximo à Estação do mesmo nome, com um projeto do arquiteto Ramos de Azevedo.

No ano de 1934, quando várias legislações são implantadas, vem à luz o Decreto 24.559, que criou o Conselho de Proteção aos Psicopatas, aglutinando vários segmentos como juizes de órfãos e menores, chefes de policia e OAB e representantes de associações privadas de assistência social. Em 1941, seria criado o órgão que passaria a gerir toda a política do setor, o Serviço Nacional de Doentes Mentais, regulamentado apenas em 1938, em uma época em que era forte o conceito de eugenia e que o Brasil passava por um momento de afirmação da “raça forte” que o governo autoritário desenvolvia – característica que consolidada após 10 de agosto de 1937 com o “Estado Novo”. O “ideal ariano” de Hitler encontrava espaço neste momento em que o Brasil se aproxima do projeto nazi-fascista e o elogia nas palavras de Vargas. O ideal do “corpo são” se contrasta com o alienado, que precisa ser isolado, por ser “doente”. O médico Adauto Botelho vai, então, iniciar uma campanha pela construção de hospícios em todo o país, isolados e em forma de colônia, em que se pudesse colocar no trabalho o paciente de Saúde Mental, o que vinha ao encontro dos ideais do incipiente capitalismo brasileiro.

A assistência aos psicopatas em São Paulo é uma das mais antigas do Brasil, lembra o Dr. Walmor Piccinini em seu artigo sobre a História da Psiquiatria no Brasil. Diz ele que segundo o professor Pacheco e Silva (1945), o Artigo 6 da Lei número 12 de 18 de setembro de 1848 autorizava o Governo a dar providências para a elaboração de plantas e orçamento de um hospício onde pudessem ser abrigados todos os doentes do Estado. Era, segundo Paulo Fraletti, citado por Ribas, JC – 1974), o Asilo Provisório de Alienados da capital de São Paulo, inaugurado em 14 de dezembro de 1852, 9 dias depois do D. Pedro II. Em 1923, quando Gustavo Riedel, psiquiatra, funda no Rio de Janeiro a Liga Brasileira de Saúde Mental, na meta de oferecer assistência aos doentes, seus sucessores, a partir de 1926, visavam também a eugenia - o estudo das causas e condições que podem melhorar a raça e as gerações dos indivíduos.

A construção de grandes manicômios nos séculos XVIII e XIX no Brasil foi obra do Estado, seguindo os preceitos de uma visão civilizatória humanista e higienista, que organizou as regras oficiais e os padrões da política de Saúde Mental no país, como escreve Isaias Pessotti. De 1938, quando um Decreto federal normatiza o atendimento à Saúde Mental, regulamentando o Decreto 24.559 de 1934, a política do setor é centrada no isolamento, na segregação e que operacionaliza legalmente o seqüestro de indivíduos, a cassação de seus direitos civis e garante sua tutela pelo Estado, que vai vigorar até a recente lei do deputado Paulo Delgado.

Dos anos 30 em diante, a preocupação eugênica passa a ser fundamental, refletindo um programa racista e moralista, que encarava como avarias cerebrais as doenças mentais. A partir daí o processo de tratamento não evoluiu nos quase 500 hospitais psiquiátricos brasileiros, com mais de cem mil leitos, um quarto dos quais em São Paulo. Era esse o quadro até 1989 - quando o processo desencadeado a partir da intervenção municipal no Anchieta, acompanhado de ações similares, inclusive com a luta antimanicomial no Congresso Nacional, fez a superação democrática da questão.

No princípio da luta antimanicomial, Nise da Silveira –“ O anjo duro”
Interpretado por Berta Zemel, o grupo Luiz Valcazaras fez exibir no 36º Festival Internacional de Londrina de 2003 o filme com esse nome, que interpreta a idéia de Nise da Silveira (1905-1999), quem antecipou as teses da moderna psiquiatria, apresentado por três anos em festivais em Curitiba, Porto Alegre, Recife e São Paulo. “Anjo Duro” faz uma homenagem a Rubens Correa, ator que trabalhou com temas da psiquiatria e manicômios, em textos de Antonin Artaud. Esta nova visão da psiquiatria, do que se chamava loucura e passou a constar, como chamava ela, como um dos estados do ser - estimulando a afetividade nos esquizofrênicos - , foi introduzida aqui por Nise da Silveira, nos anos 40. E se expandiria na Itália, com Franco Basaglia em 1971, na prática a que se antecederia a psiquiatra brasileira que se opôs ao eletrochoque e à lobotomia – levando-a a criar, em 1946, o Serviço de Terapia Ocupacional do Centro Psiquiátrico D. Pedro II no bairro carioca de Engenho de Dentro, que hoje leva seu nome.

Ela havia sido levada para o setor em 1944 e o transformou. Todo esse aprendizado e evolução do tratamento da Saúde Mental, em Nise, tem uma origem: os tratados de H. Prinzhorn e Karl Jaspers que, em 1922, inspiraram uma estudante da Faculdade de Medicina da Bahia, a única mulher naquela turma de 1926, ao lado de 156 colegas. Filósofo e psiquiatra, como Prinzhorn, Jaspers é autor do livro “Psicopatologia geral”, ligado à fenomenologia (uma conversão de linhas da filosofia, baseada no existencialismo) de Husserl - um filósofo dos primórdios do existencialismo, como Heidegger. Saída de Maceió, Nise da Silveira teve a ousadia de sair para estudar em Salvador em uma época em que às mulheres exigia-se apenas bons casamentos. Era Nise da Silveira, inovadora intrépida no campo do tratamento da esquizofrenia.

A tentativa de Karl Jaspers era a de aplicar a femenologia de Husserl - captar a vivência do ouro diretamente no comportamento em que está incluída a significação do ato, não procurando “atrás”, mas no próprio fenômeno - a interpretação dos distúrbios mentais, valorizando a forma de consciência pessoal do vivido, a forma peculiar individual de conscientizar ou viver a experiência.

Nise era, como Telma, uma desafiadora dos valores estabelecidos, para revolucionar os conceitos e métodos da psiquiatria no Brasil e no mundo, em contato, acompanhando e sugerindo experiências ao próprio Jung, como em 1957. Graças a estes caracteres, os até então desprezados e oprimidos seres com transtornos mentais passaram a vislumbrar chances de vida. Não mais humilhação, asilos, internação, operações cerebrais, choques, surras: muitos iriam ser artistas, passariam a ter uma vida mais serena e feliz, como seres humanos portadores de direitos. Enquanto Freud ingressara na análise da mente pela via da sexualidade, Jung adotara a espiritualidade como marco de análise. Nise da Silveira, essa mulher, aprendeu na prática – criou – ao que chamava “a emoção de lidar”, a terapia ocupacional que elevou a método científico, então desprezado.

Criadora de um novo léxico, seu horror ao sangue a levou à psiquiatria; seu horror ao sofrimento à invenção das soluções humanitárias. A terapia ocupacional de então era apenas “especializada” em fazer os doentes “limparem o prédio”. Para ela, atitudes como o coma insulínico ou eletrochoques - ou mesmo as lobotomias - apagavam as funções psíquicas superiores, secionando, de modo irreversível, a ligação nervosa entre os lobos frontais e o cérebro. Com as lobotomias, concluiu Nise, se transformava o indivíduo potencialmente recuperável em um idiota definitivo. Ela provou isso com desenhos antes e depois das operações cerebrais aplicadas aos internos.

Sob sua orientação, os funcionários do Centro Psiquiátrico começaram a estimular os internos a terem contato com várias atividades artísticas, incitando a criatividade e oferecendo novas ferramentas ao paciente para expressar e refletir seu estado psíquico. A esquizofrenia tem como característica a dissociação e a desordem da linguagem e o contato com a arte o possibilita de representar seu mundo interno, suas angústias e seu processo de cura, “...o que não ocorre no mundo verbal e sim no mundo arcaico dos pensamentos, emoções e impulsos fora das elaborações da razão e da palavra”, como dizia Nise.

Nise, antes de Basaglia
Antes mesmo de Franco Basaglia revolucionar a psiquiatria com as políticas de desinternação que concretizou em 1971 em Trieste, na Itália, Nise já combatia o que chamava de “regime carcerário” dos hospitais, nos anos 40. Ela, então, criou as atividades do estímulo pela arte, buscando restaurar o elo rompido na mente dos pacientes através de técnicas livres de desenho, pintura e modelagem. Nise tinha conhecido e se aprofundado nas personalidades esquizofrênicas, nos pacientes que chamava de clientes ou amigos, nos livros de Machado de Assis ou na Casa de Detenção em que esteve pela militância política de esquerda. Suas experiências estão descritas em “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos. A riqueza do mundo dos psicóticos e sua sobrevivência digna, mesmo após muitos anos de doença, foi observada por Nise – transmitidos na linguagem da arte, impedidas que estavam estas pessoas de estabelecer relações pela linguagem ou raciocínio.

O Museu do Inconsciente
Em maio de 1952, Nise fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, com as obras criadas por seus pacientes, revelando universos interiores que vislumbravam processos de cura e visão dos episódios que levaram à crise. Logo o Museu se transformaria em um centro de estudos de caráter mundial, arquivando desenhos individualmente e permitindo a avaliação de processos psicóticos, atualmente com mais de 300 mil desenhos, telas e esculturas em que estavam presentes elementos que permitiam a introdução na teoria junguiana. Jung trabalhou bastante com esquizofrênicos e Freud com neuróticos, pois considerou inadequado a utilização da psicanálise com os psicóticos. Jung foi pesquisador do orientalismo e das mandalas usadas na Yoga indiano e no Budismo tibetano, desenhos de esquemas psicográficos representativos da união (yoga, palavra que traduz união) dos conteúdos da mente, a ordem no caos psíquico.

Yoga e Budismo são psicologias do auto-conhecimento, em que os deuses (dovas) são estados da mente e que tudo é transitório, dialético. Mandala significa circulo em sânscrito, uma forma que, segundo Jung, exprime a defesa instintiva da psique contra a esquizofrenia. Construída a partir de um ponto central, para onde todos os outros elementos convergem, ela funciona como uma tentativa de reorganizar o caos psicótico, ou seja, a confusão mental. No budismo, os “invasores“ são “açuras” e o melhor estado são os “humanos”. “Os budistas são socialistas”, disse o psicólogo Rivaldo Leão, “foram os primeiros a contestar o sistema de castas na Índia, defendendo que todos são iguais”. Segundo Bleuer, um dos principais expoentes da psiquiatria clássica (1857-1939), a principal característica da esquizofrenia é a cisão das funções psíquicas superiores, desagregando os elementos fundamentais da personalidade. Elementos partidos foram notados por Nise, ao lado de outras formas harmônicas, penetrando no estudo das mandalas dos antigos textos orientais.

Nise, antecipando o NAPS santista
Os desenhos avaliados por Jung a pedido de Nise foram de pronto reconhecidos em sua origem esquizofrênica, que tem como característica da dissociação psíquica a desordem de linguagem, espacial e temporal. Leitora de toda a obra do psiquiatra, em 1957 ela ganhou uma bolsa no Instituto Carl Gustav Jung na Suíça, em Zurique, participando nesse ano do II Congresso Internacional de Psiquiatria – onde expôs obras do Museu do Inconsciente, valorizada por ele. Segundo Jung, o inconsciente fala a linguagem dos mitos. Em 1956, Nise funda a Casa das Palmeiras, um externato de portas abertas para egressos de tratamentos em hospitais psiquiátricos. Esse instituto ainda está em funcionamento em Botafogo, no Rio de Janeiro, intermediário entre a internação e a liberdade, exemplo dos NAPS santistas. Em 1969, fundou o primeiro núcleo de estudo e difusão da obra do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung no Brasil, que se reunia informalmente desde 1954. Com base nestas experiências ela escreveu o livro “Jung, vida e obra”, em que sintetiza a teoria do mestre adotada por ela como base teórica de seu trabalho.

Falecida em 30 de outubro de 1999, aos 94 anos, Nise deixou uma memória de trabalho pela humanização da Saúde Mental, anterior mesmo a Franco Basaglia que, na Itália, em 1961, derrubou as paredes do manicômio para instalar uma nova face humana desse tratamento. A discípula de Jung, pai da psicologia analítica, usava animais no tratamento, a quem chamava de “co-terapeutas”: com eles, seres isolados em si mesmos estabeleciam ligações quase diálogos entre a fidelidade canina e a palavra unilateral.

A linguagem do afeto – um ponto de referência estável -, iniciado por Nise no tratamento de pessoas com problemas mentais, hoje é utilizado na França, Estados Unidos e Suíça. Nise foi uma precursora da psiquiatria alternativa e que antecipou Basaglia e Rotteli. E que fez naquela cidade o Museu do Inconsciente – ao qual se seguiu o Museu Osório César. Esta psiquiatra inovadora atribuiu suas raízes ao trabalho de Osório César na arte dos internos em um hospital psiquiátrico. Com oito mil obras, o mesmo número do Museu de Arte Contemporânea, na USP, o Museu funciona na casa projetada por Ramos de Azevedo, onde viveu Franco da Rocha, o fundador do Juquery.

Nise da Silveira é a autora do livro “mundo das imagens”, lançado em 1992, que escreve “...o mundo interno do psicótico encerra insuspeitadas riquezas e conserva, mesmo depois de longos anos de doença, contrariando conceitos estabelecidos. E dentre as diversas atividades praticadas na nossa terapêutica ocupacional, aquelas que permitiam menos difÍcil acesso ao enigmáticos fenômenos internos eram desenho, pintura, modelagem, feitos livremente...”

Bispo do Rosário, um artista no Juquery
No histórico da Saúde Mental, na revelação desses processos inovadores, confirmando-os, a presença de Bira é vital. Sua memória exemplifica a forma de tratamento aplicada sobre os enfermos mentais, potenciais portadores de uma nova linguagem, que serve à cura e à convivência pacífica no meio em que nasceram. Um caso como o de Bira, o artista plástico e escritor Ubirajara Ferreira Braga, é significativo. Ex-interno do Hospital Psiquiátrico do Juquery, começou a pintar aos 58 anos e tem quase 2.700 obras, 30% do acervo do Museu Osório César - que reúne obras dos internos em SP.

Falecido no fim do ano de 2000, autoridades no setor, como a professora da pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes da USP, Maria Heloisa Toledo Ferraz – que escreveu um livro sobre a trajetória de Bira – não lhe poupam méritos, visíveis, como no pintor Van Gogh. Pintor incessante e fanático, período integral no ateliê do hospital de segunda a sexta, protestava porque não podia pintar nos fins de semana. Seu cartão, que mandara imprimir, indicava sua qualificação: artista plástico, com endereço do Juquery. Era a arte da loucura, traços de esquizofrenia, como é titulada a matéria que o reporta na Ilustrada da Folha de São Paulo do dia 10 de janeiro de 2001, do jornalista Fábio Cypriano. Tema de documentário patrocinado pelo Instituto Cultural do Banco Itaú, dirigido por Christian Cancino e Bernardo de Castro (“A soltura do louco”),

Bira tinha ainda intensa produção literária – pesquisas - e pretendia lançar um livro. Não foi recebido pela irmã que morava na Baixada Santista, procurada pela equipe que lançou o filme. Nos cem anos do instituto, em 1998, no Sesc Pompéia, foi o artista com maior número de obras em exposição: das 85 telas expostas, nove eram suas. Como Arthur Bispo do Rosário, interno da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, foi um grande produto da safra iniciada por Nise da Silveira. Desde 1923 que Osório César, o psiquiatra que escreveu “A expressão artística dos alienados” em 1929 - enviado a Freud e publicado por este na revista Imago –, se dedicou a estudar a arte dos internos. “Não gosto que meus trabalhos fiquem nas gavetas dos acervos dos museus apenas simbolicamente. Arte é para todas as camadas da população. “Arte é vida e ela não deve restringir-se só aos artistas e privilegiados”, escreveu certa vez Ubirajara, em carta a Heloisa. Com 2.615 obras, outras que provavelmente vendeu, o que era proibido no Juquery.

Franco da Rocha
Fundador do Hospital Colônia Juquery em 1896, escritor do primeiro livro sobre psiquiatria no Brasil, parte de sua extensa produção), discípulo da ciência psiquiátrica como uma disciplina moral (como se tornou desde início do século XIX), Francisco Franco da Rocha (1864-1933), nascido em um 23 de agosto, era paulista de Amparo formado no Rio de Janeiro - e foi um “moralista” em essência.

Ele morou e criou seus 6 filhos dentro do Juquery que fundou e foi o primeiro “medico residente” deste que foi o maior hospital psiquiátrico da América Latina e símbolo da” modernidade” no tratamento dos enfermos mentais. Sim, quando esta era a sofisticação de métodos de tortura como o banho com água fervendo, a inoculação de vírus da malaria (a “maloterapia”) e a insulinoterapia, a lobotomia (operação cerebral) e o eletrochoque. O Juquery já chegou a ter até 20 mil pacientes. Segundo a historiadora Maria Clementina Pereira da Cunha, autora da tese “Juquery, espelho do mundo”, defendida na Faculdade de filosofia, letras e Ciências Humanas da USP em 1986, o hospital é “um depósito de loucos pobres”.

“Na verdade, diz, o manicômio é uma instituição criada para marginalizar pessoas incapazes de se adaptarem aos mecanismos sociais vigentes”. Com uma ideologia, profundamente arraigada com a manutenção do “status quo”, Franco da Rocha dizia que havia indivíduos que não são loucos nem normais, são “degenerados” que, explica, “são estados transitórios entre o são e o louco”. “Juntam-se a estes os desclassificados”, diz, “tipos que não cabem nem na sociedade e nem no hospício”.

Rocha chama a estes “desclassificados” os “agitadores, candidatos constantes ao hospício”. E diz que “os revolucionários são companheiros dos paranóicos”, revelando que o “sonho de grandeza do criminoso mostra-se claramente nos anarquistas e nos magnaticidas”. Como observa Alfredo Naffah Neto, “uma psiquiatria desta índole está, sem dúvida, mais perto da política do que da medicina ou da psicologia e da política reacionária, que funciona como um leão de chácara das classes e culturas dominantes para manutenção do ‘status-quo’”. É como Rush, na mesma linha crítica aos que se rebelam, mas de apoio aos seus colegas que fizeram a Independência americana, na rebeldia ao domínio inglês. Façam o que eu digo...

A “liberdade” dos defensores do manicômio
Dizia da Rocha que ”a liberdade, quando se trata de doidos, não pode deixar de ser muito relativa. A preocupação de evitar o aspecto de prisão, de dar ao asilo a aparência de uma habitação comum tem sido um pouco exagerada por alguns alienistas. O caráter de prisão é, no entanto, inevitável: quando não estiver nos muros e janelas gradeados, estará no regimen (sic), no regulamento um tanto severo, indispensável para um grande número de doentes...”. E receitando “seções diversas” no hospício para que se “gradue” a liberdade, lembra que “o excesso de zelo pela liberdade dos loucos pode facilmente degenerar em futilidade...”, como diz no livro “Hospício e Colônias do Juquery”. O Maia de Santos e do Anchieta não era diferente e mesmo após a intervenção de 1989 usou este argumento em artigo jornalístico.

O Brasil da contramão da história
As políticas da ditadura e a reação antimanicomial nos anos 70
A ampliação dos hospitais e internamentos após o Golpe Militar de 1964 não é senão mais do que uma coincidência, mas uma identificação com a conjuntura histórica que o país atravessava, de uma tabela beneficiando os empresários do setor da saúde, que teve um aumento de 599,9% na importação de equipamentos de 1961 a 1971. E da ampliação dos hospitais psiquiátricos – 110 em 1965; 351 em 1978 - na contra-mão da tendência mundial de desospitalização, com o aumento de leitos e multiplicação da rede privada contratada. Era o reforço do mercado da loucura.

M.P. Ferraz conta em seu artigo na revista “Divulgação para a Saúde Mental no Brasil”, em 1991, com o Brasil vivendo a unificação dos institutos e criação do INPS, cresceram os investimentos em hospitais psiquiátricos - apesar da queda dos investimentos na saúde de 3,42% em 1963 para 1,07% em 1973. E o movimento social se movimenta em torno da legislação do setor, promovendo discussões e realizando experiências como a de Santos.

Alguns movimentos governamentais como o Prev-Saúde, Conasp e SUDS promoveram mudanças tímidas, sem dar conta de especialidades de Saúde Mental, tais como o divórcio da população das opinião dos técnicos e a proximidade dos empresários do setor com o Governo. As dificuldades econômicas transformam o hospício em albergue.

Mas do movimento pela humanização surgido nos anos 70 como reação às práticas da Ditadura Militar, que torturava indiscriminadamente e não apenas nos manicômios, na repulsa a um “tratamento” feito à base de tortura que se expandia, se agregaram médicos psiquiatras, psicólogos e outros profissionais, intelectuais e estudantes, formando o movimento de que faziam parte os trabalhadores de Saúde Mental – obrigados a conviver com a barbárie existente e sujeitos aos seus perigos: nele, fabricavam-se loucos, seus companheiros obrigatórios de trabalho – que se tornavam equipamentos perigosos.

Com as lições da Europa, de Basaglia a Foucault, entre outros, o Movimento Antimanicomial expandiu sua identidade sob o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. E seguiu promovendo seus encontros: em 1990, a proposta consensual era enfatizar o atendimento extra-hospitalar nos ambulatórios, nos centros de saúde e na rede de atendimento primária, defendendo-se a internação em períodos curtos, excepcionalmente. No momento seguinte, crescem as forças pela desospitalização e inversão das práticas de atendimento hospitalar. O Ministério da Saúde passa a recusar os pedidos de aumento de leitos nos manicômios.

Os Governos estaduais intensificam as inspeções sanitárias, as investigações de maus tratos e ameaças de fechamento de clínicas por condições precárias, superlotação e existência de celas-fortes. Em 1990, chega a Declaração de Caracas, produzida pela Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência psiquiátrica no Continente, promovida pela Organização Pan-Americana, que conclama os países signatários a superar o hospital psiquiátrico como serviço central para o tratamento de pessoas com transtorno ou doença mental, propondo uma rede diversificada e ampliada de assistência sócio-sanitária, acessível e principalmente eficiente – entre outros pontos. Há um vai e vem de ações contra e a favor dos manicômios e de seus donos.

Em 1992, o Ministério da Saúde lança a campanha “Doença mental não é crime”, com o propósito de conscientizar a população contra os preconceitos em relação aos doentes mentais. Há uma meta em acabar com as internações e tratar os pacientes em ambulatórios. Donos de clínicas privadas e hospitais conveniados se rebelam. As denúncias crescem. Representantes da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Comissão de Direitos Humanos da OAB, médicos, psiquiatras, diretores e interventores da área de Saúde Mental das secretarias estaduais de saúde acusam as clínicas de produzirem um estado assustador, com escassez de pessoal técnico por enfermaria, falta de higiene, técnicas violentas, excesso de medicamentos e prazos acima da média nas internações.

O Ministério da Saúde faz concessões aos movimentos organizados, como a Portaria 224 / 92, que submeteu os hospitais a normas de atendimento psiquiátrico mais respeitoso aos pacientes e a Norma de Orientação Básica de 1996, que prevê a municipalização do sistema psiquiátrico e o repasse de recursos federais aos municípios. Esta só começaria a efetivamente funcionar em abril de 1999, quando o Ministério efetivamente ofereceu verbas federais aos municípios que assumissem os serviços psiquiátricos até então sob o comando da União e dos estados. Nascem os CAPS e os NAPS, os hospitais-dia, que fazem a mediação entre o ambulatório e a internação, oferecendo atendimento clínico e psicoterapêutico, lares abrigados e oficinas terapêuticas, proibindo a reclusão nas celas-fortes.

Os adeptos da desospitalização defendem o deslocamento das verbas para a rede pública, diminuindo-os a médio prazo e não se movimentando o processo em função do lucro. Os donos de clínicas defendem-se dizendo que estes cortes é que causam as carências apontadas para o tratamento digno, menos pessoal e alimentação. Era o discurso que o doente mental “não podia ficar desamparado”, contra a pregação pelo fim dos manicômios. O jogo era “fechado”, eles, os donos do negócio da loucura, não apareciam, mas faziam lobies junto aos deputados. Em maio de 1991, a Federação Brasileira de Hospitais apresentou um abaixo-assinado ao Congresso Nacional exigindo o adiamento por várias sessões do projeto de Lei do deputado Paulo Delgado. Que aprovado no Congresso, foi rejeitado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado em 1995, fazendo-o voltar à Câmara para emendas e substitutivos.

o lobie dos manicômios, que dão dinheiro
Em março de 1992, uma manifestação de duzentos familiares movimenta a Câmara Municipal do Rio de Janeiro contra a redução de leitos nos hospitais psiquiátricos. O lobie se movimenta. O Ministério da Saúde envia ao Congresso um Parecer Técnico favorável ao projeto de Lei, que diz que ele é “conciso, atemporal, aplicável e, portanto, oportuno”, na gestão do Ministro Adib Jatene. Apesar da convergência entre o Movimento Antimanicomial, grupos da sociedade civil, entidades na área médico-psiquiátrica e autoridades do setor estatal, não houve a aprovação no Senado.

Denúncias dos trabalhadores da Saúde Mental ameaçam a intervenção no Hospital Dr. Eiras, em Pacambi. Em 1992, o Fórum Gaúcho de Saúde Mental pressiona e faz aprovar a Lei estadual 9.716. E em 1993 é debatido o Projeto de Lei 336 / 92, do deputado estadual do PT Roberto Gouvêa. Que, entre outros pontos, impede a utilização do manicômio para internamento de alcoólatras, destacando ser esta a primeira lei que trata da questão, que estes devem ficar em clínicas médicas e hospitais gerais. Existem questões a suprir, não basta fechar o manicômio. O Movimento discute a relação de loucura e pobreza: manicômio não é abrigo e pobre não pode ser punido com internação perpétua. A sociedade tem que encontrar soluções para a miséria e para a falta de abrigos para os cidadãos que não se restrinja à hospitalização.

Em 1993, em Salvador, ocorre o I Encontro do Movimento Antimanicomial, sob o tema “O Movimento Antimanicomial como movimento social” e o II em 1995, em Belo Horizonte, sob o tema “Cidadania e Exclusão”. Nesse ano, diretores e assistentes sociais da clínica conveniada Dr. Eiras e do Hospital Psiquiátrico do Juquery dizem que os pacientes não tem para onde ir, mesmo após ter recebido alta. Em 1996 acontece a Carta de Vitória, produzida pelo Encontro Nacional de Justiça e Doença mental, em novembro, propondo entre outros pontos a alta progressiva e as saídas terapêuticas, o hospital-noite e o trabalho externo, a ampliação de ações terapêuticas em novos espaço de ação psico-social. Em 1997 o III Encontro do Movimento Antimanicomial aconteceu em Porto Alegre e o tema foi “Por uma sociedade sem exclusões”, enfrentando um fato que é a dura oposição dos donos de hospitais e clinicas de Saúde Mental.

A integração dos doentes mentais em ambientes sociais (escolas e locais de trabalho) e a autonomia para decidir sobre a própria internação são temas polêmicos. No relatório desse III Encontro, uma comissão apresentou meios de superar as dificuldades de moradia e manutenção dos pacientes que deixaram os hospitais psiquiátricos, o “Lar Abrigado” e a ”Pensão Protegida”. A solução das “pensões protegidas” já tinha sido adotada na Espanha e na Inglaterra, com ajuda às famílias para que possam receber seus membros sem interná-los. Também elaborou-se uma política de subsídios para construção e aquisição da casa própria pelos usuários e oferta de remédios básicos pelo Ministério da Saúde.

A desospitalização não pode significar o abandono pelo estado dos cuidados médicos-psiquiátricos, retornando aos padrões de assistência individualista baseados na família. Era necessário chegar a um acordo sobre isso com os familiares, deixando claro que apenas a assistência estatal não garante a melhoria do atendimento nem da qualidade dos serviços. A questão não é apenas econômica ou não alcançará sustentação moral. A estrutura tem que ser melhor do que o manicômio impositor de sofrimento, restabelecendo-se os laços de solidariedade familiar, como defendeu-se em Santos. A maioria dos casos que chegam aos sanatórios não é de internação, mas de desajuste, pedindo apenas atendimento ambulatorial. A atenção psicológica integrada às demais modalidades clínicas configura-se como uma política de assistência considerada mais apropriada e eficiente para tais casos, notadamente para as populações sem recursos para recorrer aos divãs dos psicólogos particulares.

A Lei estadual da Saúde Mental
Em 2000 é aprovada a legislação proposta pelo PL 336, do deputado Roberto Gouvêa (PT), que trata especificamente do tratamento que deve ser dado aos doentes internados, extinguindo os códigos de identificação, passando a serem identificados pelo nome – e que eles tivessem o direito de recusar o tratamento. O deputado Gouvêa é autor da Lei Complementar que criou o Código de Saúde do Estado de São Paulo, o primeiro código estadual do país, em que consta uma norma específica para a Saúde Mental que a estipula como último recurso terapêutico. Novas soluções viriam com a aprovação final da lei do deputado Paulo Delgado e a expansão da consciência antimanicomial, reproduzindo os exemplos de Trieste e de Santos pelo Brasil, que encontra dificuldades para aprovação no Congresso nacional devido aos lobies, enquanto que nos Estados as leis vão sendo aprovadas. A causa segue seu caminho, que encontraria seu ápice em Santos.


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A CAMINHADA DA LUTA ANTIMANICOMIAL EM SANTOS

1973: Cidade Dutra
A cidade que foi, para o militante antimanicomial Austregésilo Carrano, a da retomada da luta no país, em 1987, tem toda uma trajetória, que se inicia antes, em 1978 com as experiências de 1973. Retomando os fatos de quase quatro décadas antes da ação pioneira do movimento antimanicomial, realizada em Santos em 1989, em 4 de outubro de 1960 o vereador Newton de Lima Azevedo pediu, na Câmara Municipal de Santos, a instalação de um hospital psiquiátrico. A iniciativa teve o parecer contrário de todos os consultados, pois a cidade contava com o ambulatório de Saúde Mental, o INPS da Gonçalves Dias, destinado a este tipo de atendimento, e a Casa de Saúde Anchieta.

Esta foi a meta perseguida por algum tempo. Para que Santos fosse o berço da retomada da luta antimanicomial, a inauguração do Centro Comunitário de Saúde Mental em Cidade Dutra, São Paulo, perto do Jardim Ângela, Parelheiros - a primeira experiência brasileira de tratamento fora do manicômio com terapias alternativas – foi vital. Lá se faziam estágios de faculdades e atendimentos, em um amplo trabalho de apoio à comunidade carente com apoio inclusive da Igreja católica engajada. O movimento era reprimido pela polícia por seus movimentos sociais, que englobava, pois também organizava para a luta por creches e melhorias. Foi lá onde esteve o psiquiatra Oswaldo di Loretto, personalidade da área vindo do Rio de Janeiro. “Sua história daria outro livro”, comenta o psiquiatra Domingos Stamato, “pois ele atuou na primeira grande experiência em Cidade Dutra em 1973 e em Diadema, com o psiquiatra Humberto Mendonça, além do psiquiatra alemão Wili Konzeller’, que visitou o núcleo em 26 de maio de 1973.

A lembrança deste marco da luta antimanicomial, que ainda não tinha esse nome, foi do coordenador nacional de Saúde Mental Pedro Delgado e do psiquiatra Domingos Stamato, participantes - e significou uma etapa importante na implantação da moderna psiquiatria no país que irradiaria esse exemplo para Santos. Foi baseado em um projeto apresentado em outubro de 1972 à Secretaria de Saúde do Estado, com o objetivo de pesquisar operativamente um modelo de assistência psiquiátrica preventiva e comunitária, em convênio com a USEC - pretendendo romper com o modelo centrado no internamento, executando um trabalho de prevenção junto às escolas e descobrindo, assim, o fator gerador do desequilíbro mental. Em contato com os movimentos da Rede Alternativa de Psiquiatria americana e européia, o movimento veio para a Baixada Santista, sendo realizado aqui o I Seminário de Saúde Mental da Baixada Santista em 1980.

“Nesse ano – conta Pedro Delgado - se reunia o ‘Tribunal Basaglia’, no Centro Cultural Rebouças, na Capital paulista, para ‘julgar’ o manicômio”. Os militantes de Cidade Dutra, como Veridiana Arbe, terapeuta ocupacional que atuou no movimento, “foram levados na época para Brasília, para ajudar a montar o Programa de Saúde Mental do Governo federal”, lembra Stamato. Em 1974, seria formada uma Comissão Especial de Vereadores em Santos com o fim de viabilizar esta iniciativa - formada pelos vereadores Rubens Lara, Emilio Justo e Roberto Mehana Khamis. Cerca de 250 doentes mentais surgiram na região mensalmente e, face a isso, foram feitos vários apelos por esta CEV a diversos órgãos governamentais.

1978, o congresso de Camboriú. A ARTSAM
Deste encontro saíram grupos de ativistas que criaram o ARTSAM - Associação Regional dos Trabalhadores em Saúde Mental -, que esteve no Congresso de Saúde Mental -, reunindo os profissionais da área, inspirada também no Congresso de Saúde Mental realizado em Camboriú, Santa Catarina, em 1978. Antecedeu a este o encontro de Bauru neste ano, à época em que o médico David Capistrano – que seria prefeito de Santos de 1993 a 1996 -, era secretário de Saúde daquela cidade

A condenação ao uso do eletrochoque, o uso excessivo de drogas e ao confinamento penitenciário, seguindo os ensinamentos dos precursores da psiquiatria moderna como Franco Basaglia, Ronald Laing, David Cooper e outros, era a nova tendência que se implantava. Foram feitos contatos com a rede de alternativas à psiquiatria, em Bruxelas, que a esta altura realiza congressos em Trieste, Paris, São Francisco e em Cuernavaca, no México.

Em 1978, em Santos, uma reunião de técnicos da Saúde Mental voltou suas baterias para denunciar o Anchieta e os tratamentos impostos aos pacientes, a precariedade de suas condições e o excesso de medicamentos. Desse grupo que se reunia na rua Paraíba, no bairro hoje denominado Pompéia – em uma casa em que funcionava o Conservatório Lavingnac. Naquela rua também se sedava o Conselho Regional de Psicologia, Delegacia Regional e Associação Regional dos Psicólogos, como lembrou Celso Manço.
Telma presente
Lá se reuniam militantes sociais, psiquiatras e psicólogos: Telma de Souza, que seria vereadora, deputada estadual e depois prefeita da cidade, o psiquiatra Catulo Magalhães, a psicóloga Maria Lúcia Moreira, o psicólogo Luiz Antonio Cancello, Antonio Carlos Simonian, Caetano Munhoz – ainda estudante de psicologia – e, é claro, Domingos Stamato e Maria Isabel Calil – que se conheceram e se identificaram nessa luta. A psicóloga Mara Fernanda Chiari também foi integrante desse movimento, lembra o psicólogo Rivaldo Leão, que na época era estudante e esteve como estagiário visitando o Anchieta, já na época da intervenção.

Em 19 de abril de 1980, o filme “Em nome da razão” é exibido no Cine Caiçara, em promoção do Centro de Estudos de Ciências do Comportamento de Santos – CECCS, órgão representativo dos alunos do curso de Psicologia da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da mantenedora São Leopoldo, a futura Unisantos.

O filme denunciava a miséria, a promiscuidade, a insanidade e a violência do modelo de tratamento existente no Brasil, com histórias de dor, sofrimento, opressão e incompreensão. “A maioria não sabe por que foi parar no manicômio”, escreve a reportagem sobre o evento. E os familiares só recebiam avisos de falecimento de seus parentes, nesta película feita no Hospício de Barbacena. Amontoados, sem nenhuma terapeuta ocupacional, os pacientes chegam a medicarem-se uns aos outros, diante do total desinteresse dos funcionários.

O então estudante de psicologia Caetano Munhoz se lembra dessas reuniões da ARTSAM, entre 1979 e 1980, com os militantes antimanicomiais encorajados pela abertura política do país que se verificava para denunciar os manicômios do país em geral e o Anchieta em particular.

1980, em nome da razão. O I Seminário.
Esse filme reuniu as vontades para realizar, no início de junho, o I Seminário de Saúde Mental da Baixada Santista, que deu a partida para a criação da ARTSAM – a Associação Regional dos Trabalhadores em Saúde Mental. com a proposta de mudar a velha prática que aplicava doses cavalares de medicamentos e choques elétricos no tratamento de doentes mentais, como escreve a reportagem de A Tribuna do jornalista Lane Valiengo. O psiquiatra mineiro Mário Sérgio Ribeiro, assim como o psiquiatra Humberto Mendonça, que atuava em Diadema e foi assassinado, denunciaram o assassinato de pacientes, o “chá da meia-noite” aplicado nos hospitais.

Humberto sempre esteve presente na mobilização santista, que faria com Telma a contestação à existência do “chiqueirinho” do Segundo Distrito Policial, onde eram despejados os “13”, como figuram na gíria policial os loucos. Era o espaço para “outros” na relação dos Boletins de Ocorrência: “13”. A criação do hospital psiquiátrico ou apenas ambulatórios de atendimento foi uma questão que teve apoio de lado a lado no encontro, com correntes contrárias aos internamentos nos moldes em que ocorriam.

Existiam 11 ambulatórios no Estado, nove na capital, um em Presidente Prudente e outro em Santos, que atenderam quase 25 mil pessoas entre 1978 e 1979, quase 150 mil consultas. A psiquiatra Edith Seligman Silva defende a criação de um hospital psiquiátrico na região com três unidades de 80 leitos cada, utilizando a estrutura existente. À época, no Ambulatório da Areia Branca, o único da cidade, foram atendidos, de 1978 a 1979, 2.069 pacientes - com 5.673 retornos, em um total de 7.742 consultas. Eram dados da Coordenadoria de Saúde Mental do Estado, foram apresentados pelo deputado estadual Rubens Lara, que lutava pela criação do hospital psiquiátrico regional. O ex-vereador santista considera que a causa dos 80 mil internados por problemas mentais no país são “claras e óbvias, a miséria da classe operária e o capitalismo selvagem implantado no Brasil a partir de 1964, o cerceamento ao direito de pesquisa e a falta de base popular do Governo, com marginalização das minorias”.

Fausto Figueira e a rotulagem aleatória da “loucura”.
Fausto Figueira, médico da COSIPA, na reportagem, oferece um dado “assustador”, de que na indústria os casos de Saúde Mental são “superiores aos casos clínicos”, diz. “Existem mais loucos que doentes normais”, frisa, denunciando a rotulagem da loucura feita aleatoriamente nos prontos socorros (“Esse cara tá meio esquisito”) e diz ser necessário valorizar o trabalho do psicólogo evitando o internamento a qualquer custo, com a melhora urgente da qualidade de vida da população. Cascione reporta que “existem apenas 10 milhões de brasileiros considerados normais, em uma população estimada de 114 milhões”, diz, enumerando males diversos e incapacitantes. “Eu não sei qual é a diferença hoje entre quem está dentro e quem está fora”, declara o advogado. “Eu, por exemplo, me considera louco, pois pelo menos tenho autocrítica”, reflete.

Stamato
No idioma italiano, “stamato” quer dizer “está louco”. Mas o psiquiatra Domingos Stamato, por coincidência, é uma das maiores expressões da luta antimanicomial na cidade, seu precursor. Ele foi um dos integrantes da comissão que interviria no Anchieta em 1989, antigo defensor de terapias alternativas no tratamento psiquiátrico (e responsável pelo Centro de Convivência de São Vicente) e levou para este núcleo a discussão, inclusive como antológico participante da experiência comunitária de Cidade Dutra, em 1973. Stamato, originário de Bebedouro e formado na Universidade Federal do Pará, psiquiatra e neurologista, fez residência na Santa Casa, onde atuava seu primo, o neurologista João Antonio Stamato, também oriundo daquela cidade.

Integrante do movimento psiquiátrico na sua raiz na cidade, chegado aqui em 1973, o psiquiatra Domingos Stamato participou do Congresso de Psiquiatria em Camboriú em 1978 e fez contato com o psiquiatra Pedro Delgado, irmão do que seria autor da nova lei da psiquiatria brasileira, em 1999 - o deputado federal do PT Paulo Delgado, e é um dos articuladores da Rede Brasileira de Psiquiatria – da qual participaram, em Santos, em 1978, nomes como o do psiquiatra Catulo Pestana de Barros Magalhães. Stamato participaria desse reinicio da luta antimanicomial no país.

“Os hospitais psiquiátricos são piores que prisões”, diz Humberto na reportagem do jornal A Tribuna, “o que cura é a democracia”, explica, trazendo um pensamento convergente, então, das lutas que se travavam contra a ditadura. Ele traçou um roteiro histórico da loucura e concluiu que quando ela passou para as mãos da classe médica, “resultou no tratamento que temos hoje”, das internações cruéis. No Seminário o coordenador de Saúde Mental do Estado foi denunciado, acusado de “desmandos e interesses escusos”, assim como o Ministério da Saúde, “omisso e inexpressivo”.

Também foram denunciados “os comerciantes da loucura”, os proprietários de hospitais particulares e até o Juquery, que estaria sendo esvaziado para favorecer estes empresários. Na década de 70, um grupo de sanitaristas, entre os quais o secretário de Saúde da então prefeita Telma, que seria prefeito, David Capistrano, promoveu o movimento sanitário e fundou o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde – CEBES -, defendendo o binômio “Saúde e Democracia”, contra a mercantilização do setor e defendendo o projeto que se implantaria na Constituição de 1988, o SUS hierarquizado, integrado e regionalizado, com participação da comunidade de usuários – universalizado, para todos.

A questão da saúde no Brasil, antes do SUS, careceu de estrutura, haja visto as conferências realizadas nacionalmente: a primeira foi em 1941, a segunda em 1950, a terceira em 1963, a quarta em 1967, a quinta em 1975, a sexta em 1977 e a sétima em 1980. A oitava organizou o SUS, precedendo a Constituição, e se tornou anual
1981: O centro de Convivência. A idéia da intervenção.
No mês de maio de 1981, o movimento funcionava no Centro de Convivência de São Vicente – coordenado pelo psiquiatra Domingos Stamato e pela psicóloga Maria Isabel Calil -, que reunia o movimento psiquiátrico, ecológico e outras ações de vanguarda. Foi lá que nasceu a idéia da intervenção no Anchieta, se recorda Stamato. Uma série de entidades populares dão seu apoio para que se organizem visitas às instituições psiquiátricas da região, no sentido de se efetuar um levantamento sobre as condições de assistência no setor. E se preparavam as propostas para o Congresso Mundial, que se realizaria de 28 de outubro a 2 de novembro, em Belo Horizonte. Seria o sexto Congresso Mundial desde 1975, quando se criou em Bruxelas a “Rede Alternativa à Psiquiatria”.

1982, ações democráticas. Denúncias e conflitos
Em 1982, a posse do primeiro governo eleito no Estado de São Paulo, após o Golpe Militar de 64, Franco Montoro, se abrem novas perspectivas e são feitas ações: Em Santos, subsistem, nessa época, as denúncias de maus tratos aos doentes mentais no Anchieta. Denúncias são feitas nos jornais, como no jornal da faculdade de Comunicação “Entrevista”. O então estudante que mais tarde seria um dos articuladores da intervenção, Sérgio Zanetta, como aluno de Edmundo Maia visita o Anchieta - e entra em conflito com o mestre pela situação desumana dos internos. O Anchieta mantinha um convênio com a Faculdade de Psicologia, mas as denúncias de procedimentos cruéis provocam seu cancelamento. A Associação dos Médicos já debatia a questão da Saúde Mental e das terapias alternativas, na nova diretoria do Departamento. A nova diretora do Departamento de Saúde do Litoral, doutora Lia Giraldo, também preocupa-se com o tema. Em pauta, a discussão sobre a construção de um grande hospital psiquiátrico ou descentralização do atendimento.

1983: a luta contra o chiqueirinho. ARTSAM em Santos
Entre as diversas atividades do ARTSAM, que abriu uma discussão com a comunidade sobre o Anchieta, promovendo cursos, discussões e debates, a principal foi a ofensiva contra o “chiqueirinho” existe no segundo Distrito Policial, onde eram jogados doentes mentais, em condições desumanas. Em maio de 1983, no jornal “Entrevista”, da Faculdade de Comunicação de Santos, o então deputado Rubens Lara analisava de maneira diferente a questão da Saúde Mental na região, agravada pelos fatores econômicos e sociais.

Para ele, não se deveria construir um hospital do tamanho do Anchieta, consciente das novas tendências da psiquiatria moderna de descentralização dos manicômios, com a criação dos chamados ambulatórios psiquiátricos. Pequenos centros terapêuticos, onde o paciente tem oportunidade de receber um tratamento mais minucioso e com maior atenção. Ele antecipava os métodos que seriam implantados.

Dentro da matéria sobre Saúde Mental, uma entrevista com o doutor Fabio Oliveri considera “excelente” as condições do Anchieta. Mas uma visita de surpresa ao hospital revela a crueldade dos “chiqueirinho”, quartos sem ventilação de onde se ouvem gritos desesperados e lamentos constantes. Casos de longas internações são relatados, da péssima alimentação e da ausência total de atividades de lazer.

A grande distração era “varrer o pátio”, segundo depoimentos. Uma reportagem focalizava o hospital-dia, existente em Santos desde 1981, que inova nas terapias psiquiátricas, criado pelo Dr. Luiz Geraldo Benetton, após o simpósio de Saúde Mental nesse ano. Em 1984 foi consolidado um documento em nível estadual com o titulo “Programa de Atendimento ao doente mental na “Baixada Santista”, com o compromisso de instalar um pronto-socorro psiquiátrico e um ambulatório no Hospital estadual Guilherme Álvaro. Em 1988 já existiam dois ambulatórios de Saúde Mental em Santos, antes apenas o da Zona Noroeste.

O núcleo da Baixada pretendia apresentar no Congresso a peça teatral “No limiar da loucura”, encenada pelos alunos da Faculdade de Psicologia de Santos. Em 1987 encontros da ARTSAM “detonam” o Anchieta e em 1989 era realizada em Santos a Primeira Plenária de Saúde, em que discutiu-se a implantação do SUS no Município, com a participação de diversos segmentos populares e técnicos no setor. Nascia a proposta da Primeira Conferência Municipal de Saúde – que se realizaria de 7 a 9 de dezembro - e da formação de um Conselho Municipal de Saúde, atendendo à recomendação da Oitava Conferência Nacional. Estava trilhado o caminho para a intervenção de 1989.

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1989: A QUARTA REVOLUÇÃO MUNDIAL DA PSIQUIATRIA
A HISTÓRIA DA INTERVENÇÃO NO ANCHIETA
os 15 anos no dia-a-dia da imprensa

1989 : Hora da ação
Em março de 1989, existiam 543 pacientes em precárias condições de vida. Surras, suicídios, mortes – 50 em 3 anos. A lei federal exigia 6 pacientes por metro quadrado, só cabiam 219, mas lá subsistia mais do que o dobro. Sem terapias, andavam de um lado para um outro em áreas lotadas, Em que eles mesmos faziam a limpeza. Era essa a “terapia” aplicada, pelo que ganhavam coisas como maços de cigarros e afins e, através a qual, se economizavam funcionários...

Eram só 200 camas, o resto era o ”leito chão”, ironia para pacientes desprovidos de tudo e jogados no chão mesmo, colchonetes insuficientes. quadro de pessoal reduzido, quase nenhum com formação superior. Ao invés de 28 enfermeiras e 116 auxiliares, havia apenas uma e 3 auxiliares, uma assistente ao invés das 7 exigíveis, um psicólogo em meio-período, ao invés das 8 normatizados. O absurdo da inexistência de prontuários para a maioria, quando existiam eram incompletos e mal-elaborados, pessoas com baixo nível intelectual mas sem nenhum problema de transtorno mental. Pacientes nus, nenhum farmacêutico, nutricionista ou terapeuta ocupacional. Não havia sabonetes ou pastas dentais, o mau cheiro dominava, sarna e piolhos. Faltavam profissionais em todas as áreas.

Faltavam médicos, dentistas, faltavam camas, acomodações, comida, remédios – mas sobravam torturas e sofrimentos. E o dinheiro, claro, que vinha do SUS para os donos e determinava o apego à estas práticas. Com base neste relatório, a Prefeitura deu um ultimato para correção das irregularidades, sob pena de medidas imediatas, sendo atendida pela instituição com uma “maquiagem”, com reformas de fachada com cal e creolina, em que permaneceu o fétido ambiente em que viviam centenas de pessoas humanas entre lixo e fezes. A Secretaria de Saúde do Estado, a quem cabia a fiscalização, nunca havia se manifestado.

Mas no início de 1989, em março, chegou às mãos da prefeita - e de seu secretário de Saúde, David Capistrano Filho, um nome nacional em assunto de saúde pública -, um relatório do SUDS-52 que atestava a completa irregularidade no atendimento, uma barbárie em termos higiênicos. Tudo isto insuflava e até criava loucura e revolta, acirrando o clima de guerra interna que produzia vítimas, gerando loucura. O dentista só arrancava dentes, não os tratava, os tratamentos cruéis lembravam a Idade Média. Eletrochoques como punição, não - terapêuticos, fármacos poderosíssimos, o “sossega-leão”, que prostrava o paciente por dias -, toda a espécie de procedimentos ao revés dos direitos humanos eram praticados.

Edmundo Maia, do Anchieta e de Jânio
Não era mesmo diferente dos psiquiatras da tradição institucional Pinel e Rush o psiquiatra Edmundo Maia, um dos antigos donos do Anchieta e seu ideólogo, já falecido, defensor destes métodos autocráticos que, para Basaglia, eram a falência da psiquiatria. Basaglia quem ele, Maia, disse que ”não entendia nada” da ciência. É significativa a presença deste que foi proprietário da “Clinica Maia” na capital, em Taboão da Serra. Até há pouco se aplicavam nessa clínica eletrochoques “terapêuticos”.

Maia foi assessor de Saúde Mental do ex-presidente Jânio Quadros, assim como quando este era governador do Estado de São Paulo. Tanto era de confiança do ex-presidente renunciante que um dia sua filha Tutu foi internada à força na Clinica Maia, em face de discussões hereditárias, já que Maia era amigo de seu marido, Mastrubuono. Aqui no Anchieta, em 40 anos de existência foram internados cerca de 80 mil pessoas com transtornos mentais. Quantos mais o seriam? Conceituado professor da Faculdade de Medicina de Santos e chefe do Departamento de Psiquiatria da Faculdade, ele representou no Conselho Regional de Medicina contra psiquiatras e psicólogos (Domingos Stamato e Catulo César Pestana Magalhães), que o denunciavam e ao Anchieta, isto já em 1978. Autor de um livro-base de seu pensamento psiquiátrico, os resultados da ciência de Maia estão expostos e relatados.

Contra o horror do manicômio, a estratégia pragmática de Zanetta
O médico Sérgio Zanetta, sanitarista, ex-diretor do Guilherme Álvaro e assistente do então secretário de Saúde David Capistrano à época, teve uma postura “estratégica” na resposta que ofereceu ao ex-diretor do Anchieta Edmundo Maia, publicada no jornal A Tribuna em 1990. O antigo dirigente sugeria reabrir o Anchieta e Zanetta, respondendo a um extenso artigo do médico psiquiatra em que este lembrava “a caminhada histórica da Saúde Mental” e os “serviços prestados” pelo Anchieta, em um “tratamento modelar”, indicava que este deveria se preservar nos seus interesses, já que tinha uma clínica análoga na Capital, bem diferente da selvageria praticada aqui.

“Só que esta era uma clínica para ricos”, explica Zanetta, “era humanizada, tinha terapias, tratamentos alternativos, até homeopatia. Fosse mantida a selvageria que havia no Anchieta seria prejudicial para sua imagem”, explica. Pragmaticamente, nos livrava dela. O texto, intitulado “Clamor das Trevas”, revela seu autor, Sérgio Zanetta, “estarrecido” com o longo artigo em que o ex-diretor discorre, como mestre que foi, sobre os doentes mentais em Santos, atacando a intervenção, citando o caos existente nos idos de 1947 quando ainda não existia o manicômio da rua São Paulo.

O médico sanitarista contesta o psiquiatra com sua experiência de 1982, quando visitou o hospital e assistiu às barbaridades existentes. “Eu vi o tratamento que o Dr. Maia considera modelar e que era instituído aos pacientes. Eu e dezenas de pessoas vimos a face da violência, abuso e desumanidade, que segundo o Dr. Maia compõe ‘uma respeitável folha de serviços públicos’ da então Casa de Saúde Anchieta”, escreve o ex-diretor da “Casa dos Horrores”.

“Ora, se o Dr. Maia considera castigos físicos, medicação indiscriminada e descontrolada, eletrochoques como instrumento de punição e subalimentação de pacientes como ‘relevantes serviços prestados à humanidade’, devo dizer-lhe que a sua humanidade não pode ser a minha”. Zanetta lembra Maia da denominação dada pela “consciência nacional” de “Casa dos Horrores”, das celas-fortes ou ‘chiqueirinhos’, pacientes convivendo dias e dias com seus excrementos. E pergunta: “Isto é terapêutico?”.

A pretexto do oponente “tentar esconder-se através do embate entre duas escolas da psiquiatria”, Zanetta o desmente: “a escola de Tykanori é a inspirada em Basaglia, sim, mas a de Maia é inspirada em quem? Mesmo a psiquiatria organicista e tradicional, argumenta, não aplica eletrochoques ao rés do chão por atendentes”. Entrevistado, explica que mesmo os psiquiatras que aceitam o método criado para amansar porcos “para conter crises”, como dizem, o aplicam com anestesia anterior, não como punição.

“Que psiquiatria é essa que apregoa?”, pergunta Zanetta no texto, a que obriga os pacientes à sub-alimentação. “Só lamento que o Dr. Maia queira associar seu nome ao horror e desumanidade que era o atendimento na Casa de Saúde Anchieta”, desabafa. “Dos parias trancafiados ontem, submetidos a atrocidades, hoje emergem cidadãos”, escreve. Segue o texto argumentando que “As afirmações do Dr. Maia em seu artigo, que procuram instalar o preconceito contra o ‘doente mental’ ao falar com intolerância sobre sua livre circulação na comunidade, são um verdadeiro ‘clamor das trevas’ que teima e insiste intentar contra a luz do dia. Não há como apagar o passado mesmo que rescrevendo a “história” em longos artigos. Tudo o que se passou e passa na casa de saúde Anchieta está registrado pela imprensa, em vídeos e depoimentos vários, o que dificulta o esquecimento e o retorno às trevas e me autoriza a pensar que a primavera iniciada no Anchieta é inexorável”, conclui.

Quinze anos depois, a ex-funcionária D.Elza conta a a barbárie do Anchieta, 15 anos antes da intervenção. Cantar dava cela forte e eletrochoque.
Dona Elza Maia já tem 69 anos e há 30 trabalhou no Anchieta, de 1974 a 1982. Vinda de Aracajú, Sergipe, chegou aqui em 29 de janeiro de 1955. Em 1º de novembro nasceria sua filha, relaciona as datas e assim lembra com precisão, embora queira esquecer daqueles dias. Por seu trabalho na instituição, teve depressões e até hoje não se livra delas.

“Bastava o paciente ser pego cantando e era trancado no ‘quartinho’ (a cela forte) e depois levado para o eletrochoque. Eu tinha que ajudar a pegar eles, amarrá-los. Tomávamos chutes, eles se debatiam, apavorados. Era 4 ou 5 todos os dias”, conta Elza. Os médicos que aplicavam eram, segundo ela, o Dr. Wilson Cortes, o Dr. Sebastião, o Dr. Aníbal e o Dr.Orlando Vaz. Eram aplicações curtas, de 3 segundos”, conta – em que o paciente saia desacordado. Dona Jária, chefe da enfermagem, já falecida, instruía os funcionários: era só pegar alguém cantando.

Ela lembra também da enfermeira Regina. “A gente tinha que dar uma ‘gravata’ nas rebeldes, que não queriam ir para o eletrochoque. Era molhar o algodão, passar nas frontes, nos dois lados – e choque neles. Pedi várias vezes para sair disso, paguei metade dos meus pecados ali”, diz. Ela lembra do Dr. Maia (“não é meu parente; vinha 3 vezes por semana para atender clientes com hora marcada”, diz) e do Dr. Cirillo. Elza trabalhou na Legião Brasileira de Assistência em Aracajú, onde aplicava injeções e fazia curativos. daí sua ida para o Anchieta, para serviços de limpeza e auxiliares de enfermagem. Enfermagem? Não era aquilo que fizera antes. Ela levava comida para os pacientes presos nas celas-fortes, “sempre lotadas”, lembrando que era sem garfo e nem faca, onde eles ficavam meses a fio, entre excrementos.

“Alguns tinha que dar insulina às cinco da manhã e depois trancar o banheiro para eles não poderem beber água”, conta. “A coisa mais horrível da minha vida foi aquilo, quando mandavam a gente dar choque, eu passava o resto do dia derrubada, arrasada”. “Anestesia antes? Exames? Não, não tinha nada disso”, recorda. Ela diz que as pessoas mais agressivas tomavam mais, os mais calmos menos. E da “disciplina rígida” imposta aos funcionários, que eram proibidos de comer no local. “Certa feita”, diz a filha Ângela, de 46 anos, minha mãe foi advertida por ser flagrada beliscando pão. Na outra vez, foi suspensa”, diz.

A reação humanitária
Mas autorizada pela Constituição federal de outubro de 1988, a intervenção veio em maio de 1989, no dia 3 de maio. Combinava as prerrogativas afirmadas pela nova Constituição de 1988 e o antigo Código de Posturas municipais. Era a redenção de décadas de crueldade na cidade libertária. A intervenção no Anchieta foi produzida legalmente pelos Decretos municipais 863, de 3 / 5 / 1989, e 1.021, de 6 / 12/ 1989. Durou 10 anos e 24 dias essa situação, de 3 de maio de 1989 até 27 de maio de 1999, quando já no Governo do sucessor de Telma e David, foi suspensa por uma Ação Civil Pública promovida pelo Promotor de Justiça João Carlos Meirelles Ortiz, da 2ª Vara de Fazendas Públicas, através do Decreto municipal 3.350. A intervenção foi comandada pelo psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, ex-diretor do Programa de Saúde Mental de Bauru – em alguns momentos no início pelo enfermeiro e integrante da equipe de intervenção, Luiz Antonio Melhado.

Tykanori pediria exoneração ao final do governo do prefeito David Capistrano, em 2 de janeiro de 1997 – quando era empossado o prefeito que, no governo por dois mandatos e com perfil de direita, autoritário e que destruiu a autonomia dos conselhos populares criados na gestão do PT. Mas este governo não destruiu a essência da descentralização do Programa de Saúde Mental, implantado nos dois governos da Frente Democrático-Popular. Conquistado com participação popular e engajamento social, era impossível revertê-lo e voltar ao manicômio – e essa sua maior característica.Com a intervenção foram implantados 5 núcleos de apoio psico-social, lar abrigado Manoel da Silva Neto, o Centro de Convivência Tam-Tam, a retaguarda de atendimento psiquiátrico às emergências / urgências no PS Central e núcleo de apoio ao tóxico-dependente, na estrutura do setor

A tragédia anterior e o processo de transformação
Desde 1983 só havia uma instituição para atendimento de pacientes com transtornos mentais em todas as 10 cidades da região: a Casa de Saúde Anchieta, uma fortaleza cujas notícias só escapavam nos lacônicos avisos de mortes, por espancamento ou maus tratos, torturas, lá ocorridas durante sua existência de quase quatro décadas – em que lá estiveram cerca de 80 mil pessoas. Em 22 de abril de 1989 morreu um pedreiro de 54 anos, por espancamento. Em 4 de março um estudante de agronomia se suicidara, no dia 6 de abril também um ajudante de pedreiro tivera o mesmo fim. De janeiro de 1986 a abril de 1989 foram 50 os mortos. Era esse o quadro aterrador.

Já no dia 22 de abril de 1989 o Diário Oficial do Município anunciava possível intervenção, em face da precariedade das condições dos pacientes. E é concedido um prazo até o dia 28 para solução. Dia 27 o secretário de Saúde David Capistrano distribui à imprensa denunciando a precariedade das celas-fortes, com pequenos orifícios de 5 x 20 centímetros e sem sanitários, em que os internos passavam semanas e meses trancados. Telma envia telex ao governador Orestes Quércia pedindo providências imediatas. No dia 3 de maio, o anúncio é que a prefeita Telma vistoriaria o hospital a partir das 9 horas. São apenas 4 pias, 38 chuveiros frios e 59 privadas para 531 pacientes. É “prioridade zero” o equacionamento da questão para a nova direção municipal.

O médico Sérgio Zanetta conta da noite anterior à intervenção, na reunião ocorrida na Secretaria de Saúde, “em que muitos dos nossos aliados, psiquiatras, gente nossa, foi contra aquela medida naquele momento. Diziam ‘vão levantar a cidade contra nós’, considerando que a população não queria ver a sua realidade”, lembra. Zanetta opinou que a intervenção deveria ir adiante, sim: “nós vamos abrir um esgoto, vamos purgar uma ferida, ninguém gosta de uma chaga”. Para ele, mesmo os que internavam seus parentes lá carregavam um remorso de que procuravam se livrar.

O Anchieta precisava ser aberto. E destruído, para construir um novo paradigma. O ato, enfim, encontrou certa resistência: “não vale a pena lembrar que foi contra mesmo porque depois estes foram os mais abnegados operadores, os que mais se envolveram no processo.” No dia 3 de maio, ao meio-dia, reunida toda a comunidade organizada santista – da Ordem dos Advogados às sociedades de melhoramentos e sindicatos - e todos os órgãos de imprensa da cidade na rua São Paulo, em que ficava o Anchieta, foi feita a “invasão saudável”.

Eram cinqüenta pessoas que tiveram a oportunidade de conferir, naquela hora, o absurdo da situação. que descrevemos, daqueles seres. A intervenção não foi apenas um ato burocrático da prefeita em seu gabinete, mas ao inverso, declarada e concretizada no local após a invasão ao meio-dia do dia 3 de maio e só horas depois, asssinada em seu gabinete. O documento foi assinado por ela e pelos psiquiatras Tykanori Kinoshita e Domingos Stamato e pelos psicólogos Luiz Antonio Guimarães Cancello e Antonio Lancetti, entre outros. Era uma libertação real e comparável à demolição das paredes do manicômio de Trieste por Basaglia e seus “clientes”, como diria a psiquiatra Nise da Silveira, que nos anos 20 pôs em prática as modernas teses da psiquiatria, substituindo os “pacientes”.

O anúncio da intervenção sai no dia 4, decretada no encontro em que estavam juntos a prefeita e seu secretário de Saúde, além do diretor substituto do SUDS-52, Dario Campregher Filho, os integrantes da OAB e da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos. O interventor nomeado é o psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita,ex-diretor do Programa de Saúde Mental de Bauru e ex-estagiário de Franco Basaglia, com prazo de 120 dias para as soluções que se exigem. A comissão interventora se reuniria com os funcionários para as novas determinações resultantes da nova filosofia de serviço.

Na entrada no hospital da equipe de Governo ao hospital, acompanhada de um exército de jornalistas, fotógrafos, câmaras de TV e membros de entidades, os internos ficaram pasmos diante da cena da visão daqueles personagens que entravam porta adentro. Agradeciam de joelhos e saudavam em lágrimas a mudança que, percebiam, chegava, aplaudindo e gritando - em atos de lucidez. As manchetes dos jornais paulistanos refletiram a importância do fato no dia posterior.

Até ali fora, só surra, fome e privação: iria mudar. A imprensa descreve o quadro encontrado: homens e mulheres caminhando em círculos ou deitados pelo chão. Sob as telhas de amianto o calor é insuportável e na TV ligada o “Show da Xuxa”, na rotina dos internos. A maioria não presta atenção e nem tem condições de manter os olhos abertos, por culpa dos medicamentos fortíssimos e eletrochoques. Um homem contou já ter tomado 240 deles, uma mulher nem consegue falar, treme toda. Um negro alto diz que quer a alta para poder ter um emprego – mas nas entrevistas com os médicos não consegue lembrar o dia em que está e a alta é cancelada. “Existem técnicas terapêuticas modernas”, diz Telma no D.O., diferentes desta degradação, explica. O episódio do Anchieta repercutiria nacional e internacionalmente, mas é particularmente interessante ressaltar os fatos noticiados na imprensa local, pelo diário local.

“O cachorro também é um ser humano”
O jornal A Tribuna do dia 1º de maio de 1989, Dia do Trabalhador, traz a manchete: “Ulysses é dono da festa do PMDB”, noticiando a escolha do “Senhor Diretas” para concorrer pelo Partido à presidência da República. Paraguaios vão às urnas para eleger seu presidente. A tradicional coluna social de Tereza Bueno Wolff mostra o aniversário de Giusfredo Santini, já passado dos 90 anos, o “cap” e patrono da família proprietária deste que é o principal jornal da cidade. “CGT elege Antonio Magri após violenta pancadaria”. Era o Congresso da Central Geral dos Trabalhadores, na Praia Grande, escolhendo aquele que, depois, seria ministro e ficaria famoso por suas sandices no cargo - notoriamente pela frase que expôs para o país após ser flagrado transportando seu cachorro em carro oficial: “O cachorro também é um ser humano”, disse ao país. Talvez o cachorro dele fosse mais do que os pacientes do nosso Anchieta, cujo quadro retratado na imprensa, nos dias seguintes à intervenção que abriu as muralhas do hospital, era pior do que a condição desses animais sem dono - estavam sujos, esfomeados e jogados no chão.

Foi com base da Lei de Proteção aos Animais que a defesa do advogado Sobral Pinto livrou Luiz Carlos Prestes da cadeia e das torturas, em 1935, após a tentativa revolucionária da Aliança Nacional Libertadora, que pretendia mudar a estrutura social do país. E aqui seria a retomada do estado democrático de direito após 4 décadas de ditadura, assim que as leis permitiram - com a democratização e a descentralização resultante da Constituição de 1988, que devolveu a legalidade ao Brasil, saneando a barbárie da Ditadura Militar que assumiu o poder no país em 1964. “No primeiro dia – conta Sérgio Zanetta -, não tinha médico para dar plantão, fiz o primeiro plantão sozinho com a equipe de enfermagem. Eles haviam abandonado o hospital, se é que se pode chamar assim aquele lugar.

Nesta noite, fugiram 14 pacientes que, para mim, tinha dado atestados para si mesmos de sanidade, ou não fugiriam. O pessoal brincava que ninguém tinha dado alta a tantos pacientes a mesmo tempo”. A nova Constituição dava poder aos municípios e a capacidade para agir, no caso do Anchieta. E foi isso o que permitiu a intervenção. Este novo cenário encontrava um Governo com a vontade política de aplicá-las e o poder foi exercido em defesa do povo. As coisas haviam mudado: era a mesma maneira em que a Constituição municipalizava as verbas do SUS e permitia aos municípios instalarem redes de saúde, o que poucas cidades fizeram – e Santos fez nesta época.

Notícias - “Para o Exército, bomba é reação da direita”.
A AIDS tomava conta da cidade.
É a manchete de “A Tribuna” do dia 3 de maio, o Dia “D” da Intervenção Municipal, após a ameaça no dia anterior. O monumento aos trabalhadores em Minas Gerais, assassinados em uma greve recente, havia sido detonado por uma bomba. Estatística do SUDS revela crescimento da AIDS na cidade, campeã brasileira no setor, na cidade que seria exemplo mundial de assistência às vítimas. “Greves e manifestações no Dia do Trabalho” , reportavam. Autoridades visitam a Casa de Saúde Anchieta: a direção do SUDS - 52, mais a equipe multiprofissional que havia elaborado um relatório atestando as más condições do sanatório voltava ao local, acompanhada de outros dois representantes da Secretaria de Saúde do Estado.

Advertidos pela Prefeitura das falhas encontradas, superlotação e carências gerais, os dirigentes do Anchieta tinham promovido uma “maquiagem” no manicômio, reveladas nesse dia, reduzindo de 525 para 379 o número de internos – próximo do limite permitido, mas para os quais não dispunham de funcionários, médicos ou enfermeiras - e proibido novas internações “pela porta”, apenas aceitando as que vinham encaminhadas pelo PS Psiquiátrico do Guilherme Álvaro, pelo PAM - Centro e pelo Centro de Saúde de São Vicente, como declaram. Afirmam ainda os dirigentes do Anchieta que cerca de 170 vagas tinham sido conseguidas com um hospital de Sorocaba e do ABC. reduzindo s superlotação.

A equipe estadual era chefiada pelo psiquiatra Moysés Aron Gotryfrid, que dizia ser aquele – o caos encontrado - “um problema crônico, que se arrasta desde 1968”. O santista e médico Paulo Ricardo Assis era o chefe do SUDS-52, o órgão estadual, uma indicação do ex-prefeito Oswaldo Justo, do PMDB, que tinha antecedido Telma. E Ronaldo Formento Aguiar era o coordenador do Programa de Saúde Mental do SUDS-52.

Ao meio-dia da quarta-feira 3 de maio, após a vistoria da Prefeitura, que não considerou suficiente a “maquiagem” no hospital, acontecia a “invasão saudável” do Anchieta, a intervenção municipal. As “reformas” feitas pelos antigos donos tinham sido “para inglês ver”, julgara o novo governo da cidade – e interveio. O jornal mostrou e mostraria fotos de seres humanos em situação lastimável, tal como relatado na Idade Média e nos campos de concentração alemàes na Segunda Guerra Mundial, jogados no chão e privados de tudo.

No dia 4 de maio, no alto da página um, a capa do jornal “A Tribuna”, no canto esquerdo, a notícia do dia anterior : “Anchieta está sob intervenção da Prefeitura” . Após visita de inspeção de mais de duas horas, a prefeita Telma de Souza decretou a intervenção por tempo indeterminado, sendo quase louvada pelos internos, que na sua entrada no hospital choravam e cujos olhos assumiam o brilho inexistente há tanto tempo: “ Você veio nos salvar”, gritavam para ela. Eram 12 celas fortes, noticiam, médicos e enfermeiras insuficientes, 3 mortes nos últimos meses, 50 nos 3 últimos anos. O diretor do Anchieta Milton Sabbag nega, na imprensa, a existência de celas fortes, dizendo que aqueles cubículos de 2 x 2 metros eram apenas “para conter os pacientes em estado de agressividade, até que terminassem” - o que poderia durar até 40 dias. Desmentia, confirmando.

Intervenção “antipática”?
Sabbag diz ainda que a medida interventora “não era simpática” e que um simples ato jurídico “não modificava normas técnicas”, declarou - o que é interessante denotar em face das transformações que viriam em função desse ato jurídico e da imensa repercussão nacional e mundial que causaria e pela repercussão que causaria em todos os jornais do país. Nesse dia, o jornal noticia “13 celas-fortes” na capa. Ou seriam 12, como diz a contra-capa? Não importava: a brutalidade era a mesma. Prestam seu apoio à medida diversas personalidades do mundo da psiquiatria e do mundo político.

O jornal noticia : Sidney Costa Gaspar, do Movimento Nacional dos Trabalhadores da Saúde Mental. Ana Lúcia Pastores Schritz Meyer, advogada e membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo. Cenise Monte Vicente, psicóloga, da Comissão de Direitos Humanos Teotônio Vilela. Fotos mostram pacientes pelo chão e a prefeita conversando com aqueles que diziam ser “violentos e perigosos”. O diretor Milton Sabbag justifica a inexistência de camas e sanitários tal como justificara as celas-fortes: diz que os sanitários foram retirados “porque as peças de louça podiam ser quebradas e ferir os pacientes”. Os quartos não tinham camas “porque os pacientes poderiam se ferir com os estrados de madeira”. E também não tinham luz, porque os pacientes “podiam levar choques”.

Não bastavam os eletrochoques, de potência muito maior? O Anchieta, declara, recebia “apenas” NCZ$ - cruzados novos, a moeda de então - 4,03 por hospitalização-dia, mas o custo real era 2,6 OTN`s, alegando que custavam, no entanto, 0,6 OTN´s. A insuficiência de recursos, justificava, era a razão daquele quadro. No dia 5, a notícia continua em “A Tribuna” : “SUDS discutirá intervenção no Anchieta”. “Comissão Especial de Vereadores se reunirá para debater Anchieta”, presidida pelo vereador do PT e líder de Telma na Câmara, Altino Dantas. No dia 6: “Sehig e SUDS debatem intervenção no Anchieta”. Presentes os psiquiatras Tykanori e Lancetti.

No dia 7, a notícia é que pacientes do Anchieta conseguiram fugir pelo telhado. A resposta do Coordenador de Hospitais e Pronto Socorros da SEHIG santista não poderia ser melhor, comprovando a violência da internação compulsória que perdurava há quase 40 anos. Para ele, não havia problema na fuga, ocorrida no plantão de Zanetta quando os médicos haviam ido embora, pois as características dela “eram a prova de que eles estavam em estado mental satisfatório”.

“Eles não fugiram, se derem alta” (Dr. Zanetta, segundo Melhado)
Notícia: a comunidade se mobiliza para apoiar a intervenção humanitária, doando 14 caixas de laranja, 70 dúzias de banana, roupas, sapatos, 30 quilos de carne do Eldorado. Era a festa do povo e foi feita uma grande churrascada, reunindo familiares, vizinhos, pacientes, médicos, enfermeiros, atendentes. Populares doavam sabonetes, pastas dentais, medicamentos. Era outro o tempo. No dia 23, anuncia o jornal, estaria na cidade o padre Quevedo, famoso por suas experiências de parapsicologia. Aqui, se fazia o dia-a-dia da psiquiatria, com face humana, apenas, muito bom-senso, uma ação de “cara” humana. Os pacientes, que eram tratados como lixo do mundo, deixavam de ser pessoas humanas, espancados, agredidos, presos, acorrentados e submetidos a choques elétricos. A ação para mudar essa realidade seria o marco inicial da política do governo democrático-popular santista.

A fonte de inspiração para a intervenção foi o exemplo de Trieste, na Itália, pioneira na eliminação dos manicômios, eixo do Programa de Saúde Mental desenvolvido em Santos. As novas medidas da intervenção são anunciadas no dia 5 de maio de 1989, a avaliação clinica individual dos pacientes, que não existia – quando da primeira internação, era diagnosticado ou inventado um problema e isso nunca mais se alteraria; o arquivo era uma monte de fichas velhas e sem acompanhamento. São introduzidas visitas diárias aos pacientes, abertura das enfermarias, incorporando-se novos médicos e paramédicos, reuniões com os funcionários. Chegam 4 médicos de clinica geral para avaliação do quadro de cada um, 4 enfermeiras, 24 auxiliares de enfermagem, 5 psiquiatras, 15 psicólogos, 3 dentistas, 2 nutricionistas e assistentes sociais. A junta interventora se reúne com os médicos do SUDS-52 para encaminhar os pacientes em excesso.

Zanetta: Na ação inédita, as “Brigadas Internacionais” no Anchieta
Segundo Zanetta, “no primeiro momento havia pouca gente para intervir, equipe pequena, fomos ‘construindo’ as pessoas. Veio gente de todo o país trabalhar na intervenção, foi um verdadeiro chamado nacional de sentimentos afinados com as idéias da luta antimanicomial, nesta que foi a primeira intervenção em um hospital psiquiátrico, aliás em qualquer hospital, na história do país”. Foi como o movimento de solidariedade internacional na Revolução Espanhola de 1938 contra os fascistas de Franco.

A suspensão judicial da Intervenção e a voz de prisão a David
Rubens Lara e Clara Ant apóiam a intervenção
Mas a batalha humanitária tem adversários poderosos: No dia 11, chega a suspensão da intervenção pela liminar concedida pelo juiz da 1ª Vara de Fazendas Públicas, Ricardo Almeida Dias- em função do Mandado de Segurança impetrado em 3 de maio de 1989 -, apesar da contestação do vice-prefeito e advogado Sérgio Sérvulo da Cunha e do interventor Tykanori junto ao magistrado. O então secretário David Capistrano, no calor do processo em que centenas de pessoas estavam sendo libertadas dos maus-tratos e da tortura, se exalta na audiência e diz que aquilo “é uma palhaçada”, recebendo voz de prisão, suspendida momentos após.

Volta o que era antes: no dia seguinte, empossados os antigos dirigentes, voltam os problemas originais, as prisões nas celas-fortes, as restrições as visitas. Seguranças tentam impedir as fotos da tragédia, enfermarias trancadas, cadeados, pacientes desesperados. No dia 13, o D.O. Urgente desmente que os Oficiais de Justiça, que tinham ido comunicar a liminar às autoridades municipais, tenham surpreendido o vice-prefeito Sérgio Sérvulo da Cunha saindo por uma porta lateral para entregar-lhe o documento, esclarecendo o advogado que recebeu o representante judicial em seu gabinete. Mas no dia 18 volta a intervenção, em face do despacho do Desembargador Nereu César de Moraes, comunicada às 15.30 horas ao diretor-clínico do Anchieta José Tosso Marins Filho.

Na volta da intervenção, a prefeita é recebida com palmas e declara que a notícia fora “...uma das melhores que recebera nos últimos anos”. No dia 19, um debate movimenta a cidade e joga a questão no cenário: na Faculdade de Serviço Social se discute a política de Saúde Mental e a intervenção. No dia 23, os deputados Rubens Lara (PSDB) e Clara Ant (PT) hipotecam seu apoio à intervenção. No dia 16 de maio, o Governo federal ameaça descredenciar a Casa de Saúde Anchieta do SUS e no dia 17 volta a intervenção, derrubada a liminar. A “sabotagem”, como denuncia o secretário David Capistrano no dia 3 de junho, explica o ocorrido no dia anterior, quando eclode um movimento de funcionários que abandonam o trabalho reclamando da “insegurança” diante dos pacientes soltos, reclamando maior controle. David mostra que o movimento é articulado com a entrada concomitante de uma petição na 1ª Vara de Fazendas Públicas, para ser anexada ao Mandado de Segurança impetrado em maio para sustar a intervenção. “É manobra”, conclui.

Mortes naturais são noticiadas com sensacionalismo e existem ações, como denuncia David, para desestabilizar a intervenção humanitária. A Prefeitura reforça a equipe médica. No dia 7 de junho chegava o decreto tornando o Anchieta equipamento de utilidade pública, abrindo caminho para a desapropriação do imóvel. No dia 7 de junho de 1989, Telma assina decreto desapropriando o Anchieta e se anuncia a presença no dia 17 do diretor do serviço psiquiátrico de Trieste, na Itália, Franco Rotteli. É aventado o primeiro intercâmbio com o Ministério das Relações Exteriores italiano. No dia 9, os funcionários do Anchieta tem 100% de aumento, para equiparar seus salários aos funcionários municipais. Rotteli faria palestras na Faculdade de Filosofia da Unisantos.

Vem a Santos, no dia 13 de julho, o diretor da Divisão Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Marcos Pacheco de Toledo Ferraz, para fazer uma palestra, conhecendo o trabalho e aprovando a intervenção. No dia 24, o boato sobre a concessão, no dia anterior, de uma nova liminar pelo juiz Ricardo Almeida Dias suspendendo a intervenção, pela segunda vez em 45 dias, quando tem lugar um ato público com mais de cem pessoas entre entidades e familiares dos internos. É inaugurado o primeiro Ambulatório de Atenção Psico-Social para dar assistência aos pacientes que tiveram alta. A Prefeitura não fora notificada da comentada liminar ao Mandado de Segurança, concedida no dia 23 de junho de 1989, que no entanto é suspensa outra vez no dia 4 de julho pelo Desembargador Nereu César de Moraes. A intervenção esteve ameaçada pelos proprietários do estabelecimento, através de ações judiciais e, por três vezes, foi mantida pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, na pessoa de seu presidente, Desembargador Nereu César de Moraes. Que em seu último despacho, noticiado no dia 1º de agosto, considerou “um retrocesso inadmissível o retorno da Casa de Saúde Anchieta à administração particular”.

No dia 14 de agosto, o D.O. Urgente publica uma edição especial com inúmeras fotos e depoimentos de técnicos e internos, com a foto da faixa estampada na porta do Anchieta: “Sob intervenção municipal – em defesa da dignidade humana”. Ocorrem manifestações de apoio de todo o país e do exterior. No dia 2 de setembro é noticiado o convênio que traz mais de 600 mil dólares para a Saúde Mental, fruto do convênio com a Itália, aprovado pelo Ministério da Saúde e Telma prorroga por 90 dias o prazo da intervenção. A condição de ser dirigida por um ex-estagiário do Programa de Saúde de Trieste, Tykanori, foram fatores que favoreceram a obtenção deste acordo, já feito em outras localidades no mundo. O acordo internacional tinha 3 pontos básicos para seu desenvolvimento: 1. Criação de um centro de documentação e informação; 2. formação de profissionais na área da Saúde Mental, inclusive com intercâmbio entre profissionais brasileiros e italianos; 3. Implantação de projetos específicos. No dia 22 de setembro, é anunciada a inauguração do primeiro hospital-dia, no dia 29, é o NAPS da Zona Noroeste.

Repercutindo a notícia, no dia 30 matéria do D.O. urgente traz a frase do vice-prefeito Sérgio Sérvulo, antigo militante da causa dos direitos humanos: “Há pouco tempo, éramos protagonistas de uma tragédia, hoje de uma epopéia. Estamos entendendo tudo o que representa o fim do Anchieta”.

Novas conquistas
O Programa de Saúde Mental de Santos, pioneiro no atendimento de pacientes fora do manicômio, foi um dos 3 programas brasileiros a aperfeiçoar seu registro de dados, o que fez com a consultoria da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, com o número preciso de casos, tipos de doenças mentais, evolução no tratamento e métodos terapêuticos utilizados. Além de Santos, apenas a Secretaria de Estado da Saúde e o Hospital Cândido Ferreira, de Campinas, foram escolhidos para receber a consultoria. Estiveram em Santos para firmá-la o coordenador interino de Saúde Mental do Ministério da Saúde Alfredo Schechtman, o representante da OPAS, Itzhac Levaz e o diretor do Sistema de Informação em Saúde Mental do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, Ronald Nanderscheid.

1990 : A rádio Tam-Tam entra no ar da cidade
No dia 2 de maio, Telma anistia trabalhadores municipais punidos por questões políticas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. No dia 3, um ano após a intervenção, já não existem mais as celas de confinamento e só permanecem internados os pacientes que não tem para onde ir. O secretário David vai a Brasília pedir o repasse direto das verbas SUS. A “Radio Tam-Tam” entra no ar em 1º de junho de 1990, na rádio Universal, programa feito por pacientes inédito no mundo e que foi exemplo para várias cidades e países. No dia 30 o professor holandês Dieter Besch elogia as mudanças no Anchieta. No dia 7 de novembro desse ano a notícia é que o programa desenvolvido o Anchieta iria ser exposto no exterior, em conferência em Caracas, Venezuela – quando David e Tykanori levarão vídeos e fitas de programas radiofônicos. No dia 4 de novembro, a rádio Tam-Tam e o Anchieta estão no programa do Jô Soares, na televisão, um programa de dimensão nacional.

1991: Tykanori: o primeiro Programa de Saúde Mental a sair do papel. O lobie contra a Saúde Mental humanizada
Em abril de 1991, a matéria do jornal da faculdade de Comunicação de Santos, o “Entrevista”, intitulada “Santos abre perspectivas à psiquiatria mundial”, colhe o depoimento do psiquiatra Roberto Tykanori. Que sintetiza a ação santista, dizendo que “não é nada de novo o que fizemos aqui, apenas o que a psiquiatria ensina”, declara. Conta que esse projeto é discutido desde 1940 e que surgiu na Inglaterra, que o projeto de Santos segue a linha italiana, que processos semelhantes de reforma psiquiátrica ocorreram na França e nos Estados Unidos – na visão de quem deve cuidar dos problemas sociais que originam o problema não é o hospital, mas a sociedade, como faz com a miséria. “O programa santista já foi observado pessoalmente por psiquiatras da Holanda, Alemanha, França, Suécia, Itália e Alemanha. E Santos é um dos poucos lugares em que o programa saiu do papel”, diz.

Em maio de 1991, no dia 17, a notícia é que o psiquiatra Valentim Baremblitt, consultor da Organização Pan-Americana de Saúde, órgão de assessoramento da OMS, declaro que “Santos é um marco para a Saúde Mental”. Dia 4, o programa radiofônico Rádio Tam-Tam estréia na Rádio Clube, ampliando de 10 para 50 mil watts sua transmissão. No dia 12, a notícia é que um lobby tenta derrubar o Projeto de Lei do deputado do PT mineiro Paulo Delgado, o Projeto de Lei 3.657 / 89, no Congresso. Ele extingue os manicômios, fonte de renda para muita gente importante inclusive no Congresso Nacional. No dia 15 de maio Santos se torna outra vez o centro da luta antimanicomial no país, quando vem aqui Austregésilo Carrano Bueno – no “Bar da Praia”, autor do livro “O canto dos malditos”, que dera origem ao filme “O bicho de 7 cabeças”, o mais premiado do Brasil e que denunciava um manicômio e seu papel, por uma vítima de internação arbitrária. O “Washington Post” estampa o Anchieta na primeira página, em 6 / 8 / 1991.

Acusações: gravidez e empreguismo
O psicólogo Eustázio Pereira volta a carga em 4 de junho, com denúncias de “empreguismo” no Anchieta. Em 9 de junho, 1991: 26 pacientes do serviço de Saúde Mental integram o Núcleo de Trabalho da Casa de Saúde Anchieta e se reintegram à sociedade. Acusações no dia 26 do ex-diretor Edmundo Maia de “promiscuidade” entre os pacientes, pois haviam surgido internas grávidas. Em 12 de junho: “Lobby contra a Saúde Mental humanizada”, é a notícia do D.O. Urgente sobre a ação da Federação Brasileira dos Hospitais que, por razões “puramente mercantilistas”, quer derrubar o Projeto de lei 3.657/90 do deputado federal Paulo Delgado, que humaniza e abre as portas da extinção dos manicômios. Jornal do Brasil, 28 de julho de 1991: “Médica muda manicômio que foi o terror de sua infância”. O depoimento de Sandra Lia Chioro dos Reis. Era uma das mais fortes recordações que ela trazia de sua infância, a ameaça aos filhos desobedientes: “Te mando para o Anchieta”. Um silencio sinistro que emitia gritos de horror, recorda Lia, na reportagem do jornal nacional editado no Rio de Janeiro, quando ela então comandava o hospital de tantas tragédias. No final de junho a OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde, fizera um “work shop” na cidade, que emitiu uma “Carta de Princípios” intitulada “Crítica radical a sistemática do manicômio”, elaborada junto com a participação de profissionais brasileiros e italianos e distribuída em todo o país.

OPAS, A Carta de Santos
A “Carta de Santos” destaca o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT-MG), de extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos, em tramitação no Senado, já aprovado pela Câmara. Propõe a substituição dos manicômios por internações em hospitais-gerais, hospitais-dia ou hospitais-noite, a criação de centros de convivência e atenção. Regulamente a internação psiquiátrica compulsória – por desejo da família, como ocorreu com a deputada Tutu Quadros, filha do ex-presidente da República Jânio Quadros – que ocorrera há cerca de dois anos.

“Aliás na clínica de Edmundo Maia na capital, quem era amigo do marido de Tutu, o Mastrubono”, lembra o médico Sérgio Zanetta, “internada à força”, diz. Com esse tratamento, “o doente adquire identidade de doente, mas não se enquadra mais nas doenças clássicas”, lembra Sandra. “Fica com cara de esquizofrênico, mesmo não sendo esquizofrênico”, acrescenta. O Projeto de Lei de Delgado representa a ruptura de um velho modelo, analisa a “Carta de Santos”, é um ponto de partida na mudança de tratamento do doente mental.

Lancetti: “perversidade”
Segundo um dos participantes do encontro, o psicólogo Antonio Lancetti, um dos inovadores que interpuseram a ação interventora no Anchieta, os manicômios gastam muito dinheiro, cronificam a doença e são perversos do ponto de vista ético. Ele e Sandra, conta a reportagem, tem um repertório de perversidades cometidas atrás dos muros dos hospitais psiquiátricos tradicionais, como a internação de uma psicótica nordestina - em função da sua linguagem floreada incompreendida - e de eletrochoques em um paciente que se despira por causa do calor.

Segundo Lancetti, “o pobre é internado porque é pobre e o rico porque a família quer tomar seu dinheiro”, diz – na declaração que o jornalista que escreve a matéria considera “exagerada”, mas que reportava com perfeição o caso de Tutu Quadros, a filha do Presidente da República Jânio Quadros e dos fatos que decorreram.

Saúde Mental é orgulho para Santos
Em 22 de agosto de 1991, a chamada do D.O. Urgente é Saúde Mental “é um orgulho para Santos” . Mostrando sua foto, a declaração é de Gregório Franklin Baremblitt, que terça-feira dia 20 havia estado em Santos para conhecer o Programa de saúde mental desenvolvido desde 1989 pela Prefeitura, tendo debatido com o público o tema “Amor, loucura e repetição” no Bar da Praia de Eduardo Caldeira junto com o então secretário de Saúde David Capistrano. Na ocasião, ele autografou dois de seus últimos livros “Cinco lições sobre a transferência” e “Lacantroças”. Entrevistado pela rádio Tam-Tam, Baremblitt foi professor da Faculdade de Buenos Aires e diretor da área de docência de ‘Plataforma’, primeiro grupo que cortou relações com a Internacional Psicanalítica por divergências políticas, tendo dirigido a Escola de Psicologia Psicoanalítica y Socioanálise e o Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições. A Tribuna publica em 5 de dezembro: “Advogado denuncia irregularidades no Anchieta”. São acusações de que o hospital se tornara “uma casa de libertinagem, prática de homossexualismo, estupro, agressões físicas a funcionários e entre pacientes e transmissão de doenças contagiosas. Nobel quer responsabilizar David e Telma e ainda a diretora Sandra Chioro.

A resposta das acusações de “erotização” dos pacientes
“Capistrano nega irregularidades no Anchieta” é a reportagem do dia 6 de dezembro. Lancetti negou a existência de “libertinagem”, “acontecendo, porém, diz, que muitas vezes os problemas mentais estão relacionados à questão da sexualidade” e que parte do trabalho está voltada à erotização, ou seja, fazer com que os pacientes discutam seus bloqueios para revitalizar a capacidade de se relacionarem. “Isto não significa estimular a prática de relações sexuais entre os pacientes, explicou o psicanalista, pois todo o trabalho é acompanhado e fiscalizado por técnicos”, disse.

Tykanori depôs que “há um equivoco dos leigos em querer interpretar que o método que desenvolvemos é de liberdade absoluta, mas sim uma liberdade regrada para execução de um trabalho extremamente delicado no sentido de promover a reinserção do paciente na sociedade”. Comissão Especial de Vereadores acompanha o caso do Anchieta, é a notícia do dia 11 de dezembro de 1991, quando o vereador Mantovani Calejon pediu sua formação para investigar com base nas denúncias de Nobel, que acusava a “promiscuidade sexual”. O promotor Wallace Paiva Martins Júnior declara que poderia até mandar vistoriar o Anchieta por peritos.

1992 : Anchieta é manchete nos Estados Unidos. Telma responde acusações
No dia 9 de janeiro de 1992, a reportagem do D.O. Urgente é que órgãos de imprensa do mundo todo falam do Anchieta e da ação renovadora das políticas de Saúde Mental, entre eles o “Miami Herald”, em artigo da jornalista Stah Lehman, é a reportagem “Brazil mental patients run radio show as form as therapy”, destacando a rádio Tam-Tam. Em 20 de abril de 1992 o jornal Diário do Litoral publica um texto da deputada federal Telma de Souza, prefeita da cidade até 1992, no qual responde as acusações do jornal A Tribuna, com respeito ao gasto de 11 milhões no Anchieta, na manchete que estampou no dia 15 de abril. “Fizemos a intervenção porque como Poder Público, que tem que zelar pela cidadania e dignidade – e não ser apêndice de interesses privados –, não podíamos fechar os olhos para o que estava acontecendo dentro dos macabros muros do hospício.

Aliás, foi o que muitos fizeram sendo cúmplices e coniventes destas barbaridades”, declara, explicando que o volume gasto foi pago em salários aos funcionários “que fizeram um trabalho reconhecido internacionalmente”- acusando “tanto o jornal como os que tentam deturpar a questão da intervenção”. Na Casa de Saúde Anchieta defendem o tratamento cruel anteriormente dispensado às pessoas ali internadas.”O ano de 1992 foi o que o Ministério da Saúde concede algumas alterações na legislação federal de Saúde Mental aos movimentos organizados, que pressionam. E edita a Portaria 224 / 92, que submete os hospitais a normas de atendimento psiquiátrico mais respeitoso com os pacientes. “Saúde Mental é modelo em Minas gerais”, publica o D.O. Urgente em 30 de junho de 1992, falando da experiência de Barbacena, quando estiveram em Santos, Luiz Eduardo de Oliveira, chefe da Divisão Assistencial do centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena – que veio conhecer “este parâmetro nacional de Saúde Mental”. Além do vice-diretor clínico, estiveram aqui um psiquiatra e dois residentes em psiquiatria, três psicólogas e igual número de assistentes sociais, duas enfermeiras e uma professora do curso de psicologia da faculdade de São João del Rey.

Los Angeles Times: “Serviços de saúde de Santos são mesmo impressionantes”
Em 25 de julho o D.O. Urgente noticia que “Saúde Mental será destaque nos EUA”: “Os serviços públicos de saúde de Santos são mesmo impressionantes”, comentou o jornalista Jeb Blount após conhecer várias frentes do programa e Saúde Mental no dia 21, que seria objeto de reportagem no Los Angeles Times, o maior jornal da Costa Oeste dos Estados Unidos e um dos cinco maiores do país, com 800 mil exemplares por dia. Blount foi entrevistado pela Rádio Tam-Tam. A reportagem sobre a Portaria 224 / 92 da revista “Reforma Manicomial” escreve sobre as “estruturas inéditas”, preconizadas pela medida legal em seu anúncio, desmentindo este caráter: diz ela que já existiam o CAPS - Itapeva desde 1986 na cidade de São Paulo e os NAPS de Santos desde 1989, o HD do Cândido Ferreira de Campinas desde 1990.

“Anchieta expõe números e contesta deputado”
É a chamada da matéria de A Tribuna em 20 de agosto de 1992. “Para cuidar de 80 pacientes, em média, a Casa de Saúde Anchieta, sob intervenção desde maio de 1989, mantém uma equipe de 120 profissionais, o que representa na prática 1,5 funcionário à disposição de cada interno”, informa a Assessoria de Comunicação da Prefeitura, como publica a reportagem, contestando dados mostrados pelo deputado federal e então candidato a prefeito pelo PSDB Koyu Iha, em um debate no Sindicato dos Médicos – quando disse que “os gastos “são bem superiores a todos os índices que a classe médica e a rede hospitalar consideram normais”. Para Tykanori, na publicação, “Koyu tomou como parâmetro a sucateada rede hospitalar conveniada com o SUS-INAMPS”.

“Neste caso, diz, o Anchieta destoa, pela assistência que presta aos pacientes e às suas famílias”, explica, detalhando que metade do custo de US$ 20 ((Cr$ 104 mil) e US$ 25 (Cr$ 130 mil) é ressarcida pelo SUS-INAMPS, que atende mais de mil pacientes e que não poderia ser analisado de forma isolada de toda a estrutura de atendimento do programa. A “Revista Ligação”, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, de agosto a outubro de 1992, traz a matéria “Loucos nas ruas, praças, rádios...” - “Santos troca violência pelo respeito aos chamados doentes mentais, que voltam a conviver em sociedade”.

Conta toda a história do Anchieta e entrevista Tykanori, mostra o “Gel Gomes” da Rádio Tam-Tam e mostra uma imagem de seus estúdios em ação, fala das resistências enfrentadas e traz um texto sobre o Projeto de Lei de 1989 do deputado Paulo Delgado, criticando a política de saúde dos anos 60 e 70, que criaram mais de 100 mil leitos psiquiátricos pagos pelo SUS, fora os 20 mil privados. A reportagem é de Victor Nuzzi, com fotos de Januário Silva. O psiquiatra italiano Franco Rotelli, que esteve aqui pela terceira vez no dia 20, elogia os avanços de Santos na Saúde Mental, é a notícia do D.O. Urgente no dia 24 de novembro de 1992.
1993: A extinção gradual, reduzem-se as internações
Apenas 29 pacientes são atendidos na enfermaria de doentes crônicos do Anchieta em 31 de janeiro de 1993 e o hospital dispõe de mais 60 leitos na ala de internação. Em 6 de fevereiro de 1993, o jornal A Tribuna noticia que a intervenção gerara duas ações até aquela data, que seriam julgadas pelo STF, uma pedindo a anulação da intervenção, impetrada logo após o ato, e outra pedindo a desapropriação indireta. A entrevista do psiquiatra Roberto Tykanori é a matéria no dia 21 de fevereiro de 1993 no Jornal da Orla: “Núcleos substituem hospital com vantagem”, diz o titulo, atestando que as internações caíram de 360 em 1989 para menos de 80 menos de 4 anos depois, dizia Tykanori, enaltecendo os NAPS e a descentralização do atendimento.

No dia 20 de março de 1993 a notícia é que psicóloga argentina faz estágio em Santos. Era Gabriela Mendin, docente da Universidade de Buenos Aires em Saúde Pública e Saúde Mental. “Anchieta pode ser desativado em definitivo” é a matéria do jornal Entrevista da faculdade de Comunicação da Unisantos em abril. Telma e Tykanori dizem que ele se tornará desnecessário, assumindo seu papel os NAPS. Maria Aparecida Linhares Pimenta, então secretária de Saúde, diz que o fechamento da casa de Saúde Anchieta “irá coroar o processo de humanização do atendimento psiquiátrico na região”.

Para Tânia Maria Schdmit Rezende, médica psiquiatra citada na matéria, trabalhando há dois anos no Anchieta, fechar o hospital é medida essencial “para que deixem de existir lugares onde se depositam loucos”, afirma. Comenta Tânia que a grande maioria dos hospitais psiquiátricos hoje está em mãos de particulares, que não se importam com a saúde do doente, mas com o lucro. Ao reverso, o psiquiatra Benedito Carlos Weltson, responsável pelo Departamento de psiquiatria da Associação Médica de Santos e professor de Psicologia Médica na faculdade de Medicina não concorda com o fechamento da casa, pois segundo ele, “os carentes é que serão prejudicados”. Na matéria assinada por Nádia Regina, o médico diz “não entender” como o Governo municipal considera o Anchieta um “manicômio comum”, após “todos os investimentos injetados e os avanços atingidos”.

A atitude da Prefeitura está sendo simplesmente política”, diz. “Ela não leva em conta o atendimento da população”, declara. As 50 mortes em 3 anos foram “mera fatalidade”, diz Sabbag. É importante o registro. “Prefeitura vai acelerar desativação do Anchieta” é a matéria de A Tribuna no dia 18 de julho, do jornalista Francisco La Scala. Eleito sucessor de Telma, David Capistrano promete acelerar o processo de substituição por uma rede alternativa. Analisando o debate entre a velha e a nova psiquiatria que advoga a demolição dos manicômios, um bloco da matéria critica a extinção dos hospícios e alertando para os “casos graves”, escreve que a lei italiana estava sendo reformada “por não conseguir se sustentar”, apenas se mantendo na região de Trieste – o que seria desmentido por Tykanori no bloco posterior, explicando que a Lei italiana estava sendo reformada sim para ampliar os institutos lançados e as casas-abrigo para recolher o que o manicômio havia produzido.

“Nós temos a visão do indivíduo mais dono de si, não aceitamos a tutela do estado. estamos buscando uma psiquiatria mais sensata, conciliando os avanços tecnológicos possíveis com escolhas éticas, mostrando que a tutela ainda que temporária não é ideal”, diz. “O ideal é que a sociedade gere pessoas produtivas”, acrescenta Tykanori.

Edmundo Maia, apontado como torturador, alerta para o que os loucos podem fazer soltos. Torturar pessoas?
Entrevistado, o antigo dirigente do Anchieta apenas “até 1961”, como diz a matéria, Edmundo Maia, alerta para a “a responsabilidade civil e penal” dos atos praticados pelos pacientes libertos, com a desativação do hospital. Para ele, “a antipsiquiatria não teve êxito nos Estados Unidos e nem na Itália”, contando que Anchieta foi um dos hospitais mais modernos do Brasil, “o primeiro sem grades”, conta. Repete que a Lei italiana está sendo revista (o que foi desmentido por Tykanori). Em outros tempos, o que é curioso, é que Maia foi um impulsionador da humanização psiquiátrica, diz ele “e apesar disso fui apontado como torturador por esse pessoal que segue a linha do Basaglia”. Sabbag, outro sócio, insiste na tese de que o município não poderia intervir.

Experiência santista aprovada
Em agosto de 1993, no dia 13, o D.O. Urgente noticia que os pacientes psiquiátricos haviam fundado um cine-clube, exibindo o filme “O Garoto”, de Charles Chaplin. A rádio Tam-Tam estréia na rádio Cacique AM é a notícia no dia 18 de setembro, agora todos os dias das 20 às 21 horas, menos domingo – e está lançando um concurso de locução. “Doentes crônicos tem alta no Anchieta” é a notícia do D.O. Urgente no dia 20 de outubro de 1993. “Hospital psiquiátrico adota nova forma de tratamento, reintegrando estes pacientes na sociedade”, diz o texto, que alerta para o fato de que é um caso raro na literatura médica.

A matéria conta do paciente W.A.M., de 35 anos, que se tornara um cidadão independente e auto-sustentado após ser interno em orfanatos e instituições por toda a vida. O caso foi apresentado pela psicóloga Lygia Cascabulho no 5º Encontro de Psicólogos da Área Hospitalar realizado em Rio Quente, em Goiás, em 22 a 25 de agosto e nos dias 10 e 11 em Buenos Aires, durante o 5º Congresso Internacional de Psicopatologia e Saúde Mental, onde foi aprovado pela Comissão Científica. Santos exporta sistema de saúde para 300 cidades” era a notícia na Folha de São Paulo no dia 7 de novembro de 1993. Em novembro, no dia 10, a notícia do D.O. Urgente é que seria inaugurado oficialmente nesse dia o primeiro Lar Abrigado para pacientes psiquiátricos, cujas vidas haviam sido limitadas pelos longo anos de reclusão na Casa dos Horrores.

A “República Manoel da Silva Neto”, a “Casa Manequinho”, já contava com 14 pacientes com idade média de 55 anos e muitos já tinham passado mais de 30 anos internados. Ficava na avenida Pinheiro Machado 364 e a diretora é Fabiana Maria del Bon, que declarou que era “a 15ª moradora”, pois residia no local. “Santos sedia encontro nacional antimanicomial”, dia a notícia do dia 9 de dezembro de 1993 no D.O. Urgente, debatendo o tema “O Brasil sem manicômios no ano 2000”. É o III Encontro Nacional de Entidades e usuários, de 9 a 12 desse mês no ginásio do Sindicato dos Metalúrgicos na rua Paraná. No dia 9, na abertura, seria exibido o filme “O alienista”, da obra de Machado de Assis e no dia seguinte a abertura seria feita pelo prefeito e médico David Capistrano. No dia 16: “Santos ‘exporta’ experiência em Saúde”, escreve o D.O. Urgente, falando da ida do prefeito David Capistrano para contar a experiência santista em Quixadá, no Ceará, onde abriu uma jornada em Saúde Mental no Instituto de Orientação Vocacional Pio XII. Além de Quixadá, outras duas cidades, Iguatú e Canindé, estão implantando o programa santista.

1994 : Santos na BBC de Londres. Pacientes fundam cooperativa de trabalho
A BBC de Londres, uma das principais rádios do mundo, transmitida para vários países vem a Santos com o repórter Jean MC Neal. Ele esteve aqui no dia 18, noticia o D.O. Urgente no dia 21 de maio de 1994, para fazer entrevistas sobre os programas santistas na área de Saúde Mental e AIDS. Reportagem no jornal Espaço Aberto, em 27 de maio de 1994, intitulada “A loucura nas ruas de Santos”, faz críticas à intervenção em artigo de página e traz, além do depoimento do médico Sérgio Prior, diretor do Pronto-Socorro Psiquiátrico do Hospital Guilherme Álvaro, que se diz contra a “erotização” que estaria sendo levada aos pacientes do Anchieta.

A reportagem fala da representação iniciada pelo advogado Nobel Soares de Oliveira em 1991 nessa direção. Em 17 de setembro de 1994, o Jornal da Orla noticia que ex-pacientes do Anchieta fundam cooperativa. “A intervenção me salvou”, diz José Roberto dos Santos, que junto com Arthurmiro Dechiaro foram os fundadores da cooperativa - e que reconstruíram suas vidas através do trabalho na Unidade de Reabilitação Psico-social, “pois acabou com a ‘Casa dos Horrores’ e eu pude começar a trabalhar”. “Doentes mentais já tem uma cooperativa””, repete a matéria do Diário do Litoral em 7 de novembro de 1994, quando os usuários do Programa de Saúde mental da Prefeitura haviam fundado a Cooperativa Paratodos de marcenaria, jardinagem, brechó, lixo reciclável, doces, salgados e trabalho braçal.

“Santos ganha menção honrosa por trabalho no Anchieta”, diz a notícia no D.O. Urgente no dia 24 de novembro de 1994, quando a cidade foi uma das cinco premiadas na I Mostra de Experiências Municipais sobre a defesa da mulher contra a violência, promovida pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal. A representante santista foi a psiquiatra Suzana Robortella, do NAPS II, que lembrou que um dos pontos mais importantes da experiência foi perceber “o efeito positivo da liberdade”. Até o dia 26 ela participaria de uma mostra sobre o tema, expondo o trabalho de Santos no Rio de Janeiro. No dia 30 desse mês de novembro, o D.O Urgente noticia que a SEHIG assumia o Ambulatório de Saúde Mental da Zona Noroeste, na Areia Branca, o que reivindicava desde 1989. O diretor Nilson Ferraz Páscoa, do RSA / 52, entregava as chaves.

1995: a Argentina vem conhecer a Saúde Mental de Santos
“Escritor argentino vem conhecer o programa santista”, estampa o D.O. Urgente no dia 1º de dezembro: Mário Testa, um dos principais formuladores do método de planejamento a OPAS-Organização Pan-Americana de Saúde, reuniu-se no dia 28 com técnicos das áreas sociais e desenvolvimento urbano e, no dia seguinte, com diretores do serviço municipal de saúde. Autor do livro “pensar em saúde”, é conhecido como um pensador latino-americano que vê a saúde como prática social: “Um governo racional – diz -, só pode ser construído sob a base de um processo realmente emancipador, que aumente a motivação e a vontade política na consciência do povo”.

O Jornal do Brasil expõe matéria com o titulo “Santos trata seus loucos com qualidade de vida”, no dia 26 de junho de 1995, contando todo o processo de intervenção e construção do Programa de Saúde Mental, dizendo que “reforma do sistema psiquiátrico obtém sucesso ao estimular convívio com a família, evitando internações prolongadas e ineficazes”. No dia 19 de dezembro de 1995, a notícia do D.O. Urgente era que o Programa de Saúde Mental de Santos iria contar com o apoio da Organização Mundial de Saúde, que recomendou o exemplo santista a 190 países. A notícia era comunicada na visita do diretor de Saúde Mental da OMS, Jorge Alberto Costa e Silva. No dia 18, profissionais cubanos haviam conhecido pessoalmente o Programa de Saúde Mental santista, quando estiveram aqui o coordenador de Saúde Mental de Cuba Guilhermo Barricatas, na vista patrocinada pela Organização Pan Americana de Saúde – OPAS.

“Teatro é usado para reintegrar doentes mentais”, diz a manchete da reportagem do jornal “O Estado de São Paulo” do dia 20 de novembro de 1995, reportando o trabalho do Grupo Biruta com os internos. O “olho” da matéria fala que o Anchieta “foi o primeiro manicômio brasileiro a trocar, em 1989, o excesso de medicamentos, tratamentos com eletrochoque e confinamento dos internos pelo atendimento descentralizado e aberto nos núcleos espalhados pelos bairros de Santos”.

1996: Pasquale, de Trieste, elogia a ação santista
O psiquiatra Evaristo Pasquale, do Serviço de Trieste, elogia a ação santista, é a notícia. No dia 6 de janeiro de 1996, médicos do Hospital Phillipe Pinel, no Rio de Janeiro, fazem estágio em Santos. O Programa local seria apresentado na Semana de Luta Antimanicomial promovida pelos institutos Phillipe Pinel e Franco Basaglia. Em 29 de março, o pesquisador Paulo Amarante, da Fundação Oswaldo Cruz, relatava que o Brasil teria mais 100 Núcleos de Atenção Psico-Social até o final do ano, fora os 100 que já existiam no exemplo de Santos, que “...iniciou a reforma psiquiátrica no Brasil”, disse na ocasião como relata o D.O. Urgente, endossando as teorias aplicadas.

Em 1996 é baixada a Norma de Orientação Básica (NOB 96), que só começaria a funcionar em grande número nas cidades a partir de abril de 1999, quando efetivamente o Ministério da Saúde começou a oferecer efetivamente verbas aos municípios que assumissem os serviços psiquiátricos até então sob comando da União e dos Estados. De posse desses novos recursos e das diretrizes ditadas pela Portaria 224 / 92, os municípios ganharam grande impulso para realizar, de fato, uma reforma e base no sistema psiquiátrico nacional, pois a Portaria previa a criação de estruturas inéditas de atenção aos doentes, que haviam surgido aqui, como os CAPS / NAPS ou Hospitais-Dia oferecendo a mediação entre laboratório e a internação, oferecendo aos pacientes atendimento clinico e psicoterapêutico, também lares abrigados (as “repúblicas” de pacientes) e oficinas terapêuticas, proibindo terminantemente a reclusão em “espaços restritivos” como as celas-fortes.

Em São Vicente, o exemplo do Anchieta. Mito e loucura
A Semana de Luta Antimanicomial de 1996, reportando a conquista que irradiava para São Vicente a partir de 1993, com a criação do Núcleo Mater de Atenção Psicossocial, então com 5 mil pacientes cadastrados, teria uma apresentação nessa cidade do evento “Mito e Loucura – um ritual cênico”, no dia 18, no Instituto Histórico e Geográfico, baseada na história de Demeter e Perséfone, um texto da mitologia grega – que surgiu depois que uma usuária do serviço foi morta pelo próprio filho, um ex-bombeiro, dentro da unidade. O diretor Sérgio Penna lembrou que a mitologia é extremamente rica em simbologias e que grande parte de nossos atos é fundamentada nestes mitos, uma pesquisa temática feita pelo psicólogo Haroldo Tuyoshi Sato, que atua desde 94 no NAPS vicentino e na Associação Maluco Beleza e Mokiti Okada.

O evento “Mito e Loucura” contou com a coordenação psiquiátrica de Domingos Antonio Stamato, produção da “Pazzo a Pazzo Projetos de Arte e Loucura”, com assistência de direção de Guido Leonarduzzi, colaboração de Fred Maia e a música de Wilson Sukorsky, com o patrocínio do Serviço de Saúde de São Vicente. Haveria ainda um ciclo de debates e a projeção do filme “O profeta das cores”, de Leopoldo Nunes, premiado no festival de Brasília. Em 22 de abril de 1996, o Diário Popular noticia que a Universidade de Boston, que mantém um órgão vinculado à OMS, aprova modelo de saúde de Santos, escolhido como um dos 3 melhores do mundo, contendo as melhores práticas de reabilitação psicossocial e seriam exibidos na Holanda, para onde foram Tykanori e Fernanda Nicácio.

É esta a manchete do Diário da Cidade no dia 10: “Saúde Mental de Santos é destaque internacional”. Junho, 26: o D.O. Urgente noticia a visita da cientista social Franca Ongario Basaglia, um dos destaques do cenário social e político italiano e participante da luta pela reforma sanitária e psiquiátrica. Ex-senadora pelo Partido Comunista Italiano, com atuação destaca em defesa dos direitos da mulher, ela veio convidada pela Fundação Oswaldo Cruz, USP e Conselho Nacional do Desenvolvimento Cientifico e tecnológico (CNPq). Franca não é senão a esposa do psiquiatra inovador e exemplar para Santos Franco Basaglia, fazendo várias conferências. Sua obra literária publicada no Brasil é “Mário Tommasini: vida e feitos de um democrata radical”, editada pela Editora Hucitec.

Novembro, 1996: no dia 12, o D.O. Urgente noticia a inauguração do NAPS da Zona Noroeste, no andar térreo da rua Agamenon Magalhães s/nº, Jardim Castelo, onde funcionava o Pronto Socorro que mudou para o recém-inaugurado Hospital da Zona Noroeste, denominado “Ernesto Che Guevara”. No dia 19 de dezembro de 1996, o D.O. Urgente diz que “Programa de Saúde Mental de Santos vai contar com apoio da Organização Mundial de Saúde, que o recomendou a 190 países como exemplo”. Autoridades cubanas elogiam o trabalho santista. Estiveram aqui Guilhermo Barrientos, diretor de Saúde mental de Cuba, e Jorge Rodriguez, seu equivalente em Havana. O jornal Diário Popular escreve, no dia 25 de dezembro de 1996, matéria em que noticia “Atendimento psiquiátrico santista é modelo mundial”, em reportagem de Marcus Fernandes que fala do aval recebido pelo diretor de Saúde Mental da Organização Mundial de Saúde Jorge Alberto Costa e Silva.

1997: A direita, agora no poder, faz a hora da revanche
Empossado o governo de direita que sucedera às administrações de Telma (1989 – 1992) e David (1993 – 1996), a intensa campanha que se fizera contra a intervenção no Anchieta precisava se traduzir concretamente e se inicia uma revanche a partir do Governo municipal e de seus aliados, negando o papel inovador, humanitário e de repercussão mundial que se promovera no Anchieta.“Comissão Especial de Vereadores vai apurar empreguismo no Anchieta”, diz a matéria de A Tribuna no dia 14 de março de 1997. No dia 13 havia sido instalada a CEV com os vereadores Marinaldo Mongon, Fausto Figueira, Thomas Sorderberg e Manoel Constantino, Mantovani Calejon, Martinho Leonardo e Sérgio Bonavides. É forte a pressão da imprensa contra o governo do sucessor de Telma que deixara a Prefeitura, já que em 1997 assumira a oposição malufista na Prefeitura.

No judiciário as acusações fracassariam, mas eram seguidamente estampadas na imprensa. No dia 11 de abril, o psicólogo Eustázio Pereira, que fora demitido por seus correligionários do Núcleo de Apoio ao Toxico-dependente, que funcionava no Anchieta, denuncia o “empreguismo” na época do PT e que continuava: “Tinha funcionário até de Moscou”, dizia, tentando aplicar a velha cantilena anticomunista, falando da enfermeira Mariana Ribeiro Prestes, filha do herói brasileiro que dirigiu o Partido Comunista.

Contratada pela Lei 650 de 1993 a 1995, recontratada em 26 de novembro e demitida em 25 de fevereiro, a profissional foi citada também na reportagem sobre o episódio no dia 4 de junho. Pereira reconheceu a necessidade de intervenção, mas “discordou de seus rumos”, dizia. O Anchieta está sem responsável desde o início da atua gestão”, se queixava o Secretário de Saúde Odílio Rodrigues em depoimento na Comissão Especial de Vereadores que apurava o “empreguismo” no Anchieta.

Tykanori agredido moralmente: “Ainda há juízes em Berlim?”
Em 19 de agosto de 1997 o Diário Oficial do Governo municipal que sucedera o PT mostra a revanche e publica edital abrindo inquérito administrativo contra Tykanori, por suposta destinação ilegal do dinheiro do Fundo Municipal de Saúde, aberto em função de um documento enviado em 21 de janeiro desse ano e sem a assinatura do ex-interventor.

Em 23 de agosto o Jornal da orla publica a matéria “Linchamento moral na PMS”, a propósito da acusação sobre o ex-interventor do Anchieta, objeto de duas acusações transformadas em inquéritos administrativos. O “crime” de Tykanori era ter concedido três gratificações que valeriam hoje dois mil reais, naquela época, “Para gente que trabalhava, e duro - e que ganhava muito menos do que os R$ 5.400,00 que o governo Mansur paga para seus assessores símbolo C-1”, explicou Tykanori. “O prefeito Beto Mansur – diz o texto -, não foi capaz de pronunciar uma só palavra sobre a situação de seu grande líder e padrinho político Paulo Maluf, atolado em mais dois escândalos, o dos precatórios e o ‘frangogate’, mas está sendo valente o suficiente para promover um linchamento moral de um cidadão de bem”. “Ainda há juízes em Berlim?”, termina o texto.

Desse fato resultou um “Ato de Desagravo” publicado no Jornal da Orla em 13 de setembro de 1997, com mais de 500 assinaturas com gente de todo o país em apoio ao psiquiatra Kynoshita. Escreve a publicação: “Cidade de Santos, maio de 1989: a intervenção na Casa de Saúde Anchieta rompe com a violência e a segregação das pessoas com transtornos mentais pelo modelo asilar. A data marca o início do projeto de saúde mental da secretaria de saúde reconhecido nacional e internacionalmente pelo atendimento público digno, humano e efetivo. A coordenação do Dr. Roberto Tykanori Kinoshita, decisiva nesse processo, foi pautada pela ética, garantia de igualdade de direitos e a recusa de exclusão social das pessoas com sofrimento psíquico”.

Continua o texto: “Agosto de 1997: o Diário Oficial de Santos expõe publicamente a figura do Dr. Tykanori e fere a sua integridade pessoal e profissional. Convidamos as pessoas que se identificam com os pressupostos da transformação da assistência psiquiátrica realizada em Santos e que discriminam o método de perseguição política e ideológica a manifestarem sua solidariedade na data de 16 de setembro, às 21 horas, no Bar do Torto, na avenida Siqueira Campos 800 – Embaré, Santos”. Foram médicos psiquiatras, psicólogos, vereadores, enfermeiros, terapeutas, economistas e zootecnistas, governadores de Estado, deputados estaduais e federais, advogados, engenheiros, dirigentes de empresas públicas e privadas e órgãos governamentais de todo o país a apoiar Tykanori.

1998: revanches não param
Março, 1998: A Tribuna noticia, no dia 25, que “A Câmara pretende ver a situação da Casa de Saúde Anchieta”. Comissão Especial de Vereadores que apura o “empreguismo” foi reativada e se reuniria na segunda-feira. A reportagem fala das ações judiciais em outubro de 1989 e julho de 1997, julgadas favoravelmente à Prefeitura em outubro de 1991 e outubro de 1997 pelo juiz Eleutério Dutra Filho. Em dezembro, dia 20: a noticia do jornal A Tribuna é que segundo informações do advogado Afonso Vitalli, que representa os herdeiros de um dos antigos sócios do Anchieta, antigos sócios minoritários entram a desapropriação indireta do Anchieta. É a ação 7379, junto ao Tribunal de Justiça.

1999: Telma responde acusações. Lula nos dez anos da intervenção. Ufa! Nova interpelação ameaça obrigar a devolução do prédio e cassar de Telma e David. A boa notícia: Maia revela que não quer reativar a “Casa dos Horrores”.
No dia 8 de abril de 1999, a notícia é a da decisão do Juiz da 2ª Vara de Fazendas Públicas de Santos, Márcio Kammer de Lima, obrigando a devolução do prédio – na ação impetrada pelo Promotor de Justiça João Carlos Meirelles Ortiz, que propõe a cassação política do ex-prefeitos Telma de Souza e David Capistrano, além das penas ao ex-secretário, o médico Cláudio Maierovich, e ao psiquiatra Roberto Tykanori - com perda da função pública que eventualmente exerçam e suspensão dos direitos políticos por dez anos, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio e seu ressarcimento, além de multa, em hipóteses não-decididas pelo Juiz.

O Magistrado cita as 522 contratações feitas durante o período e o gasto de 11 milhões. E a boa notícia é que Edmundo Maia, o ex-proprietário, garantiu que não havia a intenção de reativar a clínica psiquiátrica. A resposta do ex-prefeito David é que os argumentos do Promotor são “absurdos e monstruosos”, argumentando que Prefeitura não poderia ter posto fim ao Anchieta e no dia seguinte liberar todos os pacientes, sem gastar um tostão e sem executar um programa de reintegração como foi feito.

“Desafio a qualquer um indicar o nome de um parente meu, da Telma, do Maierovich ou do Tykanori que tenha sido contratado pelo Anchieta”, diz o ex-prefeito no Jornal da Orla no dia 18 de abril de 1999. David fala dos concursos para contratação de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. “Não fizemos absolutamente nada de irregular”, expõe David, classificando os argumentos como “tolices para impressionar pessoas desinformadas”. Ele diz que “tentam mostrar que o PT tem as mesmas práticas dos partidos de direita, do Mansur, do Maluf e do Pita. A força motriz desse processo é uma mentalidade retrógrada, reacionária e conservadora de algumas pessoas desta cidade que são contra iniciativas novas e progressistas na área de Saúde Mental“.

O ex-prefeito que sucedeu Telma de 1993 a 1996 disse ainda, em 1º de maio de 1999, no jornal Diário do Litoral, que o “interesse econômico” é elemento predominante nessa questão, citando as pressões contra o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado que tentava eliminar os manicômios. E também que o Promotor “não entende nada do assunto”, tendo classificado o ato como uma “malfadada intervenção”, que foi feita com base em relatório endossado pelo próprio ex-secretário de Saúde do prefeito de Santos Oswaldo Justo, então diretor local da Saúde estadual, “que não tem nenhuma afinidade conosco”.

E questiona em números: “Cinco psiquiatras bastavam para atender quase 550 pacientes que existiam lá?Antes de fazermos a intervenção – segue David - existiam apenas ‘meia’ assistente social ( trabalhava em meio-período), um psicólogo, também em meio-período, não havia farmacêutico, apenas uma cozinheira com duas auxiliares. Enquanto o relatório estadual exigia 28 enfermeiras, 116 auxiliares de enfermagem, havia apenas uma enfermeira e 3 auxiliares. Contratamos menos do que o relatório recomendava. Esta história que contratamos muita gente não é bem assim”, diz.

Ele explica que foram pagos medicamentos, comida, pessoal. Sobre a questão, Telma explica que a intervenção foi feita porque o Poder Público tem a obrigação de zelar pela cidadania e pela dignidade: “Não podíamos fechar os olhos para o que estava acontecendo no Anchieta, dentro dos macabros muros do hospício. Aliás, foi o que muitos fizeram durante anos, sendo cúmplices e coniventes com estas barbaridades”, coloca.

Para ela, as maiores testemunhas de que os profissionais contratados foram dignos e que obedeceram a critérios técnicos para implantar uma nova política de Saúde Mental são os seus usuários. O então secretário de Saúde Edmon Atik diz, na Câmara, durante a audiência realizada para debater a questão, que a intervenção “foi necessária”. Telma expõe que os R$ 11 milhões gastos representam cerca de R$ 110 mil mensais, “uma quantia pequena se comparada aos benefícios que trouxe à cidade”, lembrou - e que o programa foi aprovado pela opinião pública, que foi defendido por Lula no exterior “e não poderia ser criticado apenas aqui”.

Lula no Anchieta
“Prazo para desocupação é prorrogado”, diz a manchete do jornal A Tribuna em relação à determinação judicial para que a Prefeitura deixasse o Anchieta. No dia 3 de maio de 1999 Lula vem a Santos para o aniversário da intervenção no Anchieta, que teve um ato com performances teatrais, exposição de fotos, exibição de vídeos e debate sobre a luta antimanicomial na primeira cidade brasileira a desenvolver um revolucionário Programa de Saúde Mental, tornando-se referência nacional no processo de humanização do atendimento psiquiátrico. O Movimento “Saúde e Cidadania” desenvolveria a partir das 12 horas na praça Mauá, com a participação dos integrantes da rádio Tam-Tam, grupos de teatro amador e artistas plásticos, que simbolizarão o drama vivido pelos pacientes psiquiátricos nos tempos anteriores à intervenção no Anchieta.

A partir das 18 horas, a programação seguiria no “foyer” da faculdade de Economia, exposição de fotos e representação de m trecho da peça “Na sala de espera do Dr. Sigmund”, de Renato Di Renzo, que faz uma leitura poética da loucura, além de uma mesa-redonda sobre a luta antimanicomial em Santos, com a presença de Lula e dos deputados Paulo Delgado e Telma de Souza, além do deputado estadual Roberto Gouveia e da coordenadora de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Ana Pitta, do ex-prefeito Capistrano e de Tykanori, dos representantes da Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica Geraldo Peixoto e Geraldo Francisco – entre depoimentos dos usuários da Saúde Mental de Campinas, São Paulo, Santo André, Betim (MG) e de outras cidades.

A comemoração da primeira década da intervenção, em 3 de maio de 1999, reuniu vereadores, deputados, membros e representantes de partidos políticos e organizações não-governamentais. E mais ex-prefeitos, médicos e técnicos, enfim – junto os ex-internos, fazendo seus depoimentos, ocasião em que foram exibidos vídeos mostrando os episódios de 10 anos antes. O evento ocorreu no auditório do campus da Vila Mathias da Unisantos e teve a presença do então Presidente de Honra do PT, Lula. Diferentes entre si, cada um com um tempo de internação e experiências trágicas, provocando lágrimas com suas histórias. Como Alzira Pajara, mãe de Sandra, que narrou os tempos que implorava na porta por uma visita sempre negada, em que a filha estava no chiqueirinho, nua, sem comida nem água, só saia para os choques.

Torturas no Anchieta, descritas por quem sofreu
O “Jacaré”, como é apelidado José Gonçalo de Araújo (segundo ele mesmo, “porque comia muito”), relata o que viu e sentiu nos espancamentos, mutilações, mortes e suicídios no tempo que passou lá. Ele conta que o eletrochoque, que experimentou, dado como castigo, era aplicado indiscriminadamente, “colocavam um negócio na boca dele para não gritar e ligavam o elétrodo na cabeça para dar a descarga”. “Em seguida”, diz, “o cara apagava”.

“O pior tratamento era dado aos pacientes que ficavam nas celas-fortes, trancadas e sem contato com os funcionários, sem latrinas ou camas, sem ver a luz do sol. Sedado logo quando chegou, antes de qualquer consulta, fala que apenas soja era dada pelo orifício da cela-forte. David Araújo Barbosa, outro ex-interno, depois paciente do NAPS-II, disse que viver no Anchieta “era pior do que estar preso” – e que diversas vezes foi ajudar os pacientes, que acordavam depois do eletrochoque, com dores por todo o corpo, que chegavam cambaleando como bêbados e tinham que ser amparados para não caírem. Lula disse que o programa aplicado em Santos serviu como modelo em outros países, sendo defendido por ele mesmo em congressos em Roma e Madri, como reporta o jornal Diário do Litoral em 4 de maio de 1999.

“Eu te amo! Por favor, não me dá choque não! Era isso o que eu gritava para o Dr. Miguel, meu médico lá no Anchieta. Eu tinha dezessete anos e estava apaixonada por ele. Foi meu pai que decidiu me internar no Anchieta, onde tomei muito eletrochoque e fiquei em cela forte. Tomei choque grávida e fiz um voto a Deus que se meu filho nascesse perfeito eu daria a ele um nome bíblico. Nasceu Sarah, hoje com seis anos. Acho que a intervenção ajudou muito”. É Zulmira Maria Xavier, 27 anos, depois atendida pelo NAPS. A história de Nádia, de 33 anos, desde os 17 em instituições psiquiátricas, é exemplar. “Diziam que eu era “revoltada demais, como motivo da minha internação”, declara. “Quando cheguei no Anchieta, reclamava prá burro e tomava eletrochoque direto. Dói prá burro. A gente desmaia. Agora está melhor, parece que o pessoal entende melhor a gente. Eu continuo ‘reclamona’, mas não me dão mais porrada nem eletrochoque”.

Hoje ela ajuda as equipes no controle de funcionamento do hospital. Olha para as celas-fortes e conta que ficou um mês inteiro lá dentro, lúgubres lembranças do sofrimento imposto a seres humanos. Em 9 de maio, os frutos: “Projeto ajuda pacientes a viverem na sociedade”, quando A Tribuna reportava os programas iniciados sob o governo do PT e que seguiam reintegrando pacientes. É quando tem lugar a uma polêmica entre antigos setores opositores à intervenção, o médico Gilberto Elias Simão e o ex-prefeito Oswaldo Justo, que na campanha eleitoral de 1992 desferira duras críticas ao ato da prefeita Telma, para ele “uma invasão do bem privado”.

As internações são retomadas é a notícia em 6 de maio de 1999, anuncia A Tribuna, para os casos crônicos. Historiando a intervenção desde 1989, quando ela ocorreu, a matéria entrevista o médico Benedito Carlos Weltson, que expõe a carência de vagas na região. Também defensor das internações, o psiquiatra e chefe do NAPS III Sérgio Chigo diz que “os hospitais são necessários porque muitos transtornos são resultado de complicações como tumor, diabete e insuficiência renal, afirmando que o próprio Basaglia defendia o uso de enfermarias para estes casos. Respondendo aos defensores da internação e críticos da extinção do hospital, o ex-secretário de Saúde Cláudio Maierovich declarou que “as internações só ocorriam em último caso” e que o NAPS as fazia limitadas em 5 dias. Aproveito para dizer que a qualidade do atendimento havia decaído com limitações ao livre acesso dos NAPS durante a noite, apenas com pré-agendamento, onde faltam alimentos e 3 pacientes já haviam se suicidado.

A polêmica dos opositores
“A Intervenção poderia ter sido evitada”, declara o Dr. Gilberto Simão Elias ao jornal A Tribuna em 6 de maio de 1999. Para ele, se tivesse sido seguida a orientação do Ministério da Saúde, “pois a cidade gerenciava o setor no sistema semi-pleno do SUS e poderia romper o contrato, esgotando a capacidade do Hospital de continuar a prestar serviços”, disse Gilberto. Ele atribui a ausência da ação à uma falta de “visão política” do então dirigente do DIR-19, o médico e ex-secretário de saúde de Justo e seu indicado, Paulo Ricardo Assis, que não tomou qualquer atitude e a Prefeitura interveio.

Para Elias, em 1989 a internação psiquiátrica “já entrava em desuso” como alternativa definitiva, concluindo que “acabaram tirando um monstro e colocando outro”, disse. No dia 9, a resposta enfurecida do ex-prefeito de 1984 a 1988 é reportada em A Tribuna: “Oswaldo Justo faz críticas à opinião de Elias”, o denominando “deselegante e covarde” por atacar alguém “que já morreu”. Como resposta, Elias diz que em nenhum momento atacou a honra de Assis e que se fosse Assim, ninguém poderia criticar Getúlio Vargas – o ex-ditador e presidente da República, 1930 a 1945 e 1950 a 1954.

O fim da intervenção
No dia 28 de maio decreto põe fim à intervenção no Anchieta, revogando os Decretos 863 de 3 de maio de 1989 e 1021, de 6 de dezembro desse ano, quando o secretário era o médico Edmon Atik. Em junho, no dia 10, a notícia ainda é que os donos do Anchieta movem ação indenizatória contra a Prefeitura. Até agosto de 1999, dez anos e meio da intervenção no Anchieta, foram internadas nos manicômios do país para atendimentos psiquiátricos 276 mil pessoas, em uma média de 34 mil internações por mês, segundo informações do SUS. Nessa época, há uma tendência à unanimidade nos partidários de uma reforma psiquiátrica, em tempos que tramitava há dez anos o projeto de lei do deputado do PT mineiro Paulo Delgado nessa direção.

Surgiram depois diversas propostas e ministério da Saúde já criara uma comissão para debater o tema como mudar. Vigora ainda a lei de 1934, que permite o seqüestro de qualquer pessoa que tenha sido diagnosticada como portadora de transtorno mental, uma medida cada vez mais condenada nos meios médicos. No dia 16 de agosto de 1999, a chamada da reportagem de A Tribuna é que o juiz da 2ª Vara da Fazenda, Márcio Kammer de Lima, decidiu que a Prefeitura não está obrigada a indenizar os donos do Anchieta. “Caso da (sic) Anchieta gera ação indenizatória”, insiste A Tribuna. É a chamada da matéria do dia 27 de setembro em A Tribuna, que anunciava que os advogados dos herdeiros dos proprietários do Anchieta iriam recorrer ao Tribunal de Justiça, à segunda instância, para conseguir a indenização.

2000: a Caravana Nacional dos Direitos Humanos e a realidade manicomial brasileira. A intervenção é apenas um “incômodo”.
Continua A Tribuna a destacar a situação do prédio do Anchieta abandonado, que se tornara um “foco de problemas”, como diz a matéria do dia 21 de fevereiro, em editorial. A matéria inicia com uma frase característica da verdadeira intenção a notícia que é criar antagonismo em relação ao ato humanitário de repercussão nacional e mundial, mas que aqui sofreu forte oposição, muitas vezes dissimulada, dos setores dominantes: “A intervenção na Casa de Saúde Anchieta em 1989 e seu posterior fechamento acabaram gerando um imenso transtorno para os moradores da rua São Paulo e adjacências” - como se a questão de restringisse ao bairro ou à rua e não tivesse um significado institucional. A notícia é repetida no dia 18 de fevereiro, como fora no dia 21 e 25 de outubro de 1999. A imprensa reporta as ações do Governo federal e de diversas entidades na Caravana Nacional dos Direitos Humanos, inspecionando manicômios.

Em julho de 2000, a matéria do jornal Entrevista, da faculdade de Comunicação de Santos, traz a manchete “Trancar não é tratar” – com o subtítulo “Resgate da dignidade humana: esse fator levou os pacientes o convívio em sociedade”, na matéria de André Ferreira e Débora Encarnato. Fala da “antena paranóica”, da “Rádio Pancada” e da “Fabricação da Loucura”, termos da rádio Tam-Tam, historiando a atitude da intervenção e o projeto Tam-Tam e trazendo um desenho da “TV Pinel” com um boneco plantando bananeira e uma frase “Por uma sociedade sem manicômios”. Uma foto da porta do Anchieta e seu letreiro, dizendo que o SENAPS – Seção de Apoio Psico-social, da Prefeitura, que assumiu o lugar do Tam-Tam, é a versão “careta”.

Uma foto de Di Renzo, outra de uma camiseta produzida e uma descrição da trajetória heróica.“Pacientes fazem arte” é a chamada da reportagem do Diário Oficial em 1º de dezembro de 2000, mostrando os frutos de um trabalho iniciado com a aplicação de terapias alternativas aos pacientes antes trancafiados, sedados e submetidos a eletrochoques. A secção de reabilitação psico-social da Prefeitura, diz a matéria, está investindo cada vez mais na melhora de seus 200 usuários com trabalhos manuais, dizendo que isto “os traz de volta ao mundo” e amplia seus conhecimentos, elevando sua auto-estima psicológica no trabalho de psicólogos, terapeutas e pacientes que avaliam e esclarecem suas dúvidas. O caminho estava certo.

2001 : A vitória antimanicomial no país com a lei Paulo Delgado
Em 6 de abril de 2001, é aprovada a Lei de Reforma Psiquiátrica no Brasil, a Lei 10.216. Em 30 de maio a notícia é da anulação da sentença de primeira instância do Anchieta em favor da Prefeitura, no Processo 7379, que corre na 2ª Vara da fazenda desde 1997. Em 30 de outubro de 2001 A Tribuna anuncia a I Conferência Regional de Saúde Mental, dias 30 e 31 na Associação dos Médicos, preparando a Conferência estadual. Ação contra a intervenção: Ministério Público pede a improcedência, é a notícia no dia 13 de dezembro em A Tribuna. Promotor diz não ter encontrado provas para responsabilizar os ex-prefeitos Telma de Souza e David Capistrano, o então secretário Cláudio Maierovich Peçanha Henriques nem o psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, no processo 14.776/99 que transcorre na 2ª Vara da Fazenda com o juiz Márcio Kammer de Lima.

“Não há imoralidade ou legalidade”, disse Clever Rodolfo Vasconcelos, o promotor. “No Brasil – diz Paulo Delgado à revista “Ligação”, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo -, os efeitos danosos da política de privatização da saúde nos anos 60 e 70 incidiram violentamente sobre a Saúde Mental, criando um parque manicomial de quase 100 mil leitos remunerados pelo setor público, além de cerca de 20 mil leitos estatais. A interrupção de crescimento desses leitos é imperativa para inicio efetivo de uma nova política, mais competente, eficaz, ética, de atendimento aos pacientes com distúrbios mentais”.

2002: prossegue polêmica judicial
“Anúncio de mudança do NAPS preocupa”, é a notícia de 29 de janeiro de 2002. A decisão da Prefeitura de demolir as instalações do NAPS 1 na Zona Noroeste e transferir o atendimento para um imóvel alugado causou reação e um abaixo-assinado contra a medida. Em 3 de abril: “Justiça definirá valor do Anchieta”, diz o titulo da matéria de A Tribuna. Prédio já havia sido devolvido em 1999.

2003 : Justiça conclui que as ações contra intervenção são improcedentes. Lula destaca ação santista
Em maio de 2003 seria a audiência do processo contra Austregésilo Carrano, o autor do livro que resultou no filme “O bicho de 7 cabeças” que denunciou o sistema psiquiátrico no Paraná. A batalha continua, no espírito de 1989. Em 30 de maio A Tribuna noticia que “Imóvel passou a servir de moradia”, falando do prédio do Anchieta na rua São Paulo, trazendo o depoimento do advogado sobre o processo de indenização iniciado em 1997. no dia 9 de julho: “Ação contra Telma julgada improcedente”. No Diário do Litoral, a notícia: “Lula destaca a experiência santista”. Em 11 de julho, A Tribuna estampa a notícia de que ”Hospital ainda tem outro processo”, quando o advogado João Paulo Guimarães Silveira, defendendo a família dos proprietários do Anchieta, diz que o caso “está em fase de perícia”. A matéria diz ainda do Processo 14.776 / 99, que acusava Telma e David e foi julgado improcedente.

Em 3 de outubro de 2003, o autor do livro “O canto dos malditos”, que deu base ao filme, venceu o processo movido pelos denunciados que o prenderam e maltrataram no hospício, no maior sucesso de premiações do país. Sua sentença foi proferida a 15 de outubro. Era uma vitória do Movimento Antimanicomial brasileiro. Em maio de 2003 o presidente Lula lança o programa “De volta para casa”, o Projeto de Lei que cria o auxilio reabilitação psico-social” para esvaziar os manicômios. Era a vitória da cidade que plantou a idéia de uma nova sociedade. O Jornal do Brasil de 29 de maio de 2003, com a chamada “Governo lança política para a Saúde Mental” escreve que segundo o Ministério da Saúde, um terço dos 55 mil internados em hospitais psiquiátricos no Brasil não necessitam de internação, cerca de 18 mil pacientes. Na verdade, 100% dos pacientes não necessitam de grades, mas de tratamento.

2004 : Iniciativa santista indica ação nacional para extinção dos manicômios. O balanço da blitz nos manicômios brasileiros.
“Ministério da Saúde quer reduzir número de leitos psiquiátricos no país”, ampliando a rede extra-hospitalar, é a notícia de A Tribuna, mostrando as razões da atitude de 15 anos, agora disseminada por todo o país e cientificamente confirmada e aplicada: a extinção dos manicômios é uma meta. “Dois pacientes por dia são levados para Itapira”, diz a médica Carolina Ozawa, da SEHIG, no Diário Oficial também em 6 de fevereiro de 2004. A assessoria de imprensa informa que até 2002 passaram mais de 16 mil pacientes pelos NAPS. Nos dias 18, 19 de fevereiro e 12 de março é a notícia que o Lar Abrigo mudou-se para a praça Washington, consolidando a criação do governo democrático-popular na intervenção.

Dos 18 pacientes, 13 são remanescentes do Anchieta, que agora vão poder passear a beira-mar, que tem um extraordinário poder de recuperação. Em 4 de março de 2004 A Tribuna escreve que Dulce Edie dos Santos e Geraldo Peixoto, antigo diretor da Fundação Franco Rottelli, estão denunciando o CAPS Saquaré, em São Vicente, que tem 1.600 pessoas cadastradas e está em condições “precaríssimas”. A Tribuna publica no dia 19 que os usuários do programa de Saúde Mental foram levados a um passeio no Centro Histórico, quando 50 pacientes repetiram a experiência inédita de 1989, tão duramente contestada, mas levada adiante. Maio, 21, 26 e 28 de 2004: “Saúde Mental, balé emociona pacientes”. São as comemorações do Mês da Luta Antimanicomial, com coreografia de Renata Pacheco no espetáculo “O Jardim Encantado”.

O que foi motivo de batalha é agora é de comemoração, em promoção da secretaria de Saúde do governo municipal. No dia 18, o pequeno editorial do jornal Folha de São Paulo escreve sobre o enterramento definitivo das teses que obrigavam a internação dos pacientes. Apesar dos avanços da psicofarmocologia não serem absolutos, escreve o texto, “grande parte dos pacientes psiquiátricos não precisa passar a vida em um leito de manicômio”.

Era uma expressão nacional da imprensa, que valorizava o atendimento ambulatorial, a volta para as famílias, as residências terapêuticas, defendendo estruturas mais humanas de atendimento. É o enterro dos defensores do passado. Mas o texto, apesar de lembrar que o projeto do Governo federal contempla estes aspectos, cobra sua plenitude e lamenta o adiamento por 120 dias das exigências para a redução dos leitos psiquiátricos nos 25 Estados. É a saudável cobrança de um futuro melhor para tantos que nasceu aqui, sem os exemplos de uma sociedade cruel que transporta seus valores para dentro do manicômio. Em setembro de 2004, o psiquiatra Domingos Stamato assumiu a psiquiatria da Beneficência Portuguesa em Santos, no rumo de novos tempos.

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A CARAVANA NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
uma visão dos manicômios no Brasil de hoje

Realizada pela Comissão Nacional dos Direitos Humanos em 2000, a Caravana Nacional dos Direitos Humanos percorreu, levando deputados e médicos por 12 dias, comandados pelo Coordenador Nacional de Saúde Mental Pedro Delgado, junto com os deputados Paulo Delgado e Marcos Rolim e profissionais de Saúde Mental, os principais manicômios brasileiros, baseados nas denúncias recebidas. O relatório apresentado é uma obra-prima que descreve a tragédia a que (ainda) estão submetidos milhares de cidadãos brasileiros em diversos Estados. Por exemplo, em Goiânia (Goiás), em que a prática de neurocirurgias era unanimidade, como na Clínica Bom Jesus – em que os eletrochoques eram práticas usuais, junto com repressão e excesso de remédios.

Era também a realidade da Cínica Isabela, naquela cidade. Longas internações, pacientes cronificados. Em Manaus, Amazonas, era a realidade do Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. O Manicômio Judiciário de Manaus, apesar de ostentar a palavra “tratamento” no titulo, não o oferecia, era a realidade do Centro de Custódia e Tratamento Psiquiátrico naquela capital do Amazonas, com pacientes em condições de miséria e maus-tratos com um único psicólogo, o diretor. A situação foi classificada como “gravíssima”.

Em Pernambuco, 4 instituições foram visitadas. Superlotada, no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Itamaracá e os pacientes não tem qualquer tratamento. Foi sugerida interdição imediata, face às condições de precariedade humana que se encontravam os 336 internos. No município de Paulista, o Hospital Psiquiátrico do Paulista S/A, uma clínica privada, conveniada com o SUS, foi observada a ausência de motivos para internação da maioria dos que estavam ali, “empurrados” pela miséria. Um dos mais antigos hospitais deste Estado é o Ulysses Pernambucano, localizado no bairro nobre da Tamarineira, com 208 pacientes – mais abandono.

Também em Pernambuco o Hospital Alberto Maia, em Camaragibe, com mil leitos, 99% sustentados pelo SUS. A visão foi positiva, apesar das deficiências. Na Bahia, o Hospital Colônia Lopes Rodrigues, em Feira de Santana com mais de mil pacientes sem projetos de ressocialização. A Clínica São Paulo foi chamada, no relatório, de “O calabouço de Salvador”, com instalações terríveis e ausência de qualquer serviço aos pacientes. No Rio de Janeiro, foi vistoriada a Clinica de Amendoeiras, em Jacarepaguá, com 140 pacientes, chamada a primeira boa surpresa da Caravana.

Foi ainda visitada no RJ a Clínica da Gávea, com 318 internos, onde foram ouvidas queixas de maus-tratos, ausência de terapias, más instalações e abandono. “Um manicômio típico, em síntese”, diz o relatório. E em Minas Gerais, na Clinica Pinel, com 240 internos e tentativas de impedir a entrada dos inspetores, como em outros hospitais. Maus-tratos. Na Clinica Serra Verde, também em Minas Gerais, em que maus-tratos se misturam às más condições de vida dos internos e um comando autoritário da instituição. Já na Clínica da Mantiqueira, em Barbacena, com 229 leitos, 218 SUS, existia um trabalho de ressocialização. Também em Barbacena, a Clinica Xavier, com 120 leitos, pacientes cronificados em longas internações. E em São Paulo o Juquery, “a realidade do abandono”, classifica o relatório, situado em Franco da Rocha – com 1.500 internos com intensa repressão, pacientes confinados.

No Manicômio Judiciário de Barbacena, que aloja 621 pessoas em 400 vagas, a situação só seria pior se não houvesse um local para “alta progressiva” dos internos. E em Taubaté, outro Manicômio Judiciário, com 404 internos confinados em celas fechadas. Os presos, como em muitos destes hospícios, sofrem a pena acrescida e não estipulada em lei que lhes impõe a negação da prática da sexualidade, com seus resultados conhecidos. “Fim da tortura humana”, gritava um paciente à saída dos inspetores.

Diante da barbárie existente ainda 11 anos após o Anchieta, em 2000, as sugestões encaminhadas por este relatório ao Ministério da Saúde foram cumpridas em parte: a Reforma Psiquiátrica foi aprovada no ano seguinte, como pediam os subscritores; a III Conferência de Saúde Mental está sendo convocada; a auditoria nos hospícios é uma meta. O desenvolvimento de políticas que desestimulem as internações psiquiátricas foi cumprida com o programa “De volta para casa”, assim como a atenção às famílias dos pacientes.

Hipermedicalização e eletrochoque, a violência
O fortalecimento dos serviços alternativos (CAPS e NAPS) e um levantamento sobre o consumo de medicamentos, para evitar os abusos, foram medidas sugeridas. A regulamentação e a fiscalização rigorosa do eletrochoque, restringindo-a. Lares abrigados, fim do preconceito, campanhas. Separação dos dependentes químicos, proibição das neurocirurgias, imposição de normas para concepção prisional e asilar sob pena de descredenciamento. Que as clinicas visitadas sejam as primeiras a serem vistoriadas, com seu possível rebaixamento. A interdição imediata da Clinica São Paulo. Que o Ministério da Saúde, em ação conjunta com os estados, elabore um diagnóstico preciso sobre a realidade dos manicômios Judiciários brasileiros, foram as principais reivindicações da Caravana.

Junho, 2000, dia 30: a Folha de São Paulo mostra reportagem no “Cotidiano” que, segundo relatórios de deputados entregue ao ministro José Serra, pelo menos 6.366 pessoas passam por maus-tratos: “Câmara aponta crise em manicômios”. Em reportagem de Soraya Agége, a matéria fala em “cirurgias cerebrais, eletrochoque, maus-tratos, isolamentos em locais insalubres ou abusos medicamentosos são os “tratamentos” (grifo original) que 6.366 pessoas estão sendo submetidas em pelo menos 19 hospitais públicos, particulares e judiciários, existentes em sete Estados brasileiros” - em informações levantadas nos últimos dez dias pela Comissão de Direitos Humanos a Câmara dos Deputados. Foi o resultado de uma blitze feita em 20 dos 100 hospital denunciados pelas entidades civis nas duas últimas semanas.

Gastos com a indústria psiquiátrica
Consumindo 11% das verbas do SUS, a segunda depois dos partos, fora gastos R$ 467 milhões com estas internações em 1999, 71.800 pessoas em 260 hospitais psiquiátricos que são, para o deputado Marcos Rolim, “campos de concentração”, “uma década depois do país iniciar diversos projetos para humanização e extinção dos manicômios criados para funcionar como depósito de pessoas indesejáveis no final do século passado (XIX)”. Os deputados pediram a interdição de um hospital em Salvador (Clinica São Paulo) e de Itamaracá, em Pernambuco (Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Itamaracá). A aplicação de neurocirurgias, com efeito semelhante às lobotomias, mais a aplicação de eletrochoque, revoltou os deputados.

Na clinica Bom Jesus de Goiânia foram verificados casos de 5 neurocirurgias em um ano. Um doente teve alta mas, como não foi retirado pelos familiares, foi aplicada nele uma neurocirurgia, o que destaca a falta de parâmetros para essa violência. O paciente passou a lamber o chão, completamente idiotizado, como resultado que já apontara há 60 anos a psiquiatra Nise da Silveira. O Juquery ainda abriga 1.400 internos. Desses, 125 vivem entre a sujeira e quartos com 30 colegas e disputam 1 psiquiatra e 11 funcionários por turno.

Era o quadro nacional em que 12,5 mil doentes crônicos brasileiros foi abandonada pela família e ficou debilitada por continuas aplicações de eletrochoque, revela a reportagem da Folha. Sem obrigação de manter prontuários clínicos, o texto diz da proibição das celas-fortes de 92 93, tendo os hospitais caído de 313 para 260 e os leitos de 86 para 62 mil, tendo sido liberados R$ 33,7 milhões para compra de remédios para o setor – para alegria dos empresários da loucura.

Nova caravana em 2004
No dia 16 de agosto de 2004, os presidentes da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, José Edísio Simões Couto e do Conselho Federal de Psicologia, Marcus Vinícius de Oliveira, apresentam na sede da OAB o balanço da blitz efetuada em 38 hospitais psiquiátricos de 16 estados e Distrito federal. Para Edísio, “saúde no Brasil é coisa de louco”, diz no “espaço Vital”, um saite de notícias jurídicas que fala de pacientes que vivem nus, doentes mentais tratados como presidiários.

Hospitais sem plantão médico nos fins-de-semana, falta de terapeutas ocupacionais e de medicamentos indispensáveis ao tratamento de doenças mentais. Atendimento apenas medicamentoso no Hospital Espírita no Rio Grande do Sul e no Instituto Psiquiátrico Forense, também em Porto Alegre, visitado em 22 de julho, foi definido como “local que une as piores características de um presídio com as piores de um manicômio – precariedade, sujeira, falta de higiene, lixo, insetos, fezes pelas paredes. Infiltração e umidade, falta de pessoal para cuidar de seus 540 internos com Medidas de Segurança. Pacientes crônicos estão lá há mais de 20 anos. Celas fortes em pleno funcionamento.

A inspeção nacional de unidades psiquiátricas, em prol dos direitos humanos
Realizada em 16 estados brasileiros e no Distrito Federal em 22 de julho de 2004, esta ação do Ministério da saúde, por meio do Programa Nacional de Avaliação dos Hospitais Psiquiátricos, criado em 2003, começou a mexer em uma antiga “caixa-preta”, já tendo avaliado 168 hospitais psiquiátricos dos mais de 200 existentes. Apenas 15% deles prestam atendimento adequado. Por conta disso, dez hospitais foram fechados, revelando a caminhada da ação pelo resgate dos cidadãos acometidos de transtornos mentais no país. Preocupação de poucos - a Inverso, uma ONG do setor, cita Delgado e Gabeira como alguns dos únicos deputados “que se preocupam com a questão” -, doentes mentais são considerados estorvo, uma aberração da espécie humana que deve ser largado em um hospital. E o Brasil é referência no setor desde Nise da Silveira nos anos 30. É o que diz o “Jornal da Comunidade” no Distrito federal, noticiando a blitz nos hospitais psiquiátricos.

“São milhares de brasileiros presos com o pretexto de serem tratados. Muitos estão há anos aguardando a liberdade”, escreve a abertura do Relatório de Inspeção do Ministério da Saúde. “Outros encontram a morte ali”. “Se a privação de liberdade não pode ser entendida como método de tratamento, segue o documento, e, portanto, estas instituições já deveriam ter tido seu fim anunciado, nada justifica a degradação e a violação dos Direitos Humanos que continuam a acontecer nos hospitais psiquiátricos. Infelizmente, o desrespeito ao ser humano tem sido mais uma regra do que uma exceção a grandeza desta iniciativa do Conselho Federal de Psicologia e da Ordem dos Advogados do Brasil: a Inspeção Nacional de Unidades Psiquiátricas em prol dos Direitos Humanos vem, mais uma vez, romper com este pacto que os hospícios tentam impor à sociedade. Parabéns a todos os que participaram desta inspeção. Brasil sem manicômios, já! – Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial”.

Pelo Conselho Federal de Psicologia participaram da organização dessa inspeção Marcus Vinicius de Oliveira Silva, Ana Luiz de Souza Castro e Yvone Magalhães Duarte e pela Ordem dos Advogados do Brasil / Comissão de Direitos Humanos, José Edísio Simões Couto. Em São Paulo, na Clínica Psiquiátrica Charcot, visitada em 22 de julho de 2004, com 200 leitos, foram encontradas amarras, miséria e ociosidade, pacientes desnutridos, tuberculosos e outras doenças estão presentes. Sem projetos de assistência aos familiares, sem atividades ocupacionais, estrutura física e higiene precárias, impregnação medicamentosa na maioria, magros e débeis, mal-vestidos e de roupas rasgadas com pés descalços, sem agasalhos e desdentada. O quadro é caótico.

Por Ela, Procuradora da República, a responsabilidade do Estado
A sub-procuradora da República Ela Viecko Volkmer de Castilho, da Procuradoria geral dos Direitos do Cidadão, na apresentação do Relatório de Inspeção, lembra que “temos assistido à deterioração de um sistema que nunca foi perfeito, sobretudo pelo fato da sociedade preferir esconder o problema a enfrentá-lo. Para ela, é uma chaga aberta esta questão, que “ofende os princípios humanistas mais comezinhos. Trata-se de uma parcela da população que muitas vezes é abandonada a própria sorte por suas famílias. Todavia, esse fato não deveria nos assombrar, afinal vivemos em uma sociedade em cuja base reina a crise nas relações familiares, a privação da educação e a ignorância de noções básicas de cidadania; seria duro não reconhecer o pragmatismo duro que rege as relações privadas entre pessoas cuja única preocupação é o próximo prato de comida”, escreve.

“O Estado que mantém esta situação viola a lei”, diz Ela. Os dados “rechaçam nossas ilusões quanto a eficiência do nosso o sistema democrático”, reafirma. Citando um professor estrangeiro “importante”, destaca, lembra que a democracia é uma forma de estado cuja ética política não admite a exclusão. Legitima-se – ressalta – a partir do modo pelo qual ela trata as pessoas em seu território. “Devemos apreciar este Relatório, segue Ela, para dizer com todas as letras que “não temos feito nosso trabalho. Portanto, completa, este é o momento do Estado, por meio de seus agentes com poder de decisão, responder à demanda que se apresenta, não porque parcelas significativas do povo a apresentem, afinal estamos falando de pessoas sem voz, mas com o objetivo de concretizar o projeto de nação solidária que a Constituição de 1988 nos oferece”, concluiu.

Achar que a luta está pronta e acabada é um erro e se defronta, como vimos, como sempre em todas as revoluções, sobre se a conquista está efetivada ou ainda não - apesar de todas as vitórias. Ainda em 2004, 15 anos depois do Anchieta, o relatório da Caravana de Direitos Humanos mostra que esta realidade não foi modificada. a Casa de Saúde Doutor Eiras, em Pacambi, no Rio de Janeiro, está sob intervenção municipal desde o dia 18 de junho de 2004. Em Recife, uma auditoria em hospitais psiquiátricos denunciou os horrores que ainda existem, apesar de tantas normas legais. Em Santa Catarina, um francês incompreendido e preso entre pacientes com HIV, 520 leitos. É o hospital psiquiátrico de Santa Catarina, em que um paciente morreu afogado recentemente tentando fugir. Mais dez intervenções são anunciadas em agosto, em nova inspeção do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Psicologia.

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AS POLÍTICAS DO PROGRAMA DE SAÚDE
MENTAL DO GOVERNO LULA, NO RITMO DE SANTOS

Em 2003, o Ministério da Saúde, através da Coordenação de Saúde Mental, integrante da Secretaria de Atenção à saúde – Departamento de Ações Programáticas Estratégicas gastou quase quinze milhões de reais até agosto desse ano em medicamentos. Pouco mais de vinte milhões em produção ambulatorial dos CAPS, até junho, quase duzentos e trinta milhões em produção hospitalar, até julho. Tratamento em hospital-dia, 8.5 milhões de reais e quase 13 milhões até agosto no incentivo para consolidação da rede extra-hospitalar para municípios e estados com rede CAPS.

Em convênios para capacitação, parte do programa Permanente de Capacitação para Reforma Psiquiátrica, até agosto foram gastos quase 1,5 milhão. Foram os recursos gastos em Saúde Mental, que tem caráter prioritário. Em 1996, os leitos psiquiátricos eram 72.514, em 1997 71.041, 70.423 em 1998, 66.393 em 1999, 60.868 em 2000, 56.755 em 2001, menos mil em 2002 e baixando para 53.180 em 2003, até setembro. A ordem é reduzir e extinguir os manicômios e está em pleno curso o programa “De volta para casa”, com incentivos para o retorno dos pacientes ao convívio dos familiares, pondo fim a séculos de segregação. Na ordem inversa, os CAPS, cresceram, de 154 em 1996 para 176 em 1997, 231 em 1998 e 237 em 1999, 253 em 2000 e 295 em 2001, saltando para 424 em 2002 e 448 em 2003. Existem cerca de 500 serviço substitutivos no país, mas ainda restam 50 mil leitos psiquiátricos.

“Toda ideologia é relativa. Absolutos são os tormentos que
infligimos uns aos outros”.
(Guinsbourg, citação presente no Relatório de Inspeção)







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OS ENFRENTAMENTOS PARA A EVOLUÇÃO:
AS AÇÕES JUDICIAIS CONTRA A INTERVENÇÃO
Sérvulo e Thoreau

Entre as ações judiciais que foram impetradas visando obstruir o caminho revolucionário que Santos havia ingressado na gestão do PT e da democracia popular, no período que vai dos Decretos 863, de 3 de maio de 1989, ao Decreto 1.021, de 6 de dezembro de 1989 e depois, normatizando a intervenção, viriam medidas jurídicas contestando a intervenção. No dia 5 de maio, o líder do PT na Câmara, vereador Altino Dantas, pede uma Comissão Especial de Vereadores para debater a questão da intervenção. O vereador e médico Geraldo Helmeister seria o relator.

Logo no dia 10 de maio, o juiz Ricardo Almeida Dias, da 2ª Vara da Fazenda, que ficaria famoso por suas decisões contra o Governo municipal do PT, concedeu liminar a uma ação que dera entrada nos primeiros dias da intervenção contestando o poder da Prefeitura em intervir no Anchieta, privilegiando a “liberdade da propriedade privada”. Em meio a polvorosa que havia acompanhado o ato político, no dia 11 a Prefeitura entra com recurso e no dia 17 o Tribunal de Justiça cassa a liminar com uma declaração grandiloqüente, de que seria um “atraso inadmissível a volta do Anchieta para seus antigos donos”.

No dia 2 de junho dá entrada nova petição anexada à ação que visava sustar a intervenção e, no dia 7, um Decreto municipal faz a desapropriação do Anchieta. No dia 23 novamente o juiz Ricardo Almeida Dias quis suspender a intervenção, garantida novamente em recurso ao Tribunal de Justiça pelo seu presidente Nereu César de Moraes, o mesmo que havia concedido a segurança em favor da Prefeitura no dia 17.

Em janeiro de 1990, como foi exposto, os donos entram com uma ação (Processo 7379) de desapropriação indireta, exigindo indenização da Prefeitura. Antes, No dia 26 de junho de 1991, o ex-diretor do Anchieta Edmundo Maia fez acusações de “erotismo” entre os pacientes e, no dia 4 de junho, o psicólogo Eustázio Pereira acusa o “empreguismo”. O advogado Nobel Soares de Oliveira entra com pedido no Ministério Público para abertura de um Inquérito Civil Público em dezembro de 1991, apontando irregularidades na gestão do Hospital, entre elas o uso de “erotismo” entre os pacientes – que repercute, como senha da oposição às mudanças que se operavam.

A Câmara abre uma Comissão Especial de Vereadores, a pedido do vereador Carlos Mantovani Calejon, no dia 11 de dezembro - integrada por ele e por parlamentares como Marinaldo Mongon, Fausto Lopes e Fausto Figueira, para analisar as denúncias do psicólogo Eustázio Pereira de “empreguismo” no Anchieta durante a gestão do PT, instalada no dia 13 de março. No dia 20 de agosto, o deputado Koyú Iha acusa e é contestado. No dia 13, é instalada outra Comissão Especial de Vereadores na Câmara de Santos para debater o Anchieta, pedida pelo vereador Sérgio Bonavides e instalada no dia 13 de março.

Agosto, 1997: o Governo municipal faz publicar uma Portaria no sábado, dia 18, no Diário Oficial, instaurando inquérito administrativo contra o ex-interventor do Anchieta, Roberto Tykanori Kinoshita, acionando para isso a Cominq / Comissão Permanente de Inquéritos e Sindicâncias, sob a alegação de que ele teria infringido a Lei 4.623 / 84, Artigo 234, na parte relativa a crimes contra a boa ordem e a Administração Pública. A então presidente da 2ª Câmara da Cominq, Ana Carla Ruiz Jorge, revelou que o processo para apurar a destinação ilegal do dinheiro do Fundo Municipal de Saúde teve início a partir do envio de um documento da Casa de Saúde Anchieta ao então secretário de Higiene e Saúde, Odílio Rodrigues Filho, em 21 de janeiro daquele ano. O documento tinha o carimbo da instituição mas não identificava de quem era assinatura. O episódio terminou com a conclusão pela inocência de Tykanori.

Em 25 de março de 1998 a Comissão Especial de Vereadores para investigar o Anchieta é reativada. Em 9 de julho de 1999, a ação 14.776 pede a punição de Telma, David, Maierovich e Tykanori pelo gasto de 11 milhões e contratação de 522 funcionários, é julgada improcedente pelo Ministério Público no dia 13 de dezembro de 1999. E em 8 de abril de 1999 liminar do juiz Márcio Kammer de Lima obriga a desocupação do imóvel da rua São Paulo. Em 27 de maio o prefeito baixa Decreto determinando o fim da intervenção e em 10 de maio a imprensa fala na Ação Indenizatória contra a Prefeitura movida pelos antigos donos do Anchieta, que o juiz da 2ª Vara da fazenda decide, em 16 de agosto, pela improcedência. A sentença é anulada nessa decisão de primeira instância em 30 de maio de 2001.

O depoimento do ex-vice-prefeito e secretário de Assuntos Jurídicos Sérgio Sérvulo da Cunha
Vice-prefeito do governo municipal na época da intervenção e secretário de Assuntos Jurídicos até abril de 1990, quando foi candidato a deputado federal, advogado de expressão nacional e professor de Direito Constitucional, autor de diversos livros, Sérgio Sérvulo da Cunha – um quadro antigo da militância social santista - conta que “foi salvo” por uma medida judicial dos antigos donos do Anchieta: “era preciso, conta, me pediam no Governo, prorrogar a Intervenção – e eu não tinha fundamentação jurídica”, disse.

“Então, nesse momento, eles entraram com uma ‘desapropriação indireta’, em janeiro de 1990, contra a Prefeitura, pedindo a indenização respectiva - ou seja, entregando a posse e a propriedade para a nós. Era o que eu precisava”. “Não havia precedente de intervenção em hospital”, lembra Sérvulo, atitude que a exemplo de outras inovaram no cenário político e jurídico do país, na mola-mestra da mudança e da correção das práticas levadas pelos setores dominantes até então. “Pesquisei e encontrei um caso único”, salientou, explicando que era apenas semelhante ao levado à efeito no Anchieta. E destaca que “se ela, Telma, não tivesse feito mais nada, apenas isso – e não apenas o ato jurídico -, a mudança de paradigmas na política municipal já seria suficiente para consagrá-la”.

Sérgio, que foi um dos advogados que atuou no “impeachment” do ex-presidente Fernando Collor, emérito promotor de ações populares contra os desmandos dos interventores e prefeitos nomeados da Ditadura Militar, lembra que “muita gente se deu conta aqui do cancro significado pelo manicômio”, disse. “Esta é uma das atuações do Poder Público que pôs em prática a Constituição de 1988, mostrando a diferença entre uma constituição meramente liberal como a de 1946 e a Constituição Social como foi a de 1988, apesar do ‘centrão’” – lembrando da organização parlamentar de direita que modificou os rumos constitucionais. Coordenador do ‘bureau’ da Ordem dos Advogados na constituinte, o professor da Faculdade de Direito da Unisantos e jurista Sérgio Sérvulo da Cunha marcou época na cidade durante o período em que Santos sofreu sob a intervenção da Ditadura Militar, que cassou o prefeito eleito Esmeraldo Tarquínio e suspendeu as eleições para o Executivo (1969-1983) com um ato de desobediência civil.

Seguidor de Henry David Thoreau (1817-1862, o libertário inspirador de Gandhi, propositor de uma sociedade autônoma), negou-se a pagar os impostos municipais, o que na ocasião lhe valeu uma charge no jornal local quando atrás de uma muralha com bandeirolas de “pax”, atirava máquinas de escrever nos que vinham de cartola cobrá-lo. Constitucionalista e autor de diversos livros de Direito, Sérgio participou intensamente dos movimentos pela autonomia de Santos e contra os atos atrabiliários dos governantes, escrevendo e atuando. Para o médico Sérgio Zanetta, se o secretário de Assuntos Jurídicos fosse outro, “um bunda-mole qualquer”, disse, nada seria possível – destacando a decisiva atuação do advogado santista.


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DEPOIMENTOS DE “MENTALEIROS”

A conjuntura legal: Geraldo Peixoto, militante antimanicomial
São 18 anos de caminhada na luta antimanicomial brasileira, que incorporou como causa após senti-la na pele, na família. Casado com Dulce Edie, também militante e convivente com o problema, Geraldo fala dos Projetos de Lei federal – do deputado do PT Marcos Rolim, que não foi reeleito, regulamentando os eletrochoques e que está parado -, e do deputado estadual do PT Arselino Tato, proibindo as psicocirurgias, ambos objeto de atenção dos lobies empresariais do setor. Ele fez 12 anos de lobie pela aprovação da lei do deputado federal Paulo Delgado, conta este militante integral.

As cenas de Arthur Chioro
Sanitarista formado em 1986, mestre em Saúde Coletiva pela UNICAMP e em Saúde Pública, professor nas faculdades de Medicina da Lusíadas e Unisanta, Arthur Chioro tinha apenas 25 anos à época da intervenção no Anchieta, em que participou da elaboração. E conta ter feito o primeiro plantão, junto com o psicólogo institucional e também articulador Antonio Lancetti - no que divide a primazia com Zanetta. Conta que a experiência santista “foi referencial para diversas cidades”. Diretor do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, na época ocupando o mesmo cargo na Secretaria de Saúde em Santos, diz que “uma das coisas mais marcantes deste episódio foi os olhares dos pacientes diante de nós na entrada em 3 de maio de 1989”.

Descreve Chioro, que é irmão de Sandra Lia, que foi diretora clínica durante todo o período de intervenção, “aquela rede de olhares desesperados mas com esperança, ambíguos, varrendo a todos com pedidos de socorro – sem contar a mistura de odores e medo. Da tensão de que participava o médico de plantão, Dr. Emmanuel, negro vestido de branco, suado. Era um momento tenso e ao mesmo tempo épico”, retrata Arthur que pede perdão pelo exagero literário, “pois estávamos defendendo a vida”, conta. A outra cena que o impressionou foi semanas depois, passada próximo a casa de sua mãe no Orquidário, quando alguns terapeutas levavam as internas para passear e ver a luz do sol, algumas após anos sem tal experiência.
“Elas desceram do ônibus ‘margarida’, aberto, meio que em andrajos, pele macilenta, maltratadas que foram por tanto tempo, dez ou doze mulheres cronificadas, feias. Ao verem outras mulheres com suas crianças, tomadas de paixão quiseram pegá-los – e a primeira reação das mães foi a de afastarem-se, protegendo-os daqueles seres que surgiam estranhos. Mas logo o susto das mães se transforma em afeto e a relação se torna harmoniosa, o amor de uns para outros se torna possível”.

Arthur está contente: “Hoje mesmo, ao sair de Brasília, soube que o ministro Humberto Costa, que é psiquiatra, interveio em dez hospitais psiquiátricos”. Santos se propaga em seus exemplos. Chioro esteve presente à reunião da noite anterior na secretaria, a que também conta Zanetta, sem dizer os nomes dos que foram contra a intervenção. Fala das tentativas fracassadas de outras cidades, algumas feitas por estas pessoas, insinua, de “humanizar” manicômios - “como alguns destes dez que intervimos hoje”, exemplifica. Para ele, não adianta melhorar ou humanizar manicômios, “que exigem sim ser fechados, extintos, apagados” – instrumentos de opressão que são. “Foram muitas as tentativas de humanizar manicômios que não deram certo”, concluiu.

Flávio Saraiva, libertando a loucura
No início era a surpresa, o susto, o medo, o cuidado, a precaução com os “diferentes”. Depois, o aconchego, o costume, a proximidade, a integração. Era tudo uma questão de tempo a substituição da crueldade da internação dos que não tinham cometido crimes mas eram isolados como se o tivessem, em condições muitas vezes piores a que dos presidiários. Flávio, um Assistente Social, era um “acompanhante terapêutico” que atuou na intervenção e que levou os pacientes às primeiras visitas externas, passeios, mostrando o mundo para quem estava trancado há anos no manicômio. Para ele, membro da Equipe 1 que deu origem ao NAPS 1, que participou da construção da rede dos NAPS, “a intervenção foi uma obra coletiva e democrática em que todas as ações eram debatidas no conjunto”, disse – uma experiência que trouxe para ele “níveis de evolução pessoal e de análise social”.

Berta, por dentes saudáveis
Na base da “cura” nunca alcançada dos pacientes de Saúde Mental, que afinal tinham sua condição agravada e muitas vezes criada pela precariedade de suas condições de vida, estava o retorno às condições dignas de alimentação, vestuário, acomodação, higiene, saúde – no mínimo, que foram garantidas. E a saúde bucal era elemento essencial para o desenho de um quadro razoável para análise de cada caso, trabalho que logo em junho foi designado a odontologista Berta Esteves, que ocupava o cargo de coordenadora de Saúde Bucal da orla.

Destacada para verificar as condições do consultório dentário instalado no hospital, pôde constatar “sua completa incapacidade de atendimento” - motivo pelo qual os pacientes que tinham problemas dentários e que eram atendidos só em último caso só podiam arrancar seus dentes, isto quando o dentista viesse atende-los. Berta lembra que David Capistrano levava cigarro nos bolsos para oferece-los aos pacientes, “apesar de ser um anti-tabagista convicto”, disse. Formada desde 1983 e atuando na Prefeitura desde 1985, depois de relatar a sucata existente pôde ser iniciado o atendimento de todos os pacientes, tendo sido enviados dois dentistas para o Anchieta, Mônica e José Roberto, segundo declarou Berta – quem destaca o “heroísmo” daquele gesto da intervenção “restaurando a humanidade arrancada daqueles seres”.

Luiz Antonio Cancello, humanizando
Psicólogo e escritor, Cancello participou da ação e foi um dos que assinou a intervenção, para ele importante elemento humanizador no sistema. Ele acredita que as três correntes da psiquiatria,a institucional,a antipsiquiatria e a psico-farmacologica ou biologista se integram e interpenetram, não se excluem e nem são absolutas, complementando-se como os sistemas econômicos em que o socialismo humaniza o capitalismo embora não seja implantado.

Segundo ele, há hoje provas científicas de mudanças químicas no cérebro dos doentes mentais, exigindo ação dos psico-fármacos e isso demonstra o fato de que a doença mental tem bases biológicas, o que não invalida em absoluto as importantes conquistas que a psiquiatria obteve na humanização e na política de tratamento do doente mental.A unidade de ações na meta da superação do manicômio, efetuadas pela equipe que atuou no Anchieta, utilizou não apenas técnicas variadas, como explicou Cancello, mas também agiu em diferentes momentos e estágios, desde uma humanização necessária e essencial à descentralização do atendimento.

A deputada Maria Lúcia Prandi, educando excluídos
A atualmente deputada estadual, Maria Lúcia Prandi era secretária de Educação à época da intervenção no Anchieta e pôde se integrar nas “estratégias de libertação”, como chama a atitude de entrar no manicômio e interromper o processo cruel e lá se desenrolava. “Pude participar criando cursos e escolas de alfabetização dentro do Anchieta”, conta, “em processos que evoluíram”. Maria Lúcia disse que quando as portas do Anchieta se abriram, “o que vi era dantesco e chocou-me profundamente”.

“Não se pode admitir que o diverso seja discriminado, brutalizado e humilhado. Sabíamos que era um imperativo ético a humanização da assistência à Saúde Mental e foi isso o que se fez”, declarou. “Na qualidade de secretária da Educação, acrescentou, somei esforços e, atuando com a Secretaria de Cultura, trabalhamos no resgate da dignidade dos pacientes – montando cursos de alfabetização e oficinas culturais”. A deputada estadual do PT lembra que “os resultados alcançados foram impressionantes. Ver a vida sendo devolvida a aquelas pessoas foi o mais gratificante e marcante”, concluiu.

Fábio Mesquita, médico social
Atual ocupante do cargo de coordenador dos Programas de Saúde da Prefeitura de São Paulo, o médico Fábio Mesquita é uma expressão nacional da luta contra a AIDS. Sem demérito, Tykanori é seu subordinado na Capital. Em nível federal, atuou no programa nacional de AIDS em 1993 e em 2000 foi Coordenador de Direitos Humanos e Articulação com a sociedade civil do programa.

À época da intervenção, era coordenador de DST / AIDS da Prefeitura de Santos, quando tomou iniciativas inéditas no país como a distribuição de seringas no programa de redução de danos, que baixou os índices de contaminação pela doença. “Atuávamos como um time”, lembra, “éramos a equipe da Telma, todos fazendo tudo”. Fábio se recorda da reunião na noite anterior e do dia da intervenção, em que estava lá. Vereador do PC do B (assumiu na gestão 92 – 96), médico engajado, considera que a intervenção no Anchieta “foi uma ação que mudou a história da Saúde mental no Brasil”. “Até então – lembra – a desospitalização era apenas uma tese, um ideal debatido e planejado, mas foi aqui que pela primeira vez se concretizou, graças a um governo corajoso e combativo que aceitou a briga e ‘foi pro pau’”. Para Mesquita, isso teve um efeito demonstrativo “extraordinário”.

Celso Manço, psicólogo antológico
Personagem exemplar do processo, Celso Manço, então jovem militante de esquerda, já tem 60 anos – e participou da fundação do Centro de Ciências do Comportamento de Santos, em 1972. Formado na USP de Ribeirão Preto em 1970, professor mais antigo da faculdade de Psicologia da Universidade de Santos, começou a trabalhar na cidade como psicólogo e professor em março de 1971, há 33 anos, tendo ministrado aulas para todas as turmas do curso desde seu surgimento. É fundador da primeira entidade de psicologia da região – a Sociedade de Psicologia da Baixada Santista – e seu primeiro presidente, neste mesmo ano, que apoiava a luta antimanicomial que nascia. Segundo Lane Valiengo, o jornalista, “foi ele que deu visão política ao tema, que até então inexistia”.

Integrante do Conselho Regional de Psicologia em 1980, abrangendo os Estados de São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em 1982 foi membro do Conselho federal de Psicologia até 1985, quando teve intensa atuação na direção institucional da causa antimanicomial, relator de diversos processos encaminhados ao Congresso e Câmara dos Deputados. “O Conselho produziu várias discussões e fez diversos encaminhamentos já há este tempo”, relembra Celso, que foi membro do PCB desde 64 e preso político em 1969, anistiado. Ele fala das diversas manifestações que existiam na categoria contrárias às ocorrências que existiam no Anchieta, antes da intervenção.

“Os próprios currículos das faculdades” - esclarece o antigo mestre – “foram se transformando para se adaptarem à situação brasileira de miséria e isso não foi espontâneo, foi uma luta dos profissionais, pois os programas não tinham vínculos com a realidade local”, explica. “A luta antimanicomial é outra vertente dessa adaptação”, conclui, ele que atua como professor de Psicologia e Organização do Trabalho, na área de Saúde Mental do Trabalhador, “uma área recente que tem ampliado o número de problemas em face da técnica imposta a produção”. diz.

Zezé Muglia Rodrigues, Assistente Social sim senhor!
Assistente Social sincera desde 1979, vocacionada para seu exercício, Maria José Muglia Rodrigues executou um dos trabalhos mais difíceis e inéditos daqueles aplicados no Anchieta, que foi o de reaproximar famílias e pacientes e dissolver o estigma instalado. Coordenadora de duas equipes de enfermarias, de setembro de 1990 a julho de 1992, parte integrante da “turma” que transformou a Saúde Mental em Santos e no Brasil, Zezé disse que esta “foi uma experiência importante para minha vida profissional e pessoal, pois a troca de experiências com as famílias dos chamados ‘loucos’ é gratificante”, afirma. Não apenas os pacientes mudaram seu comportamento com as novas condições estabelecidas, o fim da medicação massiva e dos eletrochoques, alimentação adequada, camas e diálogo entre eles mesmos e com a comunidade visitante e que encontravam nos passeios. As famílias também mudaram sua relação com seus parentes que haviam sido despejados e o restabelecimento dessa ligação se fazia através do afeto.

“Nós fizemos este resgate”, explica Zezé. “Eles tinham direitos, como pessoas humanas. Na verdade – diz -, eram depositários das loucuras da família, das suas dificuldades do dia a dia, que agora estava sendo preparada para recebê-los de volta. Vinham primeiro uma a uma, depois em grupo em assembléias expandidas. Foi fantástico”, lembra. Ela explica que o grupo era referencial do próprio grupo, uns dos outros, nós apenas os aproximávamos, eles definiam o tratamento, tornando-os produtivos e reintegrados. Iam para os NAPS e, saindo das crises, de volta para casa. O NAPS estava próximo para atendê-los nos momentos difíceis. Nós mostrávamos os direitos e deveres, par cada direito um dever e assim foi feito o resgate da cidadania destes seres”, concluiu Zezé.


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AS AÇÕES DE REINTEGRAÇÃO
Estratégias, atividades, cooperativas - Engels

Como na definição antropológica de Friedrich Engels, como contribuição à proposta de Karl Marx - do trabalho formador das próprias feições humanas e do próprio homem, como elemento de sobrevivência e realização, unindo Basaglia no sentido da tutela como momento de emancipação -, foi preciso praticar o exercício formal do trabalho para reviver e reconstruir aquelas pessoas, em técnicas e estratégias socializantes. A transição do macaco em homem, escreve Engels, se dá através da criação e utilização de instrumentos de trabalho agregados às suas necessidades de sobrevivência.

A mão não é apenas o órgão do trabalho, mas produto dele, que desenvolve assim o domínio da natureza detonando a evolução da. Mas essa evolução, quando deixa de ter como objetivo o homem para buscar o lucro e acumulação, deturpa e deforma o sentido do trabalho inerente ao homem, para transformá-lo em seu instrumento de produção à serviço de outrem. As cooperativas vão transformar esse processo e vivenciar o trabalho comum e procurar “desalienar” a atividade produtiva.

Com as cooperativas integradas às demais secretarias e empresas municipais e privadas, se consolida socialmente o projeto. Entendendo a tutela como momento de emancipação e não mais de repressão: emancipação no sentido de que a pessoa, quanto mais necessitada de proteção, tanto mais deve viver positivamente a própria “menoridade”, para crescer, recuperar autonomia, responsabilidade. A tese é de Franco Basaglia e, seguida à risca, fez com que se criassem mecanismos de reintegração com aprendizado dos pacientes com sofrimento psíquico, que fosse capaz de trocas sociais, para adentrar ao mundo do qual foram isolados. Como se vê, é simples: basta querer.

Para reverter o quadro de centenas de pessoas humanas degradadas, submetidas por tanto tempo, devolvendo sua identidade, redimensionar direitos e deveres, paralelamente às condições técnicas era preciso estabelecer relações de trabalho e convivência com os pacientes, a abertura dos espaços internos, a proibição de atos de violência entre os pacientes, assim como a utilização de celas fortes ou eletrochoques – esse terrível “tratamento” que era punição, igual ou pior aos centros de tortura da Ditadura Militar recente ou à fictícia máquina de torturas da “Colônia Penal” - do livro de Franz Kafka.

Novos profissionais e auxiliares de enfermagem foram precisos no Anchieta sob intervenção municipal, muitos mais. Debateu-se a violência existente de parte a parte, entre internos e funcionários, entre eles mesmos. Identificação e tratamento das doenças existentes entre eles, hipertensão, diabetes, diarréias, piolhos e sarna em quase todos, devido às graves condições que lhes eram impostas apesar de garantidos pelas verbas SUS, que iam para a conta particular dos donos, sem se traduzir e condições adequadas para os internos. Oferecendo a liberdade de escolha, a não- imposição do ofício, parte desta terapia individualizada que projeta o resgate de cada um de acordo com suas características.

A criação de unidades de produção favoreceu a grupalização e a socialização, instrumentos fundamentais do compartilhamento solidário associadas às carências locais espalhadas pela cidade facilitando essa reinserção dos “novos” membros. Logo após a injeção de recursos neste processo, para uma nova “contratualização” estimulada e não-sujeita à exclusão e cronificação dos sujeitos, logo se teria sua normalização, vidas independentes. Cooperativas seriam o rumo da emancipação destes seres, desenhando a da sociedade como um todo.

Como exemplo, a promoção da convivência dos pacientes com os integrantes do projeto Meninos de Rua causou, inicialmente, reações hipócritas e desaprovadoras de uma parte da sociedade, dos que queriam que tudo ficasse como estava, os meninos abandonados nas ruas e os doentes internados e isolados. Diziam que iriam agredir-se, em uma relação deletéria que se mostrou ao avesso, produtiva reintegradora de vontades. Foi apenas uma das ações praticadas, neste rol de estratégias que, afinal, deu certo. Construiu-se uma nova ordem política interna, um novo padrão de relacionamento, fez-se assembléias. Antes, havia uma “divisão classista” dos que trabalhavam na manutenção do hospital (limpeza, cozinha, vigilância) substituindo os funcionários e ampliando o lucro - que recebiam por isso mais alimentos, melhores acomodações e mais poder sobre os demais. foi a partir destes internos, modificando e invertendo as relações, que se propagaram e se estabeleceram as novas regras.

No avanço do processo, na fase avançada, foram criadas atividades como o Projeto Lixo Limpo (1990), em convênio do Anchieta com a Prodesan, para coleta e reciclagem, o Projeto Terra (1990), de aprendizagem de produção vegetal no Horto Municipal, integrada com o programa “Adote uma praça” e com a iniciativa privada. Projeto Vendas, para barracas comercializando mel, Projeto cantina para todos (1992), produzindo e comercializando doces e salgados, Projeto Marcenaria (1992), confeccionando móveis e objetos em madeira e fazendo serviços de reforma. Foram produzidos ainda o Projeto de Limpeza e Desinfecção de caixas d`água, na atividade, o Projeto Dique, de construção civil e desfavelamento, o Projeto Serigrafia, produzindo camisetas promocionais (1994), Projeto Consertando (1996), de manutenção predial na CSTC. São exemplos da reinserção social reconstrutora da cidadania, na invenção de espaços reais de trabalho. Foi habilitando, aprendendo, criando junto – ensinando a “volta a ser” que este trabalho foi executado.



“Onde ficarão os loucos?”
O estímulo à comunicação grupal com supressão da violência agiu em busca de um projeto de humanização que levasse à própria extinção daquele ambiente tido como “necessário”. “Onde colocaremos os loucos? ”, se perguntava pela cidade quando se falava em fechar o Anchieta, em questões estimuladas pelos grupos oposicionistas ao poder político que se implantara nesse ano e já ousava. Como eles viveriam soltos? E os remédios? E seu trabalho? Onde ficariam, se as famílias os rejeitassem? Como se comportariam “lá fora”?

Eram dezenas de perguntas sobre este futuro analisado e debatido a cada passo, sem medo, pelos técnicos e profissionais reunidos com o pessoal de enfermagem e apoio e os pacientes, se possível integrando as famílias em grandes assembléias. Na verdade, não havia “loucos”, mas desajustados sociais, problemas ocasionais de transtorno mental que se agravaram naquele local, problemas que poderiam ser assistidos e tratados sem as internações cruéis. Este, o da demolição do manicômio, era um processo revolucionário que não havia como ser contido, pois despertara seres e vontades. Para reconduzir aqueles cidadãos para uma vida normal, era preciso não apenas dissolver o “status” do hospício, mas viabilizar maneiras de sua reintegração na sociedade sem tutela, valorizando aqueles seres ao invés de apenas “assisti-los” caritativamente. Ao final, em um processo científico e essencialmente humano, os loucos “desapareceram”, se reintegrando na sociedade.


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A ARTE NA RESSOCIALIZAÇÃO,
UM ATO DE AMOR – O PROJETO “TAM-TAM”

“Tam-Tam é o som mais alto e vibrante que já ultrapassou fronteiras e vem levando a vários pontos do mundo os frutos da intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta, decretada pela prefeita Telma de Souza no último dia 3 de maio. Colocando um ponto final na chamada ‘Casa dos Horrores’, como era conhecido o hospital psiquiátrico, abriu-se caminho para a criatividade dos pacientes, que identificam seu trabalho, nas mais variadas frentes, como algo que ecoa, agita, tem ritmo frenético e incomoda. O próprio som Tam-Tam dos instrumentos de percussão”
(encarte D.O. Urgente, 2/11/1990)

Um processo-base da atitude humanitária do Anchieta, concretizando antigas teses mundiais e nacionais da psiquiatria, foi desenvolvido a partir da ação de artistas. Foi com base no exercício prático - e no conhecimento das teorias de Michel Foucault - que se construiu a atuação do arte-educador Renato di Renzo nessa história. Diretor do Grupo Orgone e da Associação Tam-Tam que o engloba, tem 16 anos de atividade e mais de 50 premiações.

Coordenador do Centro de Convivência do Anchieta, da vida como uma obra de arte, do pensamento ligado à vida, o pensamento-artista construindo uma rede democrática de relações humanas libertárias e afirmativas, junto com Cláudia Alonso ele constrói no imaginário. Valorizando a palavra, exercitando-a, se construía a liberdade e a autonomia, levando a linguagem aos limites de suas possibilidades inventivas, da palavra uma arma ao mesmo tempo destrutiva e terna, como se referiu Foucault. Como disse Suzana Robortela na sua Dissertação de Mestrado na Unicamp em 2000, “Relatos de usuários de Saúde Mental em liberdade – o direito de existir”, no século XVII a pobreza era vista como um castigo divino, um pecado contra o estado, o trabalho passa a ser moralmente obrigatório e as casas de internamento são casas e trabalho forçado. O trabalho como terapia de reabilitação foi produto desta incorporação no final do século XX, como diz Benedetto Saraceno. Para Tykanori Kinoshita, “reabilitar é criar as condições para que o paciente possa, de alguma maneira, participar do processo de trocas sociais”.

Como Anchieta, o primeiro mestre do Brasil
A tese era conhecida dos profissionais: faltava colocá-la em prática. E foi esse artista do ramo, Renato di Renzo, que criaria o projeto-base dessa atuação transformadora, o Projeto Tam-Tam, de grande sucesso nacional e internacional. Formado em arte, diretor de teatro e do Grupo Orgone Companhia de Dança da Cidade, criou salas de teatro e dança, programas de rádio e TV, pintura em quadros e painéis – música, muita música, regenerando seres no resgate de signos e contatos pessoais. Renato di Renzo teve uma formação que se pode denominar “de raiz” no envolvimento com pacientes psiquiátricos desde que foi para São Paulo, nos idos de 1969, fazer teatro. Seria coincidência o fato deste método se aproximar em muitos pontos dos métodos educativos do primeiro educador brasileiro e, curiosamente, que emprestou o nome para o antigo manicômio santista: Anchieta.

Di Renzo, na época com 17 anos, trabalhou com o diretor teatral José Celso Martinez Correia, entre outras expressões do teatro brasileiro de então. Por volta de 1970, participou de círculos que iam fotografar e conviver com os “moradores” dos asilos de alienados do Estado, como o Juquery, registrando a precariedade da sua condição de vida e a arte produzida, ilustrando a importância do trabalho de Bispo do Rosário e contando sobre a “exposição mundial da loucura”, a chamada “Arte Bruta”, “sem lapidação”, explica, na Suécia. O teatro desempenhou, no Anchieta, um papel fundamental na rápida recuperação de muitos doentes, não só pelo trabalho corporal mas principalmente por permitir o fluir da imaginação criativa no ato de representar e até mesmo de redigir textos. Muitos talentos foram descobertos neste processo, o que veio facilitar a montagem de um grupo teatral dentro do próprio hospital.

Desenvolvendo um trabalho de pesquisa nas áreas de dança e expressão corporal, sua criadora, a bailarina e coreógrafa Claudia Alonso estabeleceu uma parceria com Renato que, a partir de 1964, começou a desenvolver um trabalho mais elaborado em torno da pesquisa teatro-dança, movimento vanguardista que ganhou espaço nos palcos nacionais. Sua montagem “Na sala de espera do Dr. Sigmund”, de autoria de Renato, foi elaborada a partir de uma série de visitas ao Anchieta, ao Centro de Convivência Tam-Tam, aos NAPS, às filas do INAMPS, além de consultórios médicos, arrebatando prêmios importantes em inúmeros festivais no Estado e no país. Após dois anos de temporada, o Orgone recebeu convite para se apresentar no Rio de janeiro através do Instituto Franco Basaglia, dentro de um hospício, o “Pinel”, para técnicos e usuários, tendo contado com o apoio do Centro Cultural Brasil-Estados Unidos.

Experimentado no trabalho e no contato direto com a massa dos manicômios, tendo acompanhado saídas em grupo para pacientes – antecipando o papel do que seriam os “acompanhantes terapêuticos”, relata em detalhes a realidade que encontrou no hospital-prisão santista e do livro que obteve nessa estadia revolucionária da intervenção que participou, “A psiquiatria nossa de cada dia”. É do psiquiatra e um dos antigos donos do Anchieta Edmundo Maia, dono de uma clínica psiquiátrica em São Paulo, a chamada “clínica dos artistas”, em que esteve nos últimos dias de sua vida, por exemplo, o cantor Raul Seixas e o escritor Paulo Coelho – hoje integrante da Academia Brasileira de Letras e um dos mais vendidos autores literários do Brasil e do exterior.

Conta Di Renzo que o Anchieta foi inaugurado para ser um “hospital-padrão”, referência no tratamento psiquiátrico, localizado na área central da cidade. “Não era um asilo ou manicômio como os que ocupavam a periferia das cidades ou lugares remotos, mas um ‘asilo de luxo’ ”, diz, “em uma época em que se receitavam eletrochoques como comprimidos”. Renato tem parentes que só não tomaram os dez eletrochoques receitados pelo médico porque o pai não deixou, nestes tempos de violência institucionalizada.

O mistério das caixas cerebrais iluminadas
Sala para concertos de piano, que aconteciam aos sábados, salas de projeção de filmes, lanchonetes para visitantes, alas “vip” com piso diferenciado, tudo isso existia no Anchieta, antes de se tornar o depósito de gente que se encontravam nos tempos da intervenção “ Era uma violência diferente”, observa. Relata sobre um equipamento que encontrou – uma caixa de madeira de cerca de 40 x 20 centímetros, com luzes de aquecimento e armações ferrosas e abertura para adaptação na cabeça.

“Nem o Tykanori (Roberto Tykanori, um dos líderes da intervenção) sabia para o que servia as ditas caixas. Existiam quinze daquelas no Anchieta” - considerando que era mais um daqueles instrumentos pseudo-científicos dos positivistas da psiquiatria para “iluminar cérebros”. Conhecendo as invenções de Benjamim Rush, antecessores e sucessores, nada surpreenderia a aplicação destes métodos. A hipótese não estava afastada: coisas muito piores foram feitas ali. Mas a revelação veio por uma “usuária”, passada nos anos e que, vislumbrando o equipamento, surpreendeu-se em ver “aquela troço de tratar enxaqueca”, que já tinha utilizado. Foi o que contou Renato, em um dia de junho de 2004.

Observador privilegiado dessa herança da psiquiatria institucional que apodrecia, Renato, que se orgulha dessa trajetória de reversão que participou, diz que pudemos saber “com quantos loucos se faz uma cidade”, na construção do “Projeto Tam-Tam”. Ele lembra que foram encontrados projetores de 16 milímetros semi-novos, o que era diferente dos tempos em que existiam sessões de cinema no hospital. Para ele, nos últimos tempos deveria existir algum programa de tratamento baseado em projeção de imagens. Para nós, algo parecido com o do livro de Burgess, o filme de Kubrick (de que falamos neste livro) “A laranja mecânica” - que implicava em obrigar o infrator criminal violento a assistir cenas de violência até a exaustão, impedido até de fechar os olhos, como método de “cura” da compulsão violenta. Não está afastada esta hipótese.

Para o artista e humanizador do tratamento psiquiátrico, um dos personagens centrais da intervenção e eliminação do Anchieta, “quem pensa que isso que aconteceu em Santos é coisa do passado, não sabe do que ainda ocorre em renomados hospitais paulistanos, que em suas alas psiquiátricas – infantis, inclusive – dopam seus pacientes com poderosos fármacos e aplicam eletrochoques, com métodos modernos através de agulhas e não mais placas de cobre, como no Anchieta”, conta. “Eles ainda estão ai e todo cuidado é pouco”, completa. Com Di Renzo, o Anchieta que por quase meio século fora um trágico cenário transformava-se em um circo. Para ele, a circunstância que trazia as pessoas de volta era o convívio mútuo, em personagens diferentes que encenavam, dividindo paixões, se comunicando.

O projeto gerou teses de pós-graduação, mestrado e doutorado e se expandiu até internacionalmente, como a rádio Pancada, no Rio Grande do Norte, e Colifata, na Argentina. Renato conta que quase no mundo todo há programas de rádio com pacientes vítimas de transtornos mentais, tudo inspirado no projeto Tam-Tam, que aqui, no início, foi visto com desdém. Explica que foi tudo fruto da experiência sem pré-condicionamentos, sem fórmulas feitas: “fiz e deu certo”, diz. Por conta desse trabalho ele foi montar serviços semelhantes em cidades do Nordeste, tendo encontrado, como aqui, resistências mas, também, muito interesse.

“Lamento quanto o homem perdeu investindo no nada. corremos desenfreadamente para conquistar coisas sem saber o objetivo e o rumo disso. mas estamos sós. esta busca não resultou em integração, não fez com que as pessoas se juntassem, nas praças, nas ruas, provocando uma loucura doente e não saudável, de encontros e realizações” (Renato di Renzo)

A mistura de sãos e doentes, lado a lado, frente a frente, dando voz para os pacientes durante tanto tempo calados e cerceados, reprimidos, resultava em integração, explica Di Renzo. Para ele, a loucura tem, entre suas causas,o rompimento das relações humanas. “A loucura”, diz, “é gerada pela solidão”. Ele continua trabalhando na área, com portadores da Síndrome de Down, no Projeto Encontros e com o “Orgone Grupo de Arte”, também na “Associação Tam-Tam” que mantém e que fez tanto sucesso com os pacientes do Anchieta – nas políticas públicas que marcaram época. Muitas festas, pinturas, cantos e danças se fizeram ali no Anchieta, a partir desse momento.

Livraria-sebo,oficina de música, cozinha experimental, camisetas (a griffe Tam-Tam), jornal em “off-set” (distribuído em 22 bancas), mural, painéis e até um bar dentro da secretaria de Cultura Patrícia Galvão, aos cuidados de um paciente que fora “barman” em São Paulo. Uma rádio nasceu, dentro do projeto de Di Renzo, a “Rádio Tam-Tam”, que fez sucesso com auto-falantes no prédio e que ganhou as ruas, sendo transmitida até por uma rádio comercial (Cacique) com músicas, entrevistas e conversas – e depois por outras rádios. Teatro, peças eram encenadas. Se fizeram jornais mimeografados e depois impressos, vídeos. O Anchieta foi notícia em todas as rádios e televisões do país com estas atividades. Os pacientes – clientes, como chamava Nise da Silveira, começaram a fazer excursões, passeios. A maioria não via a rua há dez, quinze anos, tinham sido isolados.

Um dos principais pacientes-clientes, de nome fictício Eládio, era a maior prova do crime que era prender e impor remédios e torturas aquelas pessoas. humorista nato, locutor de voz e leitura perfeitas e teatrais, boa impostação de voz e rara inteligência, não só interpretava como fazia performances e espetáculos de dança, com especial atenção para figurinos que confeccionava. era o líder da rádio tam-tam, hilariante e imaginativo humorista, astuto e inteligente improvisador, hoje tem um pequeno bar no lugar onde mora. e segue fazendo arte na rua, sempre que tem oportunidade. o mundo sem seres assim seria pior.

Nas políticas de reaproximação desenvolvidas no Anchieta, as pessoas de fora e os internos perderam o medo uns dos outros e se perguntavam por que estes pacientes ficaram tanto tempo segregados. As famílias foram integradas nessa convivência, também médicos e técnicos, promovidas festas abertas à comunidade, em espaços enfeitados pelos próprios pacientes-clientes. Seres oprimidos se tornaram criativos. O que era um hospício se tornou uma casa, com hábitos sociais reensinados aquela gente semi-destruída por remédios, surras, choques elétricos, fome, condições sub-humanas. Era outro o tempo. O Projeto Tam-Tam preparou e colocou cerca de 100 pacientes na estratégia de ganhar dinheiro, garantindo a própria subsistência, pintando camisetas, gravatas de seda e papéis de carta, bolsas e chaveiros. Todos estes equipamentos recebem a etiqueta da grife Tam-Tam, disputadas no mercado.

Cada camiseta era vendida a R$ 30,00. Metade serve para a compra de matéria-prima, o resto é dividido entre os produtores da mercadoria. Planos de abertura de uma loja eram os sonhos de Livingston Silva de Lara, de 21 anos, um dos pacientes integrados ao projeto que já mora com a família de sete pessoas - e era ele quem faz a comida e cuida da limpeza. Quando não estão nas oficinas, os pacientes reúnem-se com as psicóloga do projeto e fazem brincadeiras como o “Jogo da Memória”, como conta a psicóloga Alexandra Marques, da equipe do Tam-Tam, que narra a segurança conquistada na atividade. Exemplo também é o da ex-bancária Maria Regina Gonçalves, de 33 anos, participante do projeto há quase 5, internada no manicômio 5 vezes e que depende de medicamentos para manter o equilíbrio químico do cérebro sob pena de dores de cabeça e transtornos, que ali “entrou nos eixos” e reconquistou a normalidade.

A Rádio Tam-Tam, “um programa do tamanho da sua loucura”
A loucura é uma só, os homens só se diferem um dos outros pelo grau que apresentam, é o princípio. Na Rádio Tam-Tam, portanto, o ouvinte poderá escolher a dimensão de sua loucura. A tese é projetada com espírito de humor pelos criadores do programa, mas seu grau de seriedade e vínculo com a realidade é incontestável. “De perto, ninguém é normal”, dizia um “slogan” utilizado desde os primeiros tempos da intervenção. Os intelectuais e humoristas estão ai para provar isso, sem contar os comportamentos das pessoas “normais” no dia-a-dia. Ou você não lembra daquele quadro da TV que o personagem dizia “Eu sou normal !! ” ?

Inaugurada internamente em 30 de maio, 27 dias após a intervenção, sem contar o período em que foi suspensa, foi a partir do momento em que se adquiriu um aparelho de som e um microfone que iniciou-se a programação de rádio dentro do hospital, onde um paciente relatava, diariamente, um jornal com as notícias dos bastidores da instituição revolucionada, que logo se expandiria para além dos muros. O sentido era, diz seu criador, reproduzir no nome o som do primeiro sistema de comunicação da humanidade, por tambores, mas também associado à terminologia da loucura. No Projeto Tam-Tam Inúmeras atividades no campo artístico foram desenvolvidas, como teatro, pintura, marcenaria, vídeo, joalheria, postais, camisetas, brincos e outros, visando atingir o prazer da criação. Mas foi a rádio Tam-Tam que alcançou maior sucesso. Repercutindo nacional e internacionalmente, sem abandonar sua programação interna lendo as matérias do D.O. Urgente e de A Tribuna, esportes, horóscopo, muita música, variedades (achados e perdidos, oferecimentos e recados), “furos” de reportagem com entrevistas com vizinhos e visitantes do hospital, uma conquista graças a doação de um gravador portátil. Notícias, músicas, entrevistas saiam de uma sala improvisada, construída com madeirite e tela de ovos pelos próprios pacientes e espalhadas pelos corredores do hospital através de 32 pequenas caixas de som.

Tam-Tam quer saber quais são os remédios de Lula
Na entrevista com Lula, após a derrota nas eleições presidenciais, o repórter da rádio Tam-Tam pergunta ao então presidente de honra do PT “qual o calmante que ele estava tomando atualmente” – ao que Lula responde de pronto, dando a marca do remédio.

A Rádio que era dentro do hospício estréia para “os de fora”. “Quem não tem loucura não é equilibrado”
Foi em 5 de novembro de 1990 que a Rádio Tam-Tam estreou para o mundo “de fora”, para agitar a cidade, transmitido pelos 1.440 quilohertz da rádio Universal AM. Depois, iria para a rádio Cacique e posteriormente, ampliando seu potencial de transmissão de 1 para 10 mil quilohertz, seria transmitida pela Rádio Clube de Santos, atingindo outros estados e até países, em que ficou quase um ano. Depois esteve na rádio Jovem Pan e durou 8 anos. Segundo Di Renzo, era um projeto “...absolutamente mágico, alucinante, delirante”, que não apenas liberava os pacientes como pressupunha Nise da Silveira nos anos 30 e 40, mas os qualificava para a vida.

Como dizia o locutor Marcelo Bruno, 26 anos, “quem não tem loucura não é equilibrado”. Alugaram—se horários em rádios comerciais de Santos e montou-se uma equipe formada por pacientes que tinham maior desenvoltura de voz, e locução, de imitação e humor – no programa que recebia cerca de 50 ligações telefônicas diárias, exigindo uma nova linha alternativa para atender os ouvintes. Existia doação de brindes por parte do comércio, pelo menos dez firmas interessadas em patrocinar o programa, até a formação de um “fã-clube”.

A rádio superou as expectativas mais otimistas em sua primeira semana de funcionamento, com ampla participação popular e envio de sugestões. Foi feita inclusive proposta da rádio para criar o “Espaço Tam-Tam” com flashes ao vivo a qualquer hora do dia ou da noite, para produzir uma novela de rádio, “Loucuras de Amor”- recriando tipos tradicionais da rádio Nacional nas décadas e 40 e 50. A rádio foi aberta com uma mensagem de Herbert Viana, do conjunto “Paralamas do Sucesso” e teve, na primeira semana. uma entrevista com a atriz Fernanda Montenegro. Convidou-se também alguns adolescentes para integrar a equipe na área de assessoria técnica.

A partir daí nasceram diversos personagens como Marcelo Bruno, Tião Pinéu, Ed Spray, Billy Paul e Hideubranco, que se tornou um dos programas mais conhecidos da cidade - depois dividido com uma escola pública. A rádio foi a primeira pensada e produzida por doentes mentais. “Queremos entrevistar personalidades que visitam a cidade, queremos que os ouvintes larguem as FMs e sintonizem a rádio Tam-Tam, pois a programação que ela vai apresentar o ouvinte não vai encontrar em nenhuma outra rádio”, diz. Com horário das 16 às 16,30, a equipe era composta pelos “loucutores” oficiais Carlos Alberto Pereira (“Marcelo Bruno”) e Renato Conceição; na pesquisa Milton Newman; na produção geral Hercílio dos Santos Trindade e Roberto Antonietti, além de Clécio Santos, que atua como “coringa” do Tam-Tam.

A produção musical do programa estava a cargo de Leandro Saueia e Christian Cardim Dias, ambos com 16 anos, alunos do Colégio Marza; de estudantes do Objetivo; Soledad Rodrigues Morales, agente de saúde do Anchieta, e ainda do psiquiatra Marcos Scazfuca Ribeiro, mais conhecido por “Bode”, baterista do conjunto “Ex-machine”, e Gilvan Gomes da Silva, guitarrista do grupo e responsável pelo curso de música do Centro de Convivência. Brindes e sorteios para os ouvintes, inclusive camisetas da griffe Tam – Tam.

O programa também fazia a divulgação de novos conjuntos de rock (já havia 5 inscritos, além do que iria se apresentar, “nem ford nem sai de simca”) e ofertas de venda e permutas de pranchas de surf e skates por jovens interessados “os jovens, diz Di Renzo, como os pacientes do Anchieta, sofrem discriminação da sociedade e nem sempre conseguem o espaço adequado para expor seu potencial”, explica. No estúdio, era proibido fumar, sob pena de suspensão da participação no programa. Era uma norma interna, inclusive adotada por eles para proteger os equipamentos da nicotina. Eles mesmos corriam para lá e para cá para consertar microfones e aparelhagens, algo impensável há alguns meses atrás.

A repercussão na imprensa do Tam-Tam
Com sua criação noticiada pelo jornal “A Tribuna”, assim como pelo telejornal Brasil, do SBT, no dia 6 de novembro saiu nos jornais “Folha de São Paulo” e “Diário Popular”, “O Estado de São Paulo” e na rádio “95 FM”, outra vez em “A Tribuna” no dia 7 e no “Notícias Populares”, sendo distribuída a notícia pela Agência Estado no dia 8 para as agências internacionais. A intervenção foi comentada pelo programa Fantástico da rede Globo no dia 11, com imagens da Rádio Tam-Tam. No mesmo dia 11 seria notícia na rádio Bandeirantes, entrevistando o diretor Renato Di Renzo no domingo, além da rádio Excelsior no dia 12 e da rádio Globo. Também a revista Atual e a TV Gazeta produziam notícias sobre a Rádio Tam-Tam. É a notícia do D.O. no dia 21/11/1990.

Entretenimento como terapia, a tese
Organizando há quase 30 anos o Festival Interno do Colégio Objetivo, desde 1975, desenvolvendo terapias com menores, observa que os adolescentes só são reconhecidos se obtiverem boas notas na escola, caso se destaquem no esporte ou na cultura, “mas a maioria não se destaca em nada disso e sem alternativas para canalizar sua energia, podem perder seus valores, entrar em conflitos e buscar mecanismos artificiais para minimizar as tensões que sofrem”, lembra. Para ele, a nova etapa da rádio Tam-Tam servirá para resgatar a importância das pessoas, tanto pacientes psiquiátricos como jovens, trabalhando a sociedade, oferecendo-lhe meios de questionamento e mudança de valores – não apenas desmistificar a loucura e integrar pacientes na sociedade, reduzindo cada vez mais a distância entre sãos e loucos.

Di Renzo salienta que os adolescentes são os porta-vozes mais importantes das mudanças e participando de um projeto voltado para a melhoria da qualidade de vida, gerando felicidade. “Os jovens acabam se transformando em multiplicadores de mensagens em seus círculos de amizades”, considera. Apenas a “Rádio Gá-Gá” para idosos foi um plano de Di Renzo que não saiu do papel, pois ele ainda faria a “Rádio Moleque” para os Meninos de Rua assistidos pela Prefeitura – no projeto que se expandiu pelo país e pelo mundo, a partir de Santos e de Ricardo Di Renzo.

O “Biruta”
O jornal “O Estado de São Paulo” de 20 de novembro de 1995 reporta nacionalmente a experiência de resgate da cidadania dos internos do Anchieta na atividade teatral do grupo denominado “Biruta”, que estava representando o mito “Ulisses e as sereias”, coordenado pelo psiquiatra Auro Danny Lescher, da Universidade Federal de São Paulo, a UNIFESP. Nascido em 1992 e caminhando para a profissionalização, o grupo se abriu para a comunidade e passou a contar com a direção teatral de Sérgio Penna, autor e pesquisador teatral – para quem o teatro proporciona “autoconfiança, liberdade, realização pessoal e descortina novos horizontes”.

Em 1995, trabalhando no NAPS-4, estudioso e fã do teatro e filosofia, passou a praticar isso com os pacientes, tendo estudado e trabalhado Artaud, que foi interno e morreu em um manicômio. “Biruta” porque além de sinônimo de louco e doido, é o instrumento que mostra para onde o vento sopra, em seus inúmeros sentidos, explica o nome do grupo seu diretor. Ele destaca que mesmo alguns atores que desconhecem a leitura e eram no início incapazes de reproduzir uma seqüência de frases se superaram e já decoram textos. Tykanori destaca que o grande mérito está em recuperar o valor de quem estava classificado como incapaz: “Quem assiste uma representação do ‘Biruta’ sai com a impressão de que as pessoas que estão ali, apesar de loucas, tem valor”. Muitos de seus integrantes, segundo Lescher, tem um histórico de 30 anos de internações, mas exemplos como o de Andréa Ribeiro, de 20 anos, que se sentia doente antes daquele exercício, depois de 3 anos no projeto tem planos de tornar-se atriz.

Schechtmann, na raiz do trabalho de Di Renzo: Foucault e a “não-obra”, a racionalidade oculta na expressão da loucura
Michel Foucault, em sua “História da Loucura”, relaciona a loucura a “não-obra”, à impossibilidade da obra. Isto se tornou um objeto de abordagem por parte de diversos pesquisadores e técnicos, debatendo sob variados prismas com filósofos, críticos de arte em geral e psicanalistas a questão das raízes natas da criatividade, que inclui traduzir signos percebidos e articulados em linguagens acessíveis e inteligíveis. Isto é a linguagem, a obra de arte, enfim, não mais do que isso, define Alfredo Schechtmann – hoje consultor do Ministério da Saúde para Saúde Mental -, descrevendo “O caso Qorpo Santo, escrita e loucura”. O hermético e o cifrado não são apenas sintomas da linguagem dos loucos, mas fruto de uma nova estética de conversão para recepção.

A compreensão desta natureza relacional é básica para se compreender de que maneira pode-se ir buscar a racionalidade oculta nos portadores de transtorno mental .É simples sua compreensão: desde o início da história humana que a “loucura” se traduz como humorismo ou mensagens cifradas, há muito valorizadas como arte. As expressões da arte de vanguarda, por exemplo, seja o dadaísmo ou o surrealismo, os modernos em geral, tensionaram esta relação entre o estritamente subjetivo, hermético e cifrado simbolismo, fazendo-o circular em meios de cultura mais amplos. Colocando na ordem do dia esta estética da recepção, como fizeram na literatura Franz Kafka e James Joyce.

Enfim, é tudo uma questão de linguagem, de uniformidade da linguagem, o que só se consegue com a socialização, com a ressocialização - ou o isolamento provocará problemas na comunicação. Os métodos para isso, para construir este caminho, no caso, foram dados pelos artistas, na compreensão, sem violência, da linguagem do outro. O psiquiatra Domingos Stamato conta sobre um húngaro retido no Anchieta simplesmente porque ninguém falava sua língua, até que surgisse alguém que o compreendesse e ele fosse libertado. Casos semelhantes, de pessoas com problemas de comunicação, se multiplicaram – e a internação no Anchieta era a ”saída mágica” para o problema em que atuou, reatando relações, o artista Di Renzo.


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NAPS E DESCENTRALIZAÇÃO: O FIM DO ANCHIETA
- porque conseguimos recordes mundiais na desativação do manicômio?

O tempo para total desativação do Anchieta foi um terço daquele que havia sido conseguido no chamado Primeiro Mundo, inclusive na Itália, o exemplo santista de Trieste. Segundo David Capistrano Filho, o então Secretário de Saúde do Município, isso foi conseguido pela experiência acumulada da Itália e por fatores contraditórios: o primeiro era transformação do tratamento psiquiátrico em “negócio”, nos anos 60 e 70, impôs a exigência da rotatividade de leitos. Isso impedia a cronificação e, por conseguinte, se melhoravam as condições para reintegração social, dos internos – que deixavam de ser submetidos às “fábricas de loucos” que eram os manicômios. O segundo motivo era uma questão econômica – diz respeito ao rompimento dos laços familiares, que se operavam mais rapidamente em face do estágio econômico do capitalismo europeu. E o terceiro idiossincraticamente local - própria do clima em que foi produzida e do estágio político que a criou, a intensa mobilização popular que cercou a ação.

Aqui, os hospitais privados eram legalmente obrigados ao rodízio pois, por mais que quisessem prorrogar as internações para obter lucro, eram legalmente impedidos de fazê-lo, embora não alcançassem resultados efetivos na recuperação. Ao contrário, nos manicômios públicos brasileiros, assim como na Europa, os pacientes permaneciam por décadas, tornando-se irrecuperáveis, dezenas de anos sem ver o mundo.

As instituições européias eram mais enraizadas socialmente e suas exigências para dar alta aos pacientes eram maiores, em se tratando das condições em que estes seriam albergados e recebidos. Além disso, o fato cultural-conjuntural do estágio do capitalismo naqueles países determinavam diferenças na relação pessoal, com o rompimento mais rápido dos laços familiares, em um sistema mais obsessivo pelo sucesso pessoal e enriquecimento como traço da economia capitalista para seu sucesso pleno, baseado no egoísmo e no “cada um por si”. Considere-se, também, que aqui existiu um processo ideológico intenso nesta ação redentora do hospício, com uma ação executada a partir de um Governo Municipal, que envolveu a comunidade e partidos de esquerda em aliança para efetivar a mudança, com envolvimentos sociais e políticos – um movimento que teve grande apoio da opinião pública. Que barrou, em suas mobilizações e atos públicos, as decisões juridicamente contrárias, revertendo-as pela pressão popular.

Poderia se tornar uma luta sem fim, como tantas; mas teve estratégias e alcançou os limites da solução o processo de intervenção, esta revolução por etapas em que acreditavam os envolvidos nela. No estágio anterior à gestão democrático-popular em Santos e à intervenção municipal no Anchieta, havia sido tentada a descentralização do atendimento em ambulatórios, como fórmula para dissolver os manicômios, praticada em nível estadual – mas que não deu certo. Era preciso atacar “de dentro” o problema para, depois, descentralizá-lo e eliminá-lo, como foi feito.

Seria em setembro que viriam as novas soluções da psiquiatria santista, com a inauguração do primeiro NAPS – Núcleo de Assistência Psicossocial na Zona Noroeste, 4 meses após a intervenção, de onde vinham a maior parte das pessoas. Viriam depois o NAPS-2 (no centro) , o NAPS-3 (Aparecida), o NAPS-4 (Vila Belmiro), entre outros, funcionando 24 horas por dia, sete dias por semana feriados inclusive, locais em que o paciente-cliente podia ficar ou não sem se desvincularem de suas famílias. Santos tem os mesmos 4 NAPS, o Estado tem 140 e o país 522 – que nasceram de Santos.

Em 1999, dez anos depois da invasão e humanização do Anchieta, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara federal denunciava o quadro no país e propunha a proibição das lobotomias e eletrochoques.

Foi criada a griffe “Tam-Tam”, funcionando na URPS (Unidade de Reabilitação Psico-Social), no bairro da Aparecida, prestadora de serviços terapêuticos e agente do tratamento, centro formador de pequenas empresas sociais – grupos de natureza cooperativa que se reuniam para fabricar diversos produtos e criar um ambiente de relações interpessoais e de socialização, criando fontes de renda -, uma loja em que estes produtos são vendidos. Esta foi uma peça-chave na constituição do programa de Saúde Mental, pois reintegra no auto-sustento e na atividade exigida “lá fora”. Como a maioria dos doentes mentais vem de classes pobres e sem qualificação, esta parte é fundamental. Destaque-se a interdisciplinaridade dos terapeutas, que não são médicos ou enfermeiros, mas artistas plásticos - no caso da produção de camisetas, profissionais de outras áreas em cada caso. Alguns aprendem e ensinam, outros mudam de atividade.

Foi utilizado aqui a experiência dos italianos, entre uma série de fatores que contribuíram para isso, entre as quais a rotatividade necessária nos leitos era uma característica do “negócio” da psiquiatria manicomial, dificultando a cronificação – havendo normas federais para reduzir o tempo de internação. Na Europa, a permanência era por dezenas de anos. As manifestações populares revelaram um grande apoio da opinião pública ao programa de Saúde Mental que deu certo. Hoje, existem 527 CAPS implantados em todo o Brasil, cerca de 40 dedicados às crianças e adolescentes, mais 63 serviços de atenção às pessoas que sofrem com transtornos decorrentes do uso de drogas e álcool, os chamados “CAPS-AD”.


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COMO FOI FECHADO O ANCHIETA,
PARA HUMANIZAR A CIDADE?

Até hoje existem pessoas na cidade que não compreenderam este episódio histórico da intervenção municipal, para o fim da tortura e do manicômio, resultando em uma política nacional que chegaria doze anos depois em forma de lei federal. Dia destes, este autor foi interpelado sobre esta ação da prefeita Telma de Souza, como crítica, pois que tinha resultado “no fechamento e abandono de um hospital, hoje entregue aos mendigos” – sem compreender que a instituição opressiva foi liquidada. O fim do Anchieta, heróico, exemplo nacional e mundial, ainda não foi entendido. O prédio da rua São Paulo 95, fruto de embates judiciais sobre sua desapropriação pelo município e posterior devolução aos proprietários, permanece abandonado como símbolo de tanta violência. Antes assim.

Ao mesmo tempo em que era preciso curar a chaga e fechar definitivamente o Anchieta, vivíamos uma contradição: era preciso melhorá-lo para os que o habitavam. Para isso, foi estabelecido rotinas médicas, uma “casa experimental” em que se reaprendia como despertar, escovar os dentes, comprar o pão, fazer o café, preparar o almoço o jantar. Para dentro do Anchieta vieram os familiares e com eles fizeram assembléias, festas, saídas monitoradas com os pacientes e integração com os “de fora”, abertura progressiva das portas do hospital fechadas há tantas décadas – melhor comida, mais limpeza.

Mas a estratégia para marcar o fim do manicômio foi simples e determinada, construindo da base os NAPS em que ele se descentralizaria. A criação de enfermarias por critérios geográficos foi essa estratégia, aproximando os pacientes dos funcionários de cada uma, assim como seus familiares e até vizinhos da antiga moradia, fortalecendo os laços. Apesar de sua pequena estrutura, mas com trabalho eficaz, estas enfermarias seriam os futuros NAPS, substituindo o Anchieta aterrador.

Loucura e doença mental são coisas diferentes, dizem os psiquiatras, embora possam se relacionar. loucura é um tipo de comportamento, uma faceta da sociedade presente nas mais variadas manifestações. As doenças mentais são transtornos de saúde, que podem afetar o comportamento, pensamento e sentimentos. disfunção bioquímica ou genética ou, como diz Jung, uma tentativa do organismo de se reorganizar, a loucura é basicamente a perda da noção do “eu”, quando a pessoa pensa que é Napoleão ou Deus, quando perde a identidade.

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18 DE MAIO, DIA NACIONAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL
a luta contra a barbárie

O motor do movimento antimanicomial, que para Carrano nasceu em Santos, foi a repulsa à violência, maus tratos e tortura praticada nos asilos brasileiros. O antigamente chamado Movimento anti-psiquiatria já vive a sua maturidade dos 50 anos: após combater a repressão da Ditadura Militar de 1964, o Movimento brasileiro contra os manicômios voltou em meados de 1970, em torno da mobilização pela redemocratização do país, na luta contra a barbárie. A Associação Brasileira de Psiquiatria / ABP, em ações políticas para defender médicos que haviam sido presos e torturados, como de resto havia sido institucionalizado o eletrochoque para todos os dissidentes do regime, revitalizou, no cotidiano profissional, discussões éticas acerca dos direitos humanos e da necessidade de afirmação dos direitos individuais no país. Apelando para que ninguém fosse submetido à tortura ou tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante e nem arbitrariamente preso, detido ou exilado. Nas palavras de ordem do movimento pela redemocratização, a discussão sobre os fatos trágicos dos asilos brasileiros foi ressaltada e se proclamou a luta pela sua resolução final.

Na década de 80, nomes famosos da antipsiquiatria européia como Basaglia, Foucault e Robert Castel estiveram no Brasil participando de congressos, como Felix Guattari. O Movimento de Trabalhadores da Saúde Mental foi um movimento nacional que reivindicava, a princípio, melhores condições de trabalho nos manicômios com aumento de funcionários, reunindo os sindicatos dos psicólogos, dos enfermeiros e assistentes sociais – pedindo maiores investimentos no setor. No segundo encontro desse movimento, em 1987, em Bauru, é que foi lançado o lema “Por uma sociedade sem manicômios” – na ação reproduzida aqui em Santos, onde também houve um encontro nesse ano.

Esse surgimento marca a presença de uma nova consciência dos profissionais, que exigem uma ampliação da luta técnica afim de enfrentar o poder dos empresários reunidos na Federação Brasileira dos Hospitais – FBH, cujos interesses dominavam as instâncias políticas governamentais. Instituindo o dia 18 de maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, uma postura avançada se arroga nesta luta humanitária de ruptura com os manicômios, incluindo novos elementos estratégicos em sua prática política, entre eles a necessidade de extrapolar os muros dos manicômios e de estabelecer um intenso diálogo com a sociedade denunciando as violências cometidas nestas instituições, que não são do conhecimento público. A luta intensa é contra os que absorvem 93% de toda a verba municipal e apenas 7% aos modelos substitutivos.

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POR QUE O ANCHIETA FOI A QUARTA REVOLUÇÃO DA PSIQUIATRIA – COMO DISSE GUATTARI?

Foi Felix Guattari, psiquiatra francês e autor da Reforma Psiquiátrica daquele país, quem disse que Santos fazia a “quarta revolução da psiquiatria” – a Reforma Psiquiátrica pelas mãos dos envolvidos, militantes, usuários, familiares. Era a palavra de um dos maiores filósofos do mundo que esteve aqui para visitar a obra magistral do Anchieta.

“Os loucos farão a revolução”, dizia o psicólogo Antonio Lancetti e integrante da equipe que “bolou” a intervenção (segundo David Capistrano, a decisão final saiu na casa de Lanceetti em São Paulo), na atitude que, como disse a psiquiatra Suzana Robortella, reunia várias correntes ideológicas da psiquiatria e mesmo das mudanças sociais. Iam de cristãos aos adeptos da anti-psiquiatria radicalmente contra os manicômios, passando pelos farmacologistas adeptos de medicações para “curar” a loucura até os defensores da alegria como método ou, como diria Lancetti, do “erotismo” a que foram acusados os transformadores pelos setores à direita que admitiram a carnificina do manicômio por quase 50 anos.

E por que o Anchieta de 1989 foi a “quarta revolução” da psiquiatria, ampliando a teoria basagliana e realizadora da terceira? A primeira foi a de Phillipe Pinel, que separou os “loucos” dos presos comuns. Pinel criou os manicômios e “disciplinou” os tratamentos dos que antes eram mandados para o alto-mar em navios ou trancados nas prisões comuns. A segunda foi a de Freud, que descobriu a libido no cérebro humano e uma coordenação central baseada no impulso sexual movendo o homem e a história – reconhecendo a capacidade autônoma e individual do ser na psicanálise, superando as estratégias totalitárias de Charcot e da hipnose com a livre associação, em tempos de Skinner e do Behaviorismo “materializando” as teses de Freud.

A terceira revolução da psiquiatria foi a de Franco Basaglia, que em 1971 derrubou os muros do manicômio de Trieste, armando os “loucos” com picaretas e pondo abaixo aquele que por tanto tempo oprimira. Logrou fazer isso depois de tentar mudar o sanatório de Gorizia, em que tentou implantar as mudanças que preconizava para os tratamentos alternativos, tendo aprovado a lei da Reforma Psiquiátrica italiana em 1978. E a quarta revolução, com envolvimento e participação popular dos familiares, pacientes, comunidade e lideranças políticas no vendaval transformador e extintor do hospício foi o Anchieta.

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NA TEORIA DE FOUCAULT, O ESPÍRITO DA
ABERTURA PIONEIRA NO MANICÔMIO SANTISTA

No prefácio que o psiquiatra Michel Foucault escreveu junto com Gilles Deleuze no livro de Felix Guattari (o psiquiatra que explica a Reforma Psiquiátrica francesa em seu livro “A Revolução molecular”), denominado “O anti-édipo, introdução à vida não-fascista”, editado em 1996 pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clinica da PUC-SP, o autor formula um pequeno guia da vida cotidiana. Em que afirma, com precisão, alguns princípios inerentes ao trabalho desenvolvido na intervenção do Anchieta em Santos, coordenado pelo psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita: Escreve Foucault na introdução do trabalho do reformador da psiquiatria francesa em 1960 no Hospice de La Borde:

· Não imaginem que é preciso ser triste para ser militante, mesmo que se o que se combate é abominável;
· É a ligação do desejo com a realidade que possui uma força revolucionária;
· não exijam da política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, ele é um produto do poder e o que é preciso é desindividualizar pela multiplicação e pelo deslocamento, o agenciamento de combinações diferentes;
· O grupo não deve ser o liame orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de desindividualização;
· E finalmente, não se apaixonem pelo poder.

Cada um destes princípios está inscrito na história da intervenção, que atuou (com alegria, elemento essencial) para dissolver o manicômio, não apenas “restabelecer direitos” dos pacientes. Foi coletivizando, nas eufóricas festas e eficientes cooperativas, que se criaram meios para que aqueles seres assumissem sua individualidade. E não houve paixão pelo poder na constituição de um novo manicômio, um novo sistema “melhorado” de contenção dos pacientes, que, por ironia, apenas reduzisse a voltagem dos eletrochoques e ampliasse a alimentação e a limpeza, oferecendo camas com travesseiros e cobertas que não haviam antes. Era preciso desconstruir.

Era preciso instituir o não-poder, para restabelecer o princípio humano daqueles seres. E extinguir a instituição. ”Todos sabem que existem cidades que foram construídas para serem destruídas”, inicia uma matéria do D.O. Urgente de 14 de agosto de 1989, 3 meses após a intervenção, entrevistando Tykanori. A frase, tirada de uma canção do cantor e compositor Caetano Veloso, conta Roberto Tykanori Kinoshita, então com 30 anos, sobre suas concepções a respeito do Anchieta, para o que foi nomeado interventor – reproduzindo e ampliando o que fizera o psiquiatra Franco Basaglia em Trieste – quando os próprios pacientes derrubaram os muros com picaretas. Antes de ser nomeado para coordenar o Programa de Saúde Mental de Bauru, interior do Estado de São Paulo - de onde veio para trabalhar no Anchieta -, Tykanori trabalhou no Ambulatório de Saúde Mental de Vila Brasilândia, em São Paulo, Capital, na coordenação do ERSA / 7 – Escritório Regional de Saúde do Governo estadual -, e também no Posto de Emergência Psiquiátrica de Ferraz de Vasconcelos, a primeira experiência do gênero em um hospital geral.

Tikanory, estagiário de Basaglia
Em 1982, Tykanori fez um ano de estágio no Centro Psiquiátrico Regional de Trieste, Itália, onde manteve contato com as teses da Psiquiatria Democrática idealizadas por Franco Basaglia, que morreu em 1980. Que defendia, numa análise simples, não só a humanização do tratamento do doente mental, mas também a desativação progressiva dos hospitais psiquiátricos e a integração dos ex-internos ao contexto do resto da sociedade. Expondo as linhas gerais do programa que prevê a desospitalização progressiva dos pacientes, ele analisa o programa santista, “o primeiro em termos de Brasil”, classifica, checando na prática o funcionamento de um hospital. Organizando e dissolvendo o manicômio, trazendo cidadania e dignidade e sua dissolução para progredir rumo a um atendimento descentralizado.

Tyka diz que 90% das verbas do INAMPS destinadas a Saúde Mental são utilizadas para a compra de leitos psiquiátricos em instituições privadas. “Hoje, diz Tykanori, existem 40 mil vagas em São Paulo, metade disso seria suficiente”, considera. “A média de permanência é de 5 anos e há, logicamente, interesse em reter por mais tempo possível para dar lucro, sem quaisquer resultados positivos para a recuperação do cidadão que ali é confinado”.

“É preciso reconstruir a história pessoal dos pacientes, pois o arquivo do Anchieta está entulhado de envelopes empoeirados com a ficha dos pacientes” - explica, sem a história clinica dos indivíduos e os processos aplicados, apenas a doença em que foram rotulados a época da internação. “Assumimos o hospital com 76 funcionários, hoje estamos com 180, porque prioritariamente, precisávamos implantar uma filosofia de atendimento humanitário, mesmo desconstruindo o hospital, com respeito aos direitos humanos”, explica o psiquiatra.

Como medidas, ele fala sobre a instalação de uma casa preparando as pessoas para viver lá fora: reintegrar, recuperar, reviver. Redescobrir o que se era antes, o que se é agora e o que se será depois. O Anchieta agora tem uma casa dentro dos muros, preparando para viver lá fora. Diz a reportagem: quem vê o Anchieta agora, acompanhando o processo de intervenção desde seu início, certamente tomará um choque, não um eletrochoque, com os cenários reformados e transformado, portas trancadas agora abertas, pacientes que recebem visitas de parentes e ex-internos. Guarda-roupa, televisão, fogão, tudo de um lar. É o novo Anchieta, se preparando para não mais existir.

O pioneirismo do trabalho executado no Anchieta
Tykanori explica que o pioneirismo nacional e mundial do processo executado no Anchieta, da substituição dos métodos de tratamento, reuniões de grupos, encaminhando os pacientes para suas profissões, “devolvendo-os” para a sociedade. “Há vários pintores, pedreiros, cozinheiros, garçãos, etc., entre os internados”, diz Tykanori, “em condições de suprir a sua total subsistência, cabendo ao hospital apenas fornecer o apoio médico necessário a essas pessoas”. “Aliás, segue, não se deve nem falar no hospital como ponto de apoio, já que nossa intenção é descentralizar o atendimento através de ambulatórios descentralizados por toda a cidade”.

Ele conta sobre as festas, passeios e atividades esportivas mostrando ao paciente o que existe ‘lá fora’, em passeios ao Orquidário, à praia, concertos de música, cinema. “Estamos apenas começando, começando”, diz, observando ser esta uma parte “indissociável” do programa. “A discussão da estrutura dos manicômios ficou restrita a um debate teórico”, considera o psiquiatra, que expõe ser em Santos que os princípios debatidos desde as décadas de 60 e 70 no mundo se concretizaram. “No início dos anos 80 é que os técnicos defensores de uma nova abordagem para o tratamento da doença mental assumiram cargos importantes em alguns dos governos estaduais eleitos em 1982 - e se registraram alguns avanços concretos”, explica. “Houve um avanço da psiquiatria comunitária e preventiva, com a instalação em São Paulo, especificamente, de redes de ambulatórios. Mas a discussão se restringia a um âmbito interno. Nunca se chegou a interferir direta e profundamente na estrutura de um hospital, como fizemos em Santos”, finaliza.

Disse Kant que nem todos os homens são felizes, mas todos tem o direito de sê-lo. A altitude política de resgatar a cidadania e a felicidade de um contingente marginalizado e oprimido, tomado no episódio da intervenção no Anchieta, fez parte de uma ampla proposta de regeneração social, que agiu redimensionando prioridades, invertendo demandas de recursos públicos, modificando o cenário da cidade. Alguns dos objetivos foram alcançados, outros adiados, mas todos perseguidos no objetivo da justiça comum. Foi o tempo novo de tratamentos especializados, internação, passeios, terapia ocupacional, laços com a família, atividades culturais ou alta – cada caso era um caso, como sempre deveria ter sido. Mas era a primeira vez que os pacientes eram tratados individualmente.

Disse uma vez o psiquiatra Tykanori que no Anchieta não se inventaram coisas novas - apenas se seguiram os ensinamentos básicos da psiquiatria. Foi a vontade política de um conjunto que fez possível esta reversão rumo à regeneração humanitária, baseado na ética, palavra que, originária do grego clássico, significa “costume”. É o conjunto dos costumes, dos nossos costumes, que impedem que façamos ou permitamos crueldades contra nosso semelhante. Foi assim com o Anchieta, ética da cidadania. Pelo seu significado, no contexto da luta política, este esforço contribuiu para erradicar as mazelas de uma sociedade historicamente baseada na força e no medo, como métodos de dominação. Outras lutas e vitórias viriam, derrotando resquícios da mentalidade escravagista imposta desde a colonização, recolocando o homem no centro do universo: “gente é feita prá brilhar”, se escrevia na época. Assim, esta história não poderia se circunscrever aos profissionais do ramo ou a uma elite: ela exige ser transmitida para o conjunto da população, dando vez à compreensão de seu sentido. E é o que tentamos fazer, década e meia após esta (mudança da) história.

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A “REPÚBLICA ANCHIETA”, HOJE

O prédio da Casa de Saúde Anchieta tem três andares – ou dois, em parte do prédio -, mais de cinco mil metros quadrados de área, traços modernistas de elementos circulares vazados na sólida porta e na decoração interna da entrada pela rua São Paulo. São cerca de 80 salas ou quartos e tem jeito de penitenciária – um Carandiru santista, assustador -, construção dos anos 40. As inscrições dos pichadores na entrada, com símbolos do rock, denunciam o abandono, internamente não é diferente, em uma degradação contida e mantida com a disciplina de Dolid. Vejamos: escadas e corredores estreitos e escuros. A antiga sala dos eletrochoques, com uma grande maca de concreto, fica em um lugar aberto, como para ser assistida, anexa a uma área descoberta. Hoje, sua parede é rosa, pintada nos tempos da intervenção.

Em frente à sala de eletrochoques, três macas de concreto menores, com marcas de presilhas, provavelmente para amarrar pacientes e aplicar os “medicamentos” como o “sossega-leão”. Na parte mais alta do prédio central, o piso de paviflex mostra uma área nobre, um setor “especial” e reservado; no térreo, as celas fortes 2 x 1 metro, sem banheiros ou janelas, paredes grossas da construção antiga, piso de concreto – um espaço aterrador em que pessoas eram mantidas por meses como animais ferozes. Banheiros com três ou quatro boxes, bebedouros. A água da chuva invade algumas salas, algumas inundadas, apesar das reformas. Com muitos, é um prédio escuro e fechado, poucas janelas, hoje quebradas.

O “prefeito” do Anchieta
Desapropriado pela Prefeitura que o utilizou após a intervenção em programas de assistência às crianças de rua e depois o devolveu aos donos, o prédio é “namorado” hoje por inúmeras entidades que pretendem adquiri-lo, sonhando em ocupá-lo – entidades universitárias e hospitais, entre outras, que o visitam. Um processo de difícil viabilização, pois está vinculado às inúmeras dívidas trabalhistas da Casa de Saúde. Um tanto destruído pelo tempo e pelas invasões e depredações que sofreu, foi Dolid, um vizinho que, há cerca de 4 anos e meio, alertado para o tumulto que estava causando a invasão de moradores de rua do antigo prédio, colocou rédeas na situação – e hoje administra uma ocupação racional, porém precária, do espaço.

São cerca de 40 pessoas que moram lá, 8 ou 9 famílias “de trabalhadores”, diz. Na época, ele comprou uma casa ao lado e, impedido de construir na área por normas legais, seu objetivo inicial, mantinha um bar no local - que ficou inviável com o fim da intervenção, quando freqüentavam e trabalhavam no prédio cerca de 150 pessoas. É o “prefeito” do lugar: fornece luz e água de seu imóvel ao lado e cobra taxas dos moradores pelo uso, tendo feito instalações e consertos – quem preserva o imóvel com ações de manutenção e disciplina. Ele nasceu quando era fundado o Anchieta, em 1951, hoje, é o “prefeito” da “República Anchieta” – lembrança trágica de tantos sofrimentos e, ao mesmo tempo, palco de uma transformação revolucionária nas relações humanas.


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QUINZE ANOS DEPOIS, A COMUNIDADE COMEMORA 15 ANOS DA INTERVENÇÃO NO ANCHIETA, EM DEFESA DA DIGNIDADE HUMANA

A comemoração de uma década e meia da intervenção municipal no Anchieta foi realizada no dia 27 de maio de 2004 no Campus D. Idílio José Soares, o mais novo espaço da Universidade Católica de Santos, a Unisantos, no auditório 310 do prédio da avenida Conselheiro Nébias 300, bairro da Vila Mathias. Era o mesmo bairro em que nasceu 53 anos antes o Anchieta - e a mobilização para o encontro que marcou década e meia da revolucionária intervenção que marcou época reuniu centenas de pessoas, confirmando a principal característica da iniciativa que foi a de envolvimento e mobilização popular em torno de medidas técnicas com objetivos sociais. Para promover mudanças de fato e não apenas reformar, mas extinguir o manicômio e seu sofrimento, era necessária uma ampla mobilização popular de todos os setores envolvidos direta e indiretamente, ou seja, neste caso, a cidade como um todo e mesmo o partido político que comandava o processo e especialistas internacionais.

O resultado disso é que os resultados foram tão positivos e conquistados por uma ampla rede humana com direito a um “luau“ – festa na lua, em uma barraca de praia - no sábado 29. No dia 28 seria elaborada uma Carta de Santos para construção de uma agenda local para a saúde e cidadania, que ficou para um próximo encontro no dia 3 de junho. “A carta não tem nenhum valor legal, disse Carla, mas é um compromisso ético”, esclareceu. Dia 27, duas mesas de debatedores falaram do Anchieta no tema “Desdobramentos da intervenção na atualidade” e teve lugar uma mesa-redonda que falou sobre o tema “Por que e o quê eu estudei, criei, escrevi e falei sobre a Saúde Mental de Santos”. Era dia de jogo do Santos na “Libertadores”, mas nem isso e nem pelo fato da programação não ter merecido espaço no único jornal local diário reduziu suas proporções.

Adélia, junto com a mãe Aidée, viúva de David, fala ao público presente como filha do impulsionador da intervenção no Anchieta, o então secretário de Saúde de Telma David Capistrano, então homenageado. Ela está estagiando no Charcot como estudante de psicologia. Presentes lideranças nacionais do movimento antimanicomial, psiquiatras, parentes, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais. Talvez daí tenha nascido o questionamento de David a estas instituições. No dia 28, das dez da manhã às cinco da tarde a programação do CRP Baixada Santista e Vale do Ribeira teve Oficinas de Convivência e das dez ao meio-dia Oficina de Pintura, coordenada pela psicóloga Carla Sartorelli e Mirella Chaves Laragnoit. Das 14 às 16 horas Oficina de Ikebana sob a coordenação de Haroldo Sato e às 19 horas, no Campus D. Idílio, depoimentos. Às 20 horas foi a vez dos coordenadores de Saúde Mental da região e a presença da articuladora regional do DIR-19 Paula Covas Calipo, debatendo “Temas e agendas locais para a Saúde Mental e cidadania. Carta dos 15 anos da intervenção na Casa de Saúde Anchieta”.

No dia 29, sábado, ocorreu a confraternização de encerramento com um “luau”- uma festa à luz da lua - na barraca de praia da Unisantos, no Boqueirão. A promoção deste encontro comemorativo foi do Conselho Regional de Psicologia / Subsede da Baixada Santista e Vale do Ribeira, Conselho Federal de Psicologia, Curso de Psicologia da UNISANTOS, associações Franco Rottelli, Franco Basaglia, Maluco Beleza e Diferente Cidadão. A primeira mesa, no dia 27, foi coordenada pela psicóloga Carla Bertuol, do Conselho Regional de Psicologia – CRP e da UNISANTOS, aberta com uma homenagem ao ex-prefeito David Capistrano. E a tônica dos discursos variou pouco entre as saudações à primeira concretização dos ideais da Reforma Psiquiátrica no país e ao papel desempenhado pelo ex-prefeito como articulador de uma lei que seria aprovada quase uma dúzia de anos depois.

Florianita e Cida: mais louco é quem me diz!
“Foi um casamento perfeito, diria, sem deixar ciúmes na sua esposa Aideé, esse entre David e a Saúde Mental”, disse a psicóloga Florianita Coelho Braga Campos, integrante da intervenção e professora de Psicologia da IPF/PUCC de Campinas, coordenadora da sub-sede do CRP aquela cidade, membro do movimento Antimanicomial, em seu depoimento no dia 27. Aberto “com carinho e emoção” pela psicóloga Carla Bertuol, coordenadora da sub-sede do CRP de Santos, houve apresentação musical da doce voz de Cida e do violão de Moisés – “mais louco é quem me diz...”

“Eu juro que é melhor não ser normal, se posso pensar que Deus sou eu... Se eles rezam muito eu já estou no céu...”. Moisés falou da fábula grega da mitologia, contando que a loucura ficou com medo do amor e o deixou cego e foi condenada por Zeus a conduzi-la pela eternidade, por isso andam de mãos dadas. Foi feita uma homenagem a Cybele Barreiros, uma terapeuta Ocupacional e uma salva de palmas “para os trabalhadores da Saúde Mental”.

No saite “reforma manicomial”, Florianita escreve idéias como o que explica que todos os projetos na área desde a Portaria 224 / 92, o Projeto de Lei de Paulo Delgado, além da lei do deputado estadual Roberto Gouvêa, não visam apenas “reformar” o manicômio – “ e sim extinguir a instituição total que o manicômio representa”, escreve, a “instituição total” como denomina Goffmam os institutos de internação manicômios. O que se há de reformar é a assistência psiquiátrica.
“A psiquiatria, diz, que foi por séculos usada para contenção geográfica e medicamentosa de pessoas indesejáveis e difíceis, pois ‘diferentes’ da norma -, a sociedade não conseguiu nesse tempo resolver a vida de quem estava sob seus cuidados...”

Jacaré, reagindo ao eletrochoque: “Vai dar na família dele!
No mesmo dia 28, em que o dia fora das Oficinas de Convivência, de Pintura e de Ikebana, fizeram depoimentos o militante antimanicomial e familiar de um paciente Geraldo Peixoto – que teve seu filho internado - e um ex-paciente como o “Jacaré”, José Gonçalo Araújo, que fez também uma apresentação musical com o que Geraldo chamou de “um clássico” do tema, chamado “Borracha prá quê”, que fala sobre a repressão. “Jacaré Gullarstone”, seu nome artístico, disse que a intervenção devolveu a vida, a honra e a dignidade de muita gente” e que David “é o pai da Saúde Mental”, que por causa dele “há 15 anos estou livre daquele marasmo, daquela coisa horrível que aniquilava pessoas.

“O Dr. Paniza dizia que o eletrochoque fazia bem para as pessoas, que era para acalmar. Por que ele não aplicava na família dele?” Jacaré discursou com sua linguagem típica dizendo que “Saúde Mental não é pasto e nem corrupção nem escravos humanos que tem que acabar, que fez uma calamidade humana, não é para amarrar nem para dar choque”, disse, sob palmas. E cantou “Borracha prá que”: “Estamos na corrupção / borracha e o governo achando legal/ não respeitam o direito de ninguém / estamos na democracia e o povo quer total liberdade/ manicômio não é feito para pessoas humanas: qualquer coisinha de depressão, vamos dar borracha nele!”

Geraldo Peixoto, militante de pele
Professor de Educação Física, pai de um paciente, em seu depoimento no dia 28 saudou as pessoas da Saúde Mental que continuam fortes mesmo quando sofrem, que amam o novo e que não tem medo dele”. Dia que não conheceu a intervenção municipal, mas que conviveu com ela depois de 1992 “e hoje minha vida tem dois momentos, um antes e um depois do Anchieta. Lembrou de Silvio Assi, hoje professor em Assis e de Erotides Leal, psiquiatra, psicanalista e que participou por 3 anos da experiência local, desde 1989, acreditando que “uma outra psiquiatria é possível” e que o Anchieta “foi um feito valioso para a reforma Psiquiátrica brasileira”.

O poema de Luiz Fernando
Os antigos pacientes presentes, os “loucos” de outrora, ao invés de incomodar ilustraram o ambiente de festa, com o Radir Rodrigues Coelho, um ex-paciente, lembrando o nome dos agentes transformadores, mostrando a capacidade de integração daquelas pessoas antes amarradas e eletrocutadas com toda espécie de doenças que, na primeira noite cantaram e tocaram na voz suave de Cida, ao som do violão de Moisés. Luiz Fernando Barbosa recita seu poema “As perdas”, que distribuiu no luau do sábado na praia, na barraca da UNISANTOS. Com 38 anos, ex-paciente, de São Vicente, faz poemas em profusão, tem material, diz, para três livros, tendo feito várias peças e filmes como ator – inclusive “O rapto de Perséfone”, montado no NAPS vicentino.

“Trabalhar as perdas, diga-se de passagem, requer paciência e sabedoria / nem sempre perder é uma coisa boa, pois requer sacrifício para quem perde / há que entender quem pede, ganha um tempo para compreender sua perda, mesmo que isso seja doloroso... / a perda é sempre uma coisa positiva e negativa, por que será que o perdedor vem se questionando sua perda? Acho que a perda é pobre ou rica por natureza. Portanto, parei para avaliar a perda e fiquei a contar por quanto tempo ela fará mal a mim / A perda é terrível para todos, é o mal maior, sem dó, sem dor. Por fim, a perda é mesmo dolorosa...”

Ele recitou também seu outro poema “A loucura”, que pergunta...

“Que loucura é esta que não chega a lugar nenhum? Como e onde a loucura está? Por onde posso ser sadio e louco ao mesmo tempo? Até que ponto somos loucos? Os loucos são sadios ou os sadios são loucos? Por onde a loucura conhece a verdade plena? Aonde e quando a loucura pode ser acreditada? Qual a definição da loucura? A loucura é mesmo a loucura? Ou a loucura é um tempo transitório? Rodei por todos os cantos e encontrei um louco varrido, mas ele me dizia as coisas mais maravilhosas possíveis – e cheguei a conclusão que a loucura é um tempo temporário de pensamento contrário à sociedade...”

Pedro Delgado, militante secular
O coordenador nacional de Saúde Mental, Pedro Gabriel Delgado, militante histórico do movimento antimanicomial e irmão do deputado federal autor da lei de reforma Psiquiátrica, Paulo Delgado, estava lá no dia 27 – e em face dos pronunciamentos exigindo avanços nos tratamentos alternativos e fim dos manicômios, fez uma análise real dizendo do encontro que teve em Brasília e pelo que temia essas pressões, mas as que recebeu “foram dos empresários do setor que pressionaram para que tudo ficasse como está. Há um lobie poderoso do setor”, disse. Pedro milita na área desde 1974, quando era estudante de medicina em Barbacena e tomou contato com a questão manicomial, voluntário que atuava no manicômio daquela cidade mineira. Em 1985 esteve no “Tribunal Basaglia”, realizado no Centro Cultural Rebouças, no julgamento público dos manicômios.

Coordenador nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Pedro foi integrante da Comissão Organizadora do 2º Congresso da ARTSAM em 1987 (na verdade o 1º, porque o de Camboriú em 1978 não foi um congresso, foi um encontro”, lembrou, ao que acrescentou Stamato que o grupo antimanicomial “tomou” a direção dos trabalhos), membro da Rede Nacional Internúcleos da luta antimanicomial. Conforme ele se manifestou no encontro comemorativo dos 15 anos da intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta, “Em defesa da dignidade humana”, esta foi uma “experiência épica”: “Após as vicissitudes políticas para se manter as conquistas, Santos é uma experiência forte que conseguiu se manter, embora diante de mudanças políticas desfavoráveis a que a democracia nos obriga”, disse. “Foram mudanças que impressionaram o país como um todo, a cidade fincou o pé na história, é o exemplo de David”.

Delgado disse que ao tempo do Anchieta existiam 25 mil leitos psiquiátricos a mais do que hoje, “muitos Anchietas foram fechados depois desse”, exemplificou. “Existiam 13 NAPS, hoje existem 530, são 12 mil trabalhadores da Saúde Mental que não precisam trabalhar em manicômios, mas sim em uma rede alternativa que está se enraizando. Falando das comemorações do Dia da Luta Antimanicomial em 18 de maio, lembrou estar temeroso das pressões como aquelas que se faziam no ato para fechar os manicômios ainda existentes, “mas o que aconteceu foi o inverso, pressões do ‘lobby’ para se manter tudo como está, o que é preciso rejeitar pois não podemos admitir o retorno aos tempos de barbárie”.

O coordenador nacional lembrou David – “a psiquiatria oficial é uma psiquiatria sem manicômio” - e frisou que hoje a “psiquiatria oficial” é esta que estamos construindo. “O exemplo de Santos se expandiu pelo país e internacionalmente”, garantiu, “vale a pena correr o risco em busca de utopias”, disse, “esse norte ético de inclusão social”. Pedro Delgado falou do encontro de 190 países em que o Brasil fez o único pronunciamento sobre Saúde mental, que quem fez o pronunciamento foi o ministro Humberto Costa “que é um psiquiatra”, que entre a alternativa da tortura de um lado e da terapia do outro o Brasil adotou a segunda alternativa.


Tykanori
O “comandante” do processo, falou sobre o desenho que ilustrou o prospecto e o cartaz do encontro, que mostra um raio de luz entrando por uma porta e três pessoas como que saudando aquele momento: “Isto é uma visão de um paciente – disse -, que contou que jamais saiu de sua memória o momento em que entraram pela porta adentro os interventores naquele 3 de maio de 1989, ‘um raio de luz que entrava e invadia o Anchieta, esta a imagem que eu tenho’, ilustrou. Era o espírito da intervenção”. Tykanori falou do momento pós-constitucional que vivia o país, quando os municípios recebiam novas incumbências e poderes, “um momento particular, de intensa mobilização social não só no governo como na sociedade. “Me lembro como hoje daquele momento da intervenção com duas ou três rádios transmitindo ao vivo, fazendo ’flashes’, entrevistando pacientes sobre as torturas a que eram submetidos, às suas precárias condições de vida ali. ‘Por que esse médico não vai fazer isso com a mãe dele?’, perguntavam no ar os pacientes. Santos marcou a história da psiquiatria na Carta de Caracas que participamos com este ato fundamental no resgate de direitos”, enfatizou.

Melhado
O também ex-interventor Luiz Antonio Melhado contou alguns episódios como a morte de um rapaz que havia sido pego na praia com roupas estranhas e, sem mais nem menos, mandado para o Anchieta – onde foi colocado em uma cela-forte junto com um etilista. Falou sobre a noite em que foram ao Anchieta ele, David Capistrano e o médico Sérgio Zanetta diante de uma denúncia de internação em cela-forte e o “louco perigoso” saiu da cela e sentou-se calmamente em frente, sem nada que justificasse o ato. “Alguém tinha que ficar de plantão o resto da madrugada e foi escolhido o Zanetta”, lembrou. E também do dia em que “fugiram” 14 pacientes, tento o citado médico respondido à imprensa que eles não haviam fugido, “eles se deram alta”, contou, sob risos. Se tiveram condições de articular a fuga, estavam em plenas condições de enfrentar a rua, isso era um fato.

Lancetti, criador
“A primeira nota que me vem a mente neste ato determinante do ponto de vista institucional que foi a intervenção no Anchieta, é que em 1921, quando começaram a ser publicadas as descobertas da psicologia por Sigmund Freud ele era acusado de ‘pan-sexualismo’, que ele incentivava as relações sexuais entre os pacientes, o que respondia dizendo que não poderia ceder à pulsilamidade” - fraqueza de ânimo, covardia -, pois não era esse o objetivo. “Quando nos preparávamos para iniciar o processo, ninguém conhecia ninguém, Telma (a então prefeita) não sabia quem éramos nós”, disse o psicólogo Antonio Lancetti com seu sotaque característico de Buenos Aires.

“Então Telma disse: gostei do gringo, vamos lá!. Temos que render a ela nossa homenagem e também o nosso protesto, porque ela deveria estar aqui e não na China”, brincou, sob risos, pois a ex-prefeita havia viajado com o presidente Lula e comitiva para aquele país. Psicólogo, psicanalista e analista institucional, Antonio Lancetti contou desde as acusações do uso de “erotização” no Anchieta, sob risos, já que isso implicava no retorno à vida dos pacientes antes dopados e/ou massacrados, falou de Felix Guattari para quem estava acontecendo em Santos a “quarta revolução da psiquiatria”.

Para Lancetti, todo o programa posteriormente desenvolvido nos projetos “Meninas de Santos” e “Moleque”, entre outros, eram reproduções do Anchieta, o que havia percebido David. “Fomos processados por causa dessa é ‘erotização’ e quando fomos falar dela diante do delegado, David me chutava por baixo da mesa para não tentar explicá-la”, contou Lancetti. “Uma das coisas mais maravilhosas que aconteceram com estes métodos que envolviam o Renato di Renzo e sua ação terapêutica com danças e brincadeiras é que os meninos paravam de usar crack. Foi esse o método da ‘escola de verão’, uma ‘segunda época’ para todas as crianças que não haviam conseguido aprender, os ‘burros e bagunceiros’ da classe faziam uma nova escola.

E a cada escola em que era lançado o programa, David soletrava a letra daquela canção que dizia ‘é muito mais...” (“que os homens não conseguem entender, e as mãos não ousam tocar”- Paulinho da Viola, N.R.). Ninguém fica igual após esse caráter revolucionário de uma transformação permanente, como lembrou Guattari, mudanças que não tinham donos ou patentes nem reservas e que aconteciam a cada instante”, continuo Lancetti. O psicólogo lembrou que “o triste dessa história é que esse método, uma das razões para que a gente fique contente, é que apenas David – que escreveu uma das páginas da história brasileira – podia fazer e isso o fez insubstituível”, completou.

Marcus Vinicius, radical
O “incêndio” ficou por conta de Marcus Vinicius de Oliveira, da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, um militante antimanicomial antigo que lembrou a “conjunção astrológica muito particular de Santos naquele momento há 15 anos, no resgate de uma idéia de uma sociedade sem manicômios, como dizia Franco Basaglia”, disse. Mineiro mas com forte sotaque nordestino (“Estou há 15 anos em Salvador”, contou), para Marcus o Anchieta provou que era falsa a chamada “impossibilidade técnica” de se atender psicóticos em um regime de liberdade, uma idéia dos “subversivos” da luta antimanicomial que se espalhou pelo Brasil provando que podiam sim ser tratados em liberdade.

“Essa experiência iluminou muito o cenário brasileiro”, ressaltou Marcus. “E isso aponta para o projeto pelo fim dos 50 mil leitos psiquiátricos que ainda existem no Brasil, que reproduzem o tratamento que antes existia no Anchieta, é preciso outro David para um enfrentamento radical, não podemos enfrentar mais duas décadas”- ressaltando que é “é preciso pressionar o Governo Lula terminando definitivamente com os leitos psiquiátricos no segundo governo, resgatando o ímpeto do movimento social para alcançar uma sociedade sem manicômios”, disse.

A segunda mesa da noite
Na primeira mesa de debates, no dia 27, coordenada por Carla Alessandra Sartorelli, estava Fernanda Nicácio, que narrou o que chamou de “os dias mais belos da minha vida” no NAPS da Zona Noroeste, “construindo as ‘redes de afeto’ com prazer”, disse. “Santos foi a primeira cidade sem manicômios do país”, disse divulgando a idéia de uma sociedade sem manicômios, na utopia em que contribuíram Franco e Franca Basaglia – enumerando as 4 questões mestras do processo:

1. O processo coletivo na prática da experiência;
2. Tykanori, o que é Saúde Mental? É poder, afeto e liberdade;
3. Rotteli e a experiência de Trieste, a nossa experiência: se nos resta o desejo da proximidade, importante é descobrir que os defeitos não são vazios, mas podem ser preenchidos por nossas ações;
4. David Capistrano: para o sucesso da saúde é preciso paixão e indignação.
Além de Fernanda, que atuou na coordenação do processo desenvolvido em Santos, a terapeuta ocupacional Stela Maris disse da “radicalidade” da experiência de Santos em 1989, “o ano que não terminou”, disse, parafraseando o titulo do livro que historiou a revolução estudantil mundial de 1968 contestando todas as estruturas herdadas do positivismo. “Com um trabalho de profissionais e militantes, Santos se fez inédita, garantindo o direito de ir e vir do usuário, o encontro dos diferentes – lembrando a “Casa Manequinho” dos ex-pacientes caminhando para a cidadania plena. E a frase de Mario Tommasini: a vida sempre vence!

Fátima Micheletti, carinho e eficiência
Ela passou horas com um paciente com “transtorno bipolar”, que alterna estados de euforia e depressão – falando carinhosamente ao seu ouvido, um exemplo típico da atitude no Anchieta -, narrou sua experiência em que nunca havia entrado em um manicômio. “Fui convidada para trabalhar com a equipe de intervenção, entrei e não quis ficar, assustada, mas fui levada para conversar e tomar um café com o Tykanori”.

Ela continuou dizendo “Bendito café aquele, porque aprendi junto com a equipe que devolveu a vida aquele ambiente, o desejo de mudar e sentir a dignidade humana, tudo inusitado” e lembrou o que disse Tykanori: “não é preciso entender de psiquiatria, mas ter o coração aberto”. E Shakespeare: “É loucura, mas há método”. Florianita Braga Campos disse que não participou diretamente da internação, só torceu – e do “casamento feliz” de David com a Saúde Mental, fazendo crescer a luta pela Reforma Psiquiátrica brasileira e não admitiu o recuo na área, “o hospital não voltou, apesar das dificuldades” E isso é uma vitória”, concluiu.

Silvia Tagé
A professora da Unisantos Silvia Tagé lembrou David, que dizia que da reconstrução de laços entre os pacientes e suas famílias todos podem participar. “Eu estava em casa e recebi um telefonema de David, que estava precisando de assistentes sociais, uma equipe que amplie para 9 integrantes entre muitos outros técnicos e profissionais - criando uma dependência com a Saúde Mental. Ela fez uma dissertação sobre o tema e lembrou frases-princípio da ação como “gente é prá brilhar”e “a liberdade é terapêutica”, falando sobre a aglutinação da cidade em torno da Saúde Mental, artistas, profissionais, cidadãos.

Mestre Stamato e Raul Seixas
O psiquiatra Domingos Antonio Stamato, de longa e antológica história de participação na luta antimanicomial, foi saudado como “mestre” por numerosas figuras que trabalharam no programa de Saúde Mental em Santos e em São Vicente. Ele, única personalidade masculina na mesa que participou, disse que iria falar de um tema “que ninguém havia falado” - as festas e seus lemas musicais baseados em Raul Seixas e sua “sociedade alternativa” (“Viva! Viva! Viva a sociedade alternativa!”) – o que foi a base do processo de reintegração social daqueles seres que dançaram, cantaram e pintaram, representaram e se expressaram após tanto tempo reprimidos.

Disse que eles, os pacientes, são “intuitivos” e se fez uma “construção coletiva.” Stamato falou das tradições libertárias de Santos, dos quilombos e do porto vermelho sobre o que escreveu Ingrid Sarti, na história dos estivadores, falou sobre o Anchieta - símbolo da tortura e da violência, mas foi mais fundo e disse sobre o próprio processo interno “em que perdemos muito em brigas pessoais as oportunidades”, lembrando a própria perda da Prefeitura – narrando uma fase em que ele próprio foi afastado da equipe junto com sua mulher, atuante na área, a psicóloga Isabel Calil. “Santos não voltou atrás porque resistimos, porque queriam sim acabar com os NAPS”, lembrou.

Falando dos tempos da intervenção, Stamato recordou a iniciativa sua e de um grupo que saiu pelas faculdades falando nas classes durante o processo, contatando as famílias e engajando-as na atitude revolucionária. Para Stamato, a experiência foi um “rito de passagem”, quando uma de suas filhas (tem 4), que hoje tem 15 anos estava nascendo, “trazendo hoje toda a doçura daquele momento”. Comentou as lições dos velhos anarquistas da ‘ação direta’, das ações imediatas, espontâneas e na raiz tomadas naquele momento, na luta “por uma sociedade sem manicômios”.

Na parede, o texto de Domingos Stamato falava do Anchieta, localizado “no circulo da Vila mais famosa do mundo, o estádio Urbano Caldeira, do Santos Futebol Clube, próximo à primeira Santa Casa do Brasil e ao lado do Hospital Beneficência Portuguesa”. Explicou que o Anchieta era um modelo hospitalocêntrico financiado pelo SUS e que o desdobramento maior da intervenção foi a criação da Unidade de Reabilitação Psico-Social – a URPS -, substituindo a internação asilar. “Era um manicômio despojado de recursos e compromissos sociais”, relata, “e a intervenção foi a introdução de uma peça necessária ao exercício da cidadania com inserção na trama social”.

“Concepções, reflexões e contribuições da psiquiatria basagliana alteraram o modelo gerador de segregação, discriminação, estigmatização e cronificação”, segue Stamato, que lembra o congresso de 1980 da ARTSAM e as primeiras conquistas do movimento que foram a desativação do chiqueirinho no 1º DP e a implantação do ambulatório de Saúde Mental na Zona Noroeste. “O paciente deixou de ser um objeto e um rótulo, um diagnóstico, e passou a ser tratado como sujeito, protagonista de sua vida de sua história”, escreveu. “A cidade absorveu seus ‘loucos’, foi percebendo a importância do respeito às diferenças com apoio dos profissionais e da cidade, conquistando sua expressão e construindo sua identidade”.

Suzana Robortela: “Eletrochoque só para assar frango”.
A frase é de Suzana no “luau” na praia, ela que no segundo dia do seminário, diante dos relatos burocráticos dos responsáveis pela Saúde Mental nas cidades da região “botou fogo” nas deficiências encontradas, “onde falta tudo desde o papel higiênico”, disse sobre os núcleos de atendimento à Saúde mental hoje. Ela declarou que após 1996, quando acabou a administração David Capistrano, “corações e mentes foram abortados”.

“Todo nosso trabalho é mostrar que o manicômio não tem razão de existir. É o convívio social que traz as pessoas de volta. e respeitando o modo de ver o mundo das pessoas, mesmo com delírios, que se pode ajudá-las”.

Suzana fez dissertação de mestrado sobre o tema (“Relatos de usuários de Saúde Mental em liberdade – o direito de existir”), UNICAMP, 2000), para ela um método de fazer a “digestão”de tanto aprendizado acumulado, falando de Edgar Morin e da “Mitologia da ordem”, da “utopia de uma sociedade transparente, sem conflitos e sem desordem”. Ela disse que para escrever o trabalho tentou aplicar “a dor com a razão”.

Outra grande liderança desse processo e mestre em Saúde Coletiva, a psiquiatra Suzana Robortela narrou em seu trabalho a experiência única que conseguiu em 5 anos acabar com um manicômio de 50 anos, “superando até o exemplo da Itália, uma atuação em que o fio condutor eram os próprios pacientes”, disse. A segunda mesa do segundo dia do seminário, no dia 28, foi coordenada por Berta Esteves, presidente do Conselho Municipal de Saúde. E entre os integrantes estava Paula Covas Borges Calipo, do DIR-19 / Direção Regional de Saúde da Baixada Santista, articuladora regional do setor.

Ela falou do Dia da Luta Antimanicomial e do que se fez na área “a partir do movimento da Reforma Psiquiátrica na década de 80, marcando a presença de uma nova consciência dos profissionais da área, exigindo uma ampliação da luta técnica até então realizada dentro dos manicômios para os campos político, ideológico e cultural”. Dizendo sobre a “experiência pioneira de Santos na região da Baixada Santista”, Paula comentou a realidade dos CAPS II implantados em Cubatão e Praia Grande e sobre a “participação real” de entidades representativas de controle social como o Conselho Municipal de Saúde, o Conselho Gestor e as associações de usuários, familiares e funcionários. Paula lembrou dados como o que 3% da população sofre com transtornos mentais graves decorrentes de drogas e álcool e que 12% necessita de algum atendimento no setor, seja ele contínuo ou eventual – tendo discorrido sobre a estrutura estadual da área “que funciona em consonância com as políticas estadual e nacional”.

Mirsa Delossi, a coordenadora estadual de Saúde Mental,
rebateu as críticas à estrutura dos CAPS dizendo que era melhor mantê-los com suas deficiências do que extingui-los, “o que jamais seria feito”. Disse ainda sobre a estrutura estadual no setor e que os 15 anos comemorados coincidem com a abertura do primeiro CAPS do Brasil em Cerqueira César, introduzindo um novo modelo de atendimento, “o que permite comemorar hoje a oferta de uma nova rede alternativa”. Disse dos 8 mil leitos fechados em 8 anos, “discretamente”, dizendo existir ainda 58 hospitais, 15 mil leitos e, 127 CAPS no Estado, respondendo às críticas – hoje 140, conforme dados do Ministério da Saúde. Fizeram relatos ainda Maria de Fátima Luz, coordenadora de Saúde Mental de Cubatão, Raimundo Macedo (que é cirurgião infantil, mas ocupa o cargo) em Guarujá , Daniela Stazak, de Itanhaém, José André K. Marins, de São Vicente, Alberto Vasquez, de Praia Grande e Sidney Gaspar, de Santos.

Berta, que coordenou a mesa, membro da equipe de intervenção, contou que o primeiro dia foi de angústia, mas depois desenvolveu a “capacidade de indignação”, citando David, com a “emoção de devolver a cada um o que é seu”. A representante de Cubatão, que não atuou na intervenção do Anchieta mas em SV, disse ter que “agradecer aos pioneiros, aos que tiveram a coragem de mudar”. O representante de Guarujá falou da falta de médicos e dos dois CAPS existentes na cidade, com 3 psicólogos e 4 assistentes sociais. E Daniela, representando Itanhaém, disse do “momento mítico” que foi a intervenção construindo “o mito de Santos”, ela que iniciou a faculdade quando estavam intervindo no Anchieta: “É como se estivéssemos adolescendo, disse, construindo a nossa história”. Daniela falou do CAPS de sua cidade, “com os pés na areia”, ressaltando a importância da praia “onde todos são iguais, um espaço privilegiado da Saúde Mental”.

O representante de São Vicente fez um relato breve da história da psiquiatria desde Pinel e da lobotomia nos anos 30 e Dorian Rojas, psicóloga e representante de Praia Grande, antiga militante do movimento estudantil na cidade de Santos, falou dos que foram capazes de tratar pessoas com “técnica e emoção”. Sidney Gaspar, representante de Santos, ressaltou o papel dos trabalhadores da Saúde Mental e previu que “em 150 anos não haverão mais manicômios” – não faltando gente que considerou elástico demais este prazo -, ressaltando que a cidade tem mais CAPS do que preconiza a OMS.

A assistente social e professora Silvia Tagé cobrou da coordenação estadual um programa de aprimoramento profissional em Saúde Mental, “um instrumento importante na formação dos estudantes”. Ela abriu espaço para várias contestações ao oficialismo dos depoimentos até ali, como de Carla Bertuol que perguntou se “o Guilherme Álvaro pode ser considerado um manicômio”, pois ali eram feitas internações, da “desinstitucionalização”e dos “muros que ainda precisam ser derrubados”. E Geraldo Peixoto lembrou que seu filho começou a melhorar “quando ele deixou de ser um número”, alinhando críticas contra os relatos feitos pelos representantes das coordenações de Saúde Mental, fazendo denúncias sobre as deficiências do CAPS em São Vicente.

O psiquiatra Alex, do PS da Zona Noroeste, explanou sobre o “caos” do atendimento atual naquele lugar. Suzana Robortela falou da precariedade dos CAPS e perguntou “quem fiscaliza as verbas que vão para os CAPS”. Lembrou que o SUS foi implantado nesta cidade “à força” e que antes das policlínicas de 1989 “não havia nada”. A psicóloga Isabel Calil também desferiu duras críticas à estrutura de atendimento, “em que falta tudo, até bebedouros e banheiros”, disse. “Adolescente não é só álcool e drogas”, seguiu Bel, “não há políticas em nenhuma área, não há como se falar em dignidade humana para os pacientes se não há dignidade humana para os profissionais da Saúde Mental. Dissemos que estamos adolescendo: que tipo de adulto queremos com estas condições em que falta tudo? Um adulto depressivo? “, completou, na crítica necessária.

SEGUNDA PARTE

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A CIÊNCIA PRENDE A PLURALIDADE E A VERDADE - HERMANN HESSE E O “LOBO DA ESTEPE”, SÓ PARA LOUCOS

Em “Der steppenwolf”, nome original alemão do livro editado no Brasil em 1955, “O Lobo da Estepe” - de Hermann Hesse, escritor pacifista que recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1946 com “Peter Camenzind” -, a história é contada a partir de um diário de Harry Haller, “Só para loucos”. Era um homem que o autor conheceu quando ele procurava um quarto para alugar na casa de sua tia. No texto, a compreensão do que chamam “loucura”. Harry Haller era um tipo enigmático, com cerca de 50 anos e que mais tarde soube enfermo, era um homem que “...quando se falava com ele e, o que era habitual, ele se deixava ir além dos limites do convencional e dizia coisas pessoais e singulares, então a palestra passava imediatamente a subordinar-se a ele...”

Era um ser que negava a forma e o conteúdo do cidadão formal, de valores diferentes, “...denotava uma vida anímica interessante, bastante intensa, delicada e sensível”, descreve Hesse por seu personagem interlocutor. Bem, nas “Anotações de Harry Haller – só para loucos”, em que descreve a si mesmo como “...Eu, Harry Haller, o sem pátria e solitário odiador do mundo burguês”, libertário célebre sem dizê-lo, auto-biografia do autor como em Goldmund de “Narciso e Goldmund” em que retrata a si mesmo como em todas suas obras, surge uma “Noitada Anarquista! Teatro Mágico só para ra...”. Seria o “Tratado do Lobo da Estepe, só para raros””. E o texto escolhido por nós para traduzir a essência do pensamento a que se atribui a loucura é exemplar”- a multiplicidade do eu - :

“...e se em algumas almas humanas, singularmente dotadas e de percepção sensível, se levanta a suspeita de sua percepção múltipla, e, como ocorre aos gênios, rompem a ilusão da unidade personalística e percebem que o ser se compõe de uma pluralidade de seres como um feixe de eus, e chegam a exprimir esta idéia, então imediatamente a maioria as prende, chama a ciência em seu auxílio, diagnostica esquizofrenia e protege a humanidade para que não ouça um grito de verdade desses lábios infelizes...”



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A QUESTÃO JURÍDICA DA LOUCURA –
indenização às vítimas do manicômio

O militante antimanicomial Austregésilo Carrano Bueno, em seu manifesto publicado em 2003, propõe que os torturados em manicômios com eletrochoques sejam indenizados, como os anistiados políticos. Em face das brutalidades exercidas contra dezenas de milhares de pessoas, muitas ainda vítimas de segregações, privações, operações cerebrais e torturas, como identificou a Caravana de Direitos Humanos, esse direito é legítimo e necessita ser exercido juridicamente, em ações contra os donos dos hospício, regressivas aos seus responsáveis – os que autorizaram a barbárie. Que não se fale em “normas médicas”, pois estas exigiam anestesia, o que nunca foi feito.

Até a recente aprovação da Lei do deputado Paulo Delgado, a estrutura da lei referente ao doente mental fazia parte do Código Civil brasileiro de 1916. O Artigo 5, Inciso II, dizia que “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente a vida civil os loucos de todo gênero”. O Artigo 12, dizia que “serão inscritos em registro público: III – a interdição dos loucos, surdos-mudos e pródigos”. O Artigo 84 dizia que “os loucos, de modo geral, serão representados por seus pais e tutores”, redação dada pelo Decreto legislativo 3.725, de 15/1/1919.

O Artigo 145 do Código Civil de 1916 determinava que “qualquer ato jurídico praticado por pessoa absolutamente incapaz será nulo”, definindo assim os loucos no Artigo 5º. O Artigo 457 dizia que “os loucos, sempre que parecer inconveniente conservá-los em casa, ou exigir seu tratamento, serão também recolhidos a estabelecimentos adequados”. Ao louco era vedada a autonomia e deveriam ter uma cidadania tutelada e assistida, impedido de usufruir das prerrogativas da vida civil como liberdade individual, direito à palavra, direito de ir e vir, assinar cheques, comprar, vender, casar-se, votar e ser votado – sujeito à reclusão em instituições especiais.

A questão central, ressalta o jurista Dalmo de Abreu Dallari, é a problemática sobre o que é doença mental e qual sua forma de manifestação. O que permitiu ( e permite) inúmeras situações e interesses em se atribuir a condição de “louco” a alguém. Inclusive o pródigo, o que gasta dinheiro em excesso dilapidando o patrimônio, pode ser interditado, o que atinge grande número de pessoas tidas como normais. Como a inquisição e as perseguições políticas através dos séculos, a questão da “loucura” se tornou um indústria com objetivos diversos.

Segundo o doutrinador do Direito Celso Delmanto, em seu Código Penal Comentado, de 1986, a legislação prevê em seu Artigo 26 a inimputabilidade: “é isento de pena o agente que por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo a ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. E no Parágrafo Único faculta a redução da pena nesses casos de um a dois terços. A natureza é que a inimputabilidade é uma das causas de exclusão da culpabilidade. O crime persiste, mas não se aplica a pena, por ausência de reprovabilidade.

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A LEI DO DEPUTADO PAULO DELGADO

O deputado federal mineiro do PT Paulo Delgado conseguiu aprovar, em abril de 2001, a Lei 10.216 – a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira -, pelo que lutava desde há tanto tempo e que humaniza o atendimento aos portadores de doenças mentais, através da desospitalização progressiva e da implantação de um sistema de atendimento aberto, referência internacional na área.

Inspirada na Lei Basaglia de autoria do psiquiatra que derrubou os muros do manicômio de Trieste e irradiou seu modelo para Santos. A Lei segue os princípios da Organização Mundial de Saúde e avança sobre o que eram as normas legais da época do fascismo no Brasil, o Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei 24.599, de 3 / 7 / 1934, que normatizava o setor. Sistemas de coerção, repressão, punição, sanatórios funcionando como mecanismos de lucro, gigantescas verbas SUS, remédios poderosíssimos, eletrochoques, surras, exclusão, separação, sofrimento. Esta história precisava mudar – e mudou, abrindo os novos tempos nesta área.

A Lei de Paulo Delgado determina, entre outras coisas:
1. O restabelecimento dos direitos civis e políticos dos doentes mentais;
2. A extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por hospitais-dia;
3. A internação em hospitais-gerais por períodos mínimos;
4. A regulamentação da internação compulsória, ou seja, aquela que se dá sem a aprovação do paciente e que poderá ocorrer por, no máximo, 24 horas, com conhecimento do juiz e de uma junta médica;
5. A regulamentação de terapias perigosas como o eletrochoque.

A batalha da aprovação
Resultado de um intenso movimento social desencadeado pela militância que se opôs à Ditadura Militar, em face de suas múltiplas torturas que apenas repetiam os métodos do manicômio, em 1989 é apresentado no Congresso o Projeto de lei do deputado Paulo Delgado, que tem como colaborador seu irmão, Pedro Gabriel Delgado, psiquiatra e militante da luta antimanicomial desde os primeiros anos da década de 1970, quando ainda estudante de Medicina em Minas Gerais, município de Barbacena. A tramitação do Projeto levou quase doze anos, enfrentando o lobie empresarial da loucura. Seriam proibidas novas internações em hospitais psiquiátricos e toda a rede de hospitais do tipo seria extinta em cinco anos, vinte por cento ao ano.

Uma autoridade judiciária deveria decidir pela internação caso fosse questionada pelo paciente. O Senado apresentou um texto mais comedido, tendo existido um debate com o movimento antimanicomial que não aceitava a internação a pedido da família, que exigia o direito da pessoa internada involuntariamente de contratar um advogado e de solicitar uma junta de julgamento para que fosse apurada a necessidade de internação, a exemplo das recomendações que a Organização Mundial de Saúde fez para os sistemas de atendimento psiquiátrico.

Em face da intervenção santista e da apresentação da lei de Delgado, intensificam-se as pressões tanto para desospitalizar quanto para manter o negócio da doença mental, mas o Ministério investe em inspeções sanitárias aos hospitais psiquiátricos que, em tempos de crise, sem as generosas verbas do passado, com internações limitadas, racionalizam remédios, alimentos, funcionários, para manter a lucratividade. O jogo era “fechado”, eles, os donos do negócio da loucura, não apareciam, mas faziam lobies junto aos deputados. Em maio de 1991, a Federação Brasileira de Hospitais apresentou um abaixo-assinado ao Congresso Nacional, exigindo o adiamento por várias sessões do Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado. Que aprovado no Congresso, foi rejeitado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado em 1995, fazendo-o voltar à Câmara para emendas e substitutivos.

Em março de 1992, uma manifestação de duzentos familiares movimenta a Câmara Municipal do Rio de Janeiro contra a redução de leitos nos hospitais psiquiátricos. O lobie se movimenta. O Ministério da Saúde envia ao Congresso um Parecer Técnico favorável ao Projeto de Lei, que diz que ele é “conciso, atemporal, aplicável e, portanto, oportuno”, na gestão do Ministro Adib Jatene. Apesar da convergência entre o Movimento Antimanicomial, grupos da sociedade civil, entidades na área médico-psiquiátrica e autoridades do setor estatal, não houve a aprovação no Senado, fazendo o Projeto voltar à Câmara para emendas e substitutivos. O projeto chegou a ficar seis meses para ser avaliado pela Comissão criada pelo Ministério da Saúde. O campo não é neutro e nem dos militantes sociais, mas sujeito às pressões do lobie que, no entanto, acaba por ceder sob condições - e permitir aprovação em 2001.

O militante antimanicomial Geraldo Peixoto destaca estas “condições” presentes no Artigo 4º dessa Lei, que permite a construção e instalação de hospitais psiquiátricos em áreas em que não existam serviços alternativos. Foi uma “concessão ao lobie do setor”, diz Peixoto, para que a norma fosse aprovada.


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AÇÕES DIRETAS: O EXEMPLO DO ANCHIETA, AÇÃO COM PARTICIPAÇÃO POPULAR - Com Telma, Santos foi a primeira cidade do país a adotar ações contra a AIDS

Santos experimentou, desde 1989, uma fase próspera em termos de reconquista de valores da cidadania plena, assentados no exemplo do Anchieta, como fruto da gestão eleita no ano anterior e empossada nesse exercício. Foi uma época de inversão de prioridades, caracterizando sua atuação administrativa, fomentando a ampla discussão sobre os destinos da cidade e a melhor compreensão da estrutura social que lhe dá sustentação. Esses eixos críticos produziram impacto considerável no processo de desenvolvimento de Santos. Assim como a intervenção no Anchieta viriam as políticas de integração com o porto e a intervenção sobre a empresa de transportes coletivos que prestava (maus) serviços à cidade e queria forçar o aumento das tarifas, resultando na reação da Prefeitura. Mas nada teve tamanha repercussão como a questão da AIDS, cujas medidas adotadas aqui indicaram a política nacional e mundial do setor. O Brasil tinha a cidade como campeã nacional de casos soropositivos quando Telma assumiu, em 1989.

Como ela declarou em discurso em Brasília em 28 de novembro de 2001, os índices apontados na imprensa de recordes nos casos da doença, que nos governos anteriores eram apenas apontados como “difamação”, foram encarados de frente: poluição, AIDS.... E a cidade deixaria esta posição graças às medidas concretas que foram executadas, que resultaram positivas a curto-prazo com a redução dos casos. Medidas ousadas que causariam uma verdadeira revolução na cidade. Como 50% dos casos de AIDS ocorrem em função do uso direto de drogas injetáveis ou por contaminação indireta nos contatos sexuais com estes usuários, era preciso instituir um programa de redução de danos para reduzi-los, atraindo as vítimas do HIV para os serviços públicos de saúde e instruindo-os, entre tantas outras informações, a não reutilizar agulhas, instruindo-os inicialmente como desinfeta-las.

A distribuição de seringas para minimizar os riscos de contaminação, assim como a de camisinhas resultou em mandados de prisão para o então secretário de Saúde Fábio Mesquita, sob a acusação de incentivo ao uso de drogas. A troca de seringas usadas por novas começou aqui oficiosamente, oficialmente só em 1995 em Salvador. Em 2001, quando Telma fez este discurso, a cidade ocupava a 12ª posição no “ranking” da AIDS – cujos pacientes tiveram criada na cidade toda uma estrutura de atendimento com fornecimento de remédios. Na política por uma gestão participativa o desenvolvimento, foram criados diversos Conselhos Populares (cultura, meio-ambiente, saúde, patrimônio histórico, assistência social), para garantir a participação direta da população na estrutura administrativa, traçando seu próprio destino.

Policlínicas e informatização da saúde
Com o sistema de policlínicas aconteceria, em Santos, a primeira experiência de informatização dos serviços de saúde em rede municipal – o sistema Higya e, depois, o sistema Nalus -, diminuindo as filas e organizando o atendimento. Após 5 anos, tinha o registro de 500 mil pessoas, 80% residentes na cidade, fornecendo prontuário previamente nos atendimentos – antes um privilégio do atendimento privado. Interligado em todas as policlínicas e pronto-socorros, o sistema ajudou a população e salvou vidas.

PID E PAD, saúde em casa
Nesse processo se introduziu o PID – Programa de Internação Domiciliar e o PAD – Programa de Atendimento Domiciliar, assistência médica e de enfermagem à domicílio, reduzindo o atendimento hospitalar de internação. Segundo o secretário David Capistrano, era o segundo do mundo, após o Canadá, “só que melhor”, dizia. Era o “hospital sem paredes”, que atendia a maioria de idosos e mulheres (75% e 60%). No seu início, atendia ao equivalente a um hospital com 90 leitos, levando médicos, enfermeiros e todo o aparelho hospitalar à casa do paciente.



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MAIO: O MÊS DA SAÚDE MENTAL VIRA LEI EM SANTOS

O Projeto de Lei do vereador Ademir Pestana, de Santos, apresentado em 2004, instituindo o mês de maio como o Mês da Saúde Mental, obedeceu a uma série de fatos importantes ocorridos nesse mês, que tem, em Santos, especial significado por sua expressão mundial no tema em face da intervenção no Anchieta. Há 50 anos, no dia 20 de maio, se inaugurava, no Rio de Janeiro, o “Museu do Inconsciente”. Era o marco da política humanitária e racional de tratamento dos doentes mentais que, iniciada nos anos 30 por Nise da Silveira, discípula de Jung, revolucionaria os conceitos de psiquiatria no Brasil e no mundo. Há 104 anos, registrados no dia 18 de maio, nascia o Hospital Psiquiátrico do Juquery.

Em maio de 1978 foi aprovada a Reforma Psiquiátrica na Itália. No dia 18 de maio comemoramos o Dia da Luta Antimanicomial no Brasil, desde o evento que a inaugurou, em 1987, o II Congresso de Trabalhadores da Saúde Mental, desencadeando um processo de transformação. Em 1989, no dia 3 de maio, Santos resgatava para o país uma política humanitária para o tratamento dos doentes mentais. Maio é, pois, um mês dedicado à saúde mental e quisemos vê-lo fixado no calendário, esta nossa proposta, pois que Santos é referência brasileira. Era a “redenção da loucura” – e o fim das torturas aconteceu em Santos com a Prefeita Telma de Souza, há 15 anos. E o 18 de maio deste ano, marcado como o Dia da Luta Antimanicomial, comemorou o primeiro ano da Lei brasileira do deputado federal do PT Paulo Delgado, que desde 1989 tramita no Congresso Nacional, modernizando de fato o atendimento hospitalar e não criando novos setores excluídos.

Pirado, biruta, pinel, abilolado, bobo, tantã, maluco, doido, alienado, com um parafuso a menos: são nossos irmãos, são pessoas como nós. É deles o mês de maio.

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O PROJETO DE LEI DE LULA “A VOLTA PARA CASA”,
FECHANDO MANICÔMIOS. MAIS UM GOL DA CIDADE
QUE ANTECIPOU O PROCESSO

O Presidente Lula, em maio de 2004, às voltas com as comemorações da Saúde Mental que tem, no dia 18 o “Dia da luta Antimanicomial”, enviou ao Congresso Nacional um Projeto de Lei criando o Auxílio Reabilitação Psico-Social, para os pacientes internados em hospitais psiquiátricos retornem às suas famílias. Não jogando-os na rua, mas mantendo o tratamento em centros especializados e o acompanhamento em suas próprias casas - com o benefício que a proximidade familiar traz ao processo.

As vagas trocadas por bolsas são fechadas e não-reabertas e um quarto de todas as existentes hoje no Brasil (55 mil em 244 hospitais) serão solucionadas até 2007, com humanização e economia. A bolsa custa um salário mínimo e cada vaga custa R$ 800.00 ao SUS. É a política de Nise e Basaglia, adotada em Santos há quinze anos. Em seu discurso, o Presidente da República disse que “todos temos um pouco de louco dentro de nós” - ao tempo da intervenção, corriam adesivos em Santos com a frase “de perto, ninguém é normal” - e falou da necessidade do carinho e do amor para a cura do doente mental por parte de outras pessoas.

Lula falou de uma “revolução” na área, a partir desta Lei, que pretende beneficiar vinte mil pessoas que vivem em hospitais psiquiátricos e não necessitam dele, mas pela perda de vínculos ou por questões econômicas tem dificuldades em retornar ao convívio social. Assim, esta ajuda contribuirá na reintegração. É o programa “De volta para casa”. Lula observou que o esforço brasileiro pela inclusão social dos pacientes mentais tem sido reconhecido em todo o mundo, inclusive pela Organização Mundial da Saúde e pelas entidades de direitos humanos, “o que deve ser orgulho para todos nós”, ilustrou.

Ele lembrou o “forte movimento social” existente há décadas pela reforma da psiquiatria no Brasil, organizado pelos trabalhadores da saúde, comprometendo-se com um novo modelo de atendimento “mais eficaz e mais humanizado”, aumentando a oferta dos centros de atenção psicossocial dedicados a adultos, crianças e adolescentes, que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes.

O ministro da Saúde Humberto Costa lembrou, na ocasião, que “nossa rede tem hoje 424 centros, que serão acrescidos de mais 178 em breve”, prometendo criar mais 150 pensões, lares ou repúblicas para atuarem como residências terapêuticas, para pessoas com longa história de internação psiquiátrica e que perderam os vínculos familiares e laborais. O Ministro se comprometeu ainda a implementar uma política de atenção integral aos usuários de drogas e álcool, priorizando o tratamento na rede pública, avaliando sistematicamente os hospitais psiquiátricos existentes, incluindo a capacitação da Saúde Mental na rede básica, em especial no programa Saúde da Família.

Em 2003, cerca de 1.700 pessoas começaram a ser assistidas pelo programa. De 2004 a 2007 devem ser incluídas 3 mil novos beneficiários, na meta do Ministério da Saúde de 14 mil pacientes – que terão ainda 240 Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, sendo 70 para atendimento infanto-juvenil, 78 para vítimas de álcool e drogas e 92 com causas gerais de transtorno mental, em um volume de investimento, até o final de 2004, de 42 milhões de reais. Os egressos do Anchieta em condições semelhantes, anulados por décadas de maus-tratos, tiveram uma casa em que puderam, em forma de república administrada, continuar a viver. Muito tempo passou para que o país levasse adiante as realizações de Santos na área.

O Jornal do Brasil de 29 de maio de 2003, com a chamada “Governo lança política para a Saúde Mental” escreve que segundo o Ministério da Saúde, um terço dos 55 mil internados em hospitais psiquiátricos no Brasil não necessitam de internação, cerca de 18 mil pacientes. Na verdade, 100% dos pacientes não necessitam de grades, mas de tratamento em liberdade.


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LOUCURA, MADE IN SISTEMA, MADE IN BRAZIL
Taylorismo e as raízes da loucura - a essência da diferença

As regras que nortearam nosso desenvolvimento econômico, notadamente após o Golpe Militar de 1964, produziram um modelo altamente concentrador, acirrando as desigualdades sociais e acirrando as contradições do capitalismo. Seu resultado foi uma organização social profundamente recheada de conflitos, onde apenas uma restrita minoria manteve as rédeas do país, associada ao capitalismo internacional. O empobrecimento decorrente, somando ao acirramento das disputas nos centros urbanos, superpovoados pelas crescentes migrações do campo dominado pelo latifúndio, é produto do exército de mão-de-obra de reserva que se forma. Farta, a mão-de-obra fica barata (lei da oferta e da procura) e sobe assim o lucro da classe dominante, a mais-valia – que termina por destruir a sociedade pelos conflitos resultantes da precarização e ausência de meios de subsistência, em confronto com os possuidores.

Estes fatores, aliados às causas de raiz do trabalho alienado da vida, traçam um caminho delineado para a loucura, para a dissociação do homem em relação ao trabalho que ocupa suas horas e, conseqüentemente, aos seus valores. Sabia Taylor, o criador de uma nova concepção produtivista, o “Taylorismo”, (Frederick W. Taylor, 1856-1915), um engenheiro de formação puritana e reacionária, de princípios rígidos. O “Taylorismo” era a “veneração ao trabalho”, organizando-o sistematicamente em seus mínimos detalhes, anteriormente negligenciados, um método “científico” – que escondia uma concepção do sistema capitalista que o embutia.

Essa técnica se disseminou pelas fábricas e escritórios e até mesmo o trabalho intelectual, que em função dessa técnica restringiu sua abrangência a setores isolados e sem interdisciplinaridade, sem ver o todo. A meta era a produtividade através da racionalização, com maior aproveitamento dos recursos. Era o “tempo útil ”maxivalorizado. Era tempo transformado em mercadoria. Dizia Taylor que o homem é compelido ao trabalho não porque goste, mas por ser um recurso para sua sobrevivência, não como um ato existencial, como o que explica Engels surgido juntamente com o homem e parte de sua vida. Taylor sintetiza a visão antagônica, do trabalho em que se separa a atividade intelectual da manual, cronometrado.

Esse processo de redução da complexidade do saber operário introduz o desinteresse pela atividade, a monotonia, o tédio, a idiotização do trabalhador – o passo para a loucura. Antes, os ofícios qualificados eram passados, na prática e oralmente, do operário para o aprendiz, o que requeria destreza, tempo e habilidade. Em se retirando-lhe o saber, se retira seu poder na força da luta por melhores condições de trabalho. Assim, o taylorismo foi e é o instrumento vital para a derrota das lutas sindicais, dissociando o trabalhador qualificado do não-qualificado, submetido à redução salarial, já que não controla a produção e tornando o trabalho um instrumento de opressão e loucura, o trabalhador uma massa bruta sempre sujeito à demissão e substituição, o “turn-over”.

A utopia patronal da fábrica sem operários, como no dizer do filósofo Michel Foucault, está em vias de se realizar, no interior desse processo em que, com a revolução microeletrônica nas mãos de poucos, a especificação das tarefas fará com que qualquer braço mecânico a realize. Seria o sonho patronal livrar-se desses trabalhadores que provocam conflitos sociais e fazem greves, insistindo em viver ao invés de apenas produzir como os obedientes robôs. É simples concluir onde leva esse processo, senão à loucura, na alienação do trabalho dissociado do homem e voltado para a acumulação irracional, quando o homem perde sua condição humana para transformar-se em mero produtor de mercadorias

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EUGENIA , A GUERRA CONTRA OS MAIS FRACOS
No Anchieta, a visão dos iguais

Em uma época pós-Anchieta, em que seres são rebaixados e em que se projeta o “aperfeiçoamento genético”, esta história é necessária
Separar pessoas entre boas e más, ricos e pobres, úteis e inúteis, produtivas ou improdutivas, loucas ou sãs, diferentes ou iguais, velhos ou novos e bonitas ou feias é cruel. foi esta separação que se fez no Anchieta e se faz nos hospícios brasileiros, nas velhas políticas de Saúde Mental. Lá se depositavam os “inúteis”. Eram “os exclusos”, como no livro de Ary Chen - os marginalizados, os incômodos, os diferentes, os que vinham ocupar o lugar deles.

São formas diferenciadas de racismo, originárias do medo e produtoras de políticas equivocadas, que ao mesmo tempo quer produzir seres perfeitos, negando Marx quando disse que o homem é produto do meio. É a chamada “eugenia” que, com outros nomes desde sua origem, ainda nos ameaça, em uma época em que tanto se pesquisa o “aperfeiçoamento genético” e se descobre, ao mesmo tempo, que. a união de raças fortalece o tipo humano. Houve o tempo em que se postulava que a doença mental era evidência de uma corrente degenerativa hereditária, que se tornaria gradativamente mais profunda nas gerações sucessivas, causando sua extinção.

Era o que pensavam, por exemplo, os psiquiatras Benedict Morel (1809-1873) e Valentin Magnan (1835-1916). Na Itália, Cesare Lombroso (1836-1909), considerado o pai da antropologia criminal, achava características físicas degenerativas nos criminosos. No Brasil, o médico Nina Rodrigues abriu o cérebro de Antonio Conselheiro, o líder de Canudos - a revolução social do século XIX no Nordeste contra a opressão dos coronéis do sertão -, para encontrar “sintomas degenerativos”. Desafiar o poder era “loucura” impregnada naqueles seres mestiços, relata o positivista Euclides da Cunha no início do livro, na visão que se modifica em seu transcurso, mesmo tendo construído o paraíso de Belmonte - uma utopia de More.

A Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1934, foi acusada de utilizar métodos eugênicos, no livro de Jurandir Freire Costa, contestado por outros grupos, pois tinha a meta de criar indivíduos brasileiros “mentalmente sadios”. O psiquiatra Walmor Piccinini discorda dessa rotulagem que se atribui aos psiquiatras de então da LBHM, disparada a partir do momento em que as atas da entidade publicaram a legislação eugênica hitlerista na íntegra. Para ele, a visão genética da melhoria de raças era anterior ao nazismo e as práticas deste regime se isolaram neste momento histórico, retirando a rotulagem do movimento que, para ele, tinha como meta o que seu fundador Ridel desejava, ou seja, melhoramento e humanização da assistência psiquiátrica aos doentes. Os psiquiatras da eugenia americana acreditavam nas teorias mendelianas da hereditariedade. Desprezavam Marx, que definiu que o homem é produto do meio.

Os fatores exógenos eram desconsiderados na composição das feições humanas e a sucessão seria imutável. Adolf Meyer, ícone da psiquiatria americana, em dado momento de sua vida considerava a eugenia uma maneira de compreender e tratar de doenças mentais, afastando-se destas idéias por volta de 1917. Mas em 1914 dizia Carlos Mcdonald, na posse da American Medico-Psychological Association, que era preciso deter a doença mental do mesmo modo que a varíola, o que se faria mediante vacinação em massa. Foi a época de testes de Q.I., segregação institucional, restrições ao casamento, esterilização involuntária, controle da imigração e outros. Trinta estados americanos tinham leis de esterilização eugênicas, foram realizadas cerca de 15 mil esterilizações cirúrgicas.

Em Nuremberg, no julgamento dos criminosos nazistas, estes argumentos, os das ações americanas para melhorar a raça, foram usados na defesa dos criminosos nazistas.

O combate a estas idéias veio de parte de psiquiatras como Abraham Myerson e do ex-higienista Aron Rosanoff, que em 1911 havia concluído que a insanidade era hereditária, teoria que se afastou em 1915. Estes já foram contrários à lei que fora aprovada em 1924 - a “US Imigration Restriction Act -, diagnosticando determinadas regiões de imigração européia como fontes de doença mental, tese que tinha defensores como Charles Goddard com seu “Eugenic Record Office”. Os psiquiatras americanos se afastariam destas idéias e abraçariam o movimento de Saúde Mental, defendendo a integração na comunidades destes pacientes.

Mas naquele tempo, na expansão racial e social, decorrente do desenvolvimento econômico, trazendo novos contingentes humanos às sociedades, trouxe o medo dos membros das classes dominantes de dividir espaço e sucumbir aos anseios destas novas massas. No desejo do retorno ao passado, na ideologia do que chamamos da direita, à política de rejeição às minorias étnicas constituiu-se a base teórica do racismo e da discriminação, separando pessoas iguais.

O exemplo retrata a origem remota da discriminação, no princípio da divisão dos espaços disponíveis de ocupação reservados aos seus “donos”, ameaçados de dividi-lo com os “diferentes”. A estratégia seria reduzi-los por esta suposta diferença. Na expectativa de “corrigir” os diferentes e seus males, os defensores das políticas corretivas aos “diferentes” aproveitaram as teses do cientista Francis Galton (1822-1911), que propunha, nos Estados Unidos, a melhorar a raça através de casamentos “selecionados”, “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as futuras gerações seja física ou mentalmente”, como escreve em seu livro publicado em 1865 “Hereditary talent and Genius”.

Era a “eugenia positiva”, cuja ideologia política dominante conservadora e racista iria negativar e impor seus valores de modo mais grave e desumano: pretenderia “corrigi-los”. A sociedade que escravizara negros, que os considerava seres inferiores, radicalizava sua ação. Lembremo-nos do psiquiatra Benjamim Rush, que dizia que os negros tinham lepra e podiam ser “curados”.

Por exemplo, entre 1907 e 1940, “atacados” pela incorporação dos ex-escravos, índios, mexicanos e outros imigrantes à sociedade americana que se expandia, no domínio destas teses vários estados daquele país (como a Carolina do Norte e Michigan) realizaram milhares de castrações e esterilizações. Na Califórnia, 14.568 intervenções cirúrgicas desse tipo foram realizadas. o Estado de Virgínia proclamou sua lei de esterilização em 1924, como discorre Edwin Black em seu livro “A guerra contra os fracos”. A eugenia usada por Hitler e praticada pseudo-cientificamente por Joseph Mengele (1911-1979), em Auschwitz, é originada nos Estados Unidos, na idéia dos campos de concentração “domésticos” - e estava idealizada para liquidar os diferentes em câmara de gás, substituída pela esterilização por questões culturais, em climas políticos que radicalizariam estes procedimentos na Alemanha.

Sua origem remonta aos ingleses, que tiveram campos de concentração na “Guerra dos Bôers”, entre o Exército inglês e os colonos sul-africanos, de 1899 a 1902. Houve manifestação na imprensa americana, em 1934, um ano depois de Hitler assumir o poder na Alemanha, por parte de um superintendente de hospital na Virginia. A reclamação era que eles, os alemães, estavam “nos vencendo em nosso próprio jogo”. Eram as práticas de eugenia usadas pelos nazistas, que mataram 50 mil pessoas, inclusive em hospitais psiquiátricos.

A eugenia é uma forma de encarar a procriação como uma forma de gerar seres melhores, encorajando a produção de “bons genes”e desencorajando aqueles com “maus genes”. Os eugenistas trabalharam para criar legislações separando grupos étnicos e os modelos americanos foram base da eugenia praticada na Alemanha, de acordo com a lei que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1934, obrigando a esterilização compulsória de doentes transmissores de taras. Nascida na Inglaterra, desenvolvida nos Estados Unidos, a eugenia consagrou-se como barbárie na Alemanha, mas com raízes americanas.

Baseadas no darwinismo e nas teses de seleção natural, era determinada a acelerar os desígnios da natureza para formar “seres perfeitos” – algo que se avança hoje, a espera do momento político ideal para sua efetivação, que se dará na continuidade do processo de concentração de riqueza, criando dois tipos de ser humano. A aceitação de que existem seres “imperfeitos” e que se pode corrigir a natureza humana é a base da eugenia, cujo ideal pertence a fórmulas sociais em desuso, fruto do autoritarismo e do elitismo. é nesse diapasão que se enquadrou o tratamento aos internos do Anchieta: como iguais.

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E QUEM SÃO OS “LOUCOS”?
NOVAS POLÍTICAS PÚBLICAS NA SAÚDE MENTAL

Quem são os “loucos”, os que estavam no Anchieta ou espalhados pelo mundo? Na dúvida do autor do “Alienista”, Machado de Assis, como lemos ao início deste trabalho, temos problemas para definir. Mas de modo geral, “loucos”são apenas (apenas?) desajustados sociais rebaixados economicamente, alcoólatras ou drogados – e mesmo pessoas com problemas de adaptação temporária às regras estabelecidas, portadores de comportamentos “diferentes” agravados pelo isolamento – entre outras dezenas de casos – que como humanos não mereciam ser trancados em masmorras medievais privados de tudo. É conhecido o filme “O homem que virou suco”, em que um migrante introduzido no meio urbano caótico e neurótico, violento, ingressa em outros patamares de consciência e “sai do chão”.

Existem desequilíbrios químicos cerebrais, como existem dificuldades financeiras, trabalho em falta ou em excesso, más condições de vida e alimentação – fatores que levam aos transtornos mentais cada vez em maior número. O capitalismo enlouquece, este é o fato. E interna em manicômios, que se tornam mecanismos de exclusão. Essa temporariedade é agravada pelo tratamento desumano como o do Anchieta e similares anteriores, que, com vimos, não nasceu aqui. Eletrochoques, colas fortes, insulina e remédios fortíssimos, surras e maus tratos eram cronificantes, perpetuando-se e agravando o quadro. O que era do interesse dos mercadores da loucura, os exploradores desses verdadeiros campos de concentração superlotados de internados. E dos profissionais que cuidam dele, que cresceram em índices vertiginosos.

A polÍtica de Saúde Mental adotada pela Administração Democrática Popular santista integrou a uma ótica de resgate dos grupos da sociedade, concatenada no interior de uma exigência humanitária - que busca reverter o processo acelerado de exclusão dos seres humanos do cotidiano.

A tarefa de impedir que centenas de pessoas continuassem a ser torturadas e enlouquecidas, excluídas da civilização, se deu como um dos primeiros atos do governo municipal democrático-popular da cidade, da prefeita Telma de Souza, logo após sua posse em 1989. Em Santos, cidade-vanguarda das lutas sociais do país, em toda sua história de cinco séculos. Resgatando a dignidade dos internos em seu manicômio, que saltavam cada vez mais sobre seus muros, através dos quais durante tempos só se ouviam gritos -, se avançou no caminho da psiquiatria democrática fundada por David Cooper e Ronald Laing indo até Franco Basaglia e Franco Rotteli na Itália, há mais de trinta anos.

Naquele tempo, em 1971, Franco e Franca Basaglia, os psiquiatras venezianos, distribuíram picaretas para que os cativos - e agravados prisioneiros de um regime de força – destruíssem, por si mesmos, sua bastilha, rompendo com uma estrutura secularmente usada como agente de repressão às idéias em toda a história da humanidade. Mais do que humanizar e evoluir o tratamento aos interesses do Anchieta superlotado, carente e cruel, mantenedor de um processo degenerador de pessoas, o Programa de Saúde Mental desenvolvido em Santos foi além da demolição apenas simbólica do Anchieta de quase quarenta anos – mas mudou uma parte da sociedade. O prédio do antigo manicômio passou a servir como centro reintegrador de parcelas marginalizadas, núcleos de integração psico-social descentralizados e multiplicados por toda a cidade, que cuidam de atender em regime de liberdade os problemáticos mentais – curados pelo retorno ao convívio dos seus, contribuídos para amenizar os conflitos que os produziram.


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VITÓRIA DE CARRANO NA LUTA ANTIMANICOMIAL BRASILEIRA

“O bicho de 7 cabeças”, na luta antimanicomial
Ele quer indenização para as vítimas, como na anistia política. Ficou dos 17 aos 21 anos em 4 hospitais psiquiátricos – “chiqueirinhos psiquiátricos”, chama -, tomou 21 sessões de eletrochoque “com seqüelas físicas e psicológicas”. Saiu, escreveu um livro que deu um filme – antes enfrentou processos indenizatórios, proibições judiciais dos donos dos hospícios que denunciou. E comprovando o sucesso popular e humanitário desta luta, o filme “O bicho de sete cabeças” é o mais premiado da cinematografia brasileira -, com 43 prêmios nacionais e 8 prêmios internacionais.

A direção foi de Lais Bodanzky (seu primeiro longa-metragem) e o filme extraído do livro “O canto dos malditos” – um texto biográfico de Austregésilo Carrano Bueno, mandado para um hospício pelos pais – Hospital Bom Retiro - nos anos 70, após a descoberta de que era usuário de maconha. Com ele, Carraro se tornou um dos expoentes da luta antimanicomial no país. Adaptado por Luiz Bolognesi para o cinema e transferido para os dias de hoje, o filme narra a história real de Carraro que na fita é Wilson Neto, um rapaz da periferia paulista alienado e cabeça-ôca, que não trabalha, não estuda e passa a maior parte do dia reunido com os amigos e ouvindo música alta e fumando baseado, como explica o comentarista Bruno Ghetti – e por isso permanece 3 anos e meio encarcerado.

O resultado é o martírio do jovem, que não é louco mas tem que conviver com doentes mentais e médicos insensíveis e viciados - e toda a imundície do submundo manicomial. Por causa do livro, Austregésilo, militante da causa antimanicomial que sofreu na carne a experiência do manicômio, foi processado por um lobie de psiquiatras do Paraná foi réu da ação número 839 / 2001, da 5ª Vara Cível de Curitiba, tendo feito abaixo-assinado a seu favor e em defesa da Lei federal de Reforma Psiquiátrica, obtendo uma dupla vitória: a lei foi aprovada e ele absolvido.

O livro, que fala da primeira ação indenizatória por erro médico psiquiátrico no Brasil, repetindo o “Caso Donaldson” nos Estados Unidos, foi cassado através do Desembargador Vidal Coelho e seu autor, por denunciar as condições desumanas dos internados em instituições psiquiátricas. E ameaçado pela Federação Espírita do Paraná, dona destas instituições, de ter que pagar cinco mil reais diários se continuasse a denuncia-las publicamente, com pena de prisão caso não pagasse.

O livro desferia, aduziu a acusação, ataques contra o já falecido médico Dr. Alô Ticoulat Guimarães, figura expressiva de profissional da Medicina e professor, ex-prefeito de Curitiba, Secretário de Estado da Saúde, deputado federal e senador da República – que tivera, segundo a peça acusatória, denegrido sua imagem e causado sofrimento à família por artigos publicados no jornal “O Estado do Paraná” desde 1987.

Mas julgado em 3 de outubro de 2003, Austregésilo teve a sentença proferida em 15 de outubro - com um resultado inédito e positivo para a luta antimanicomial, pois nenhuma das acusações, julgou o juiz, poderia ter sido ato de ofensa, mas como correto uso da liberdade de expressão, com imposição de multa aos que processaram Carrano como indenização. E isso gerou inúmeros convites para palestras em universidades e foi indicado por professores nos cursos de psicologia, humanas, assistência social, terapias ocupacionais e direito na USP, Universidade de Brasília, São Marcos, FMU, UEL e outras. O escritor foi homenageado pelo Ministério da Saúde e pelo presidente Lula em 28 de maio de 2003, pela sua luta pela Reforma Psiquiátrica no Brasil. Carraro lançou um manifesto em 2001, com a pauta do Movimento Antimanicomial.

A laranja mecânica
A cidade é Nova Iorque, abril de 1989: a ficção “A Laranja Mecânica” (“Clockwork Orange”), filme de Stanley Kubrick extraído do livro de Anthony Burgess, conta uma ficção futurista, a estória de aplicação de um tratamento que objetivava a regeneração e “cura” da violência no jovem criminoso Alex. Mas a experiência behaviorista, de tentar moldar comportamentos, erra na dose - substituindo a absoluta liberdade de instintos pela completa repressão, a ponto das cenas de sexo e violência provocarem vômitos em Alex. Um tratamento em que se aniquila sua personalidade e após o qual ele tenta o suicídio.

É a “Laranja Mecânica” porque o jovem se torna, em uma referência metafórica, um ser paralisado e desumanizado, como resultado da experiência, defendida então como fórmula institucional que utilizava Alex, o jovem, como cobaia. Algo como as tentativas positivistas da psiquiatria institucional que se prolongaram e se prolongam na história mundial, as terapias violentas que tentam “mudar” as pessoas por métodos autoritários.

Santos, maio de 1989, pura coincidência, um mês depois da ficção “Laranja mecânica”: a realidade da intervenção na Casa de Saúde Anchieta põe fim às experiências que utilizavam seres humanos como cobaias para tentar sua “cura”, que nunca dera resultados. Nesse dia, a prefeita Telma, psicólogos, psiquiatras, militantes sociais, jornalistas e entidades populares invadem um hospício em que eram presos e torturados centenas de pacientes, submetidos a condições lastimáveis de existência, com fome, doenças e tratamentos desumanos, nada ficando a dever aos campos de concentração nazistas. Ficção e realidade se cruzam nesta história que, se não for escrita, pode parecer irreal e própria de um filme de terror.
“Uma mente brilhante”
No recorrente e destacado tema da Saúde Mental, vale dizer deste filme que ganhou o “Oscar” e de seu personagem real John Nash, que ganhou o prêmio Nobel de Matemática por seu trabalho para o governo dos Estados Unidos. Ele ocupou altos postos na hierarquia do Pentágono, após formular um teorema que o fez aclamado em seu meio, aos 21 anos, decifrando Códigos Secretos em plena Guerra Fria. Mas enfrenta uma fase esquizofrênica, que supera e volta à sociedade. E acaba ganhando a láurea mundial provando, que a loucura não transforma as pessoas em incapazes – desde que não sejam “eletrocutadas”. Ao contrário, deles podem resultar mentes criativas e brilhantes, desarticulando toda a visão que se teve do problema através dos séculos. É a história do filme “Uma mente brilhante”, de 2001, do diretor Ron Howard, que ganhou 4 “Oscar”, inclusive o de melhor filme.

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NO TRABALHO, A LOUCURA
o sistema enlouquecendo os seres / ciência e direito

Quantos trabalhadores estão hoje em processo de estafa mental e enlouquecimento – modernamente, “estressamento”- acelerado? No Brasil, por exemplo na área do transporte coletivo, os motoristas que tem que cobrar e dirigir entre outras tarefas no ônibus estão “pirando”, afastados do trabalho por licença médica às centenas. Há casos de panes mentais no volante, cresce o número de acidentes. E os bancários, categoria com alto índice de internações psiquiátricas? Gente com carteira ou sem carteira assinada, trabalhando 12, 15 horas por dia, desempregados ou com salário de fome em trabalho desumano e insuportável. Quantos, senhores, quantos?

No meio de buzinas, choros, desespero, sirenes, roncos de motores, apitos, gritos, sons estridentes em decibéis desumanos, o sistema econômico baseado no lucro e só nele é uma condução eficiente para a loucura. Se devemos tratá-la ou cuidar de suas causas, construindo uma nova sociedade devemos dizer. E fazer. A obrigatoriedade legal (Artigo 162 da Consolidação das Leis do Trabalho, Parágrafo Único), uma conquista dos trabalhadores por condições mais humanas, não é gratuita.

A preservação das condições ideais tem mandamentos nos itens de Medicina e Segurança do Trabalho, explicados por Segadas Viana no livro de Arnaldo Sussekind sobre as conseqüências da fadiga no estado mental dos trabalhadores, provocadas por excesso de movimentos e contrações musculares, órgãos fibrosos elásticos e irritáveis ligados aos ossos que agem uns reflexamente aos outros dirigidos pela vontade – sob a ação de influxos nervosos.

Aderbal Freire, em “Direito ao Descanso”, editado em 1937 em Fortaleza, escreve que “a transmissão de uma excitação centrífuga pelos nervos motores, que se ramificam entre as malhas do tecido conjuntivo denominado “perimysium”, que envolve o feixe das fibras musculares. “É a contração de um músculo em movimento caracterizada pela manifestação de fenômenos histológicos (estudo dos tecidos orgânicos), físicos, químicos e mecânicos, representados por transformações em seus tecidos – pelas produção de calor e eletricidade, fenômeno de oxidação, consumo de hidratos de carbono, graxas e matérias protéicas, e produção, enfim, do trabalho mecânico”.

No trabalho, atualizado neste capítulo por João de Lima Teixeira Filho, Viana conclui que em atividade um músculo absorve vinte vezes mais oxigênio e queima trinta e cinco vezes mais carbono do que em estado de descanso, o que ocorre em estados de grande atividade física, mental e emocional. O excesso de trabalho dá motivo para que a recuperação orgânica não se processe no mesmo ritmo que o desgaste, fazendo com que as toxinas que se produzem não sejam eliminadas como necessário. Como diria George Bernard Shaw (1886-1950): “O homem sensato se adapta ao mundo, o insensato quer adaptar o mundo a ele. Logo, todo progresso depende do homem insensato”.

Cerca de 20% da nação brasileira, cerca de 30 milhões de seres, apresentam alguma espécie de problema mental. É preciso conviver com eles e solucionar o problema, não será entre injeções, eletrochoques e celas-fortes que resolveremos. Mesmo porque são seres humanos e tudo vale a pena, diria Pessoa, quando a alma não é pequena.

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PALAVRAS FINAIS
nosso personagem inicial e seu destino
tudo vale a pena quando a alma não é pequena

Como resultado desta ação-paradigma de humanidade, antes que científica, humanitária e com visão de futuro coletivo, as pessoas envolvidas tiveram destinos diferentes. Há casos e casos, indescritíveis um a um, cujos fados não interferem na vitória alcançada. Fomos buscar a história daquele personagem que antecede à intervenção, sete anos antes, denunciada em matéria jornalística do jornal da faculdade por este autor.

Nem mesmo o abandono quase que total da estrutura montada para de algum modo assistir às vítimas desse Anchieta, dos que permaneceram décadas sofrendo todo tipo de abuso e guardaram seqüelas irrecuperáveis, nada pôde empanar a correção da iniciativa praticada pelos que tinham, como diria Geraldo Vandré em “Para não dizer que não falei de flores”, a certeza na frente e a história na mão. Há centenas de pessoas com vida normal, hoje, que passaram e sofreram no Anchieta – e lograram sair vivas. Há os casos de pessoas que pereceram no processo, que não souberam viver fora dali após tanta reclusão e terapias violentas e impróprias.

Há os que abusaram da liberdade e se amaram compulsivamente na reintegração como pessoas humanas subitamente re-reunidas em sociedade. Nem todas as histórias resultantes são brilhantes e exemplares, como é próprio da natureza humana – e seria falso desenhá-las. Houve equívocos, erros, nem sempre a sorte assistiu aos loucos e crianças, como se diz popularmente. Fui advertido para que fizesse estes destaques que são, como respondi, menores diante daquele ato de libertação e solidariedade de derrubar as paredes do Anchieta como em Trieste, como quis Nise da Silveira e tantos os que amaram as pessoas como a si mesmas.

Uma casa no canal 1, tipo República, com enfermeiros e assistentes – a “Casa Manequinho” -, abrigou os que tinham perdido seus laços, os que se tornaram irrecuperáveis para uma vida plena em face do tratamento que receberam, no potencial resgatado para a maioria, que souberam superar, sem jamais esquecer, as tragédias vividas e assistidas no Anchieta. No caso resgatado, do jovem que há 22 anos fora internado na Casa dos Horrores, reportado no texto de abertura deste livro, obtivemos um relato, já que não logramos encontrá-lo, o que seria oportuno. Tentamos.

Podemos dizer, por testemunhos, que está vivo e trabalhando, hoje com 42 anos. Não se pode dizer que retornou à plenitude após aquele sofrimento que lhe ensinou, sofrendo as vicissitudes da sua própria condição de menino adotado, pobre, marcado como tantos por uma sociedade que marginaliza e seleciona – mas não permaneceu lá a tempo de ser morto ou inutilizado, como tantos. A mãe foi para o céu, ele mudou-se do local em que nascera no Campo Grande, lá perto de onde passava o bonde 17. Que como ele, foi embora, casou-se com uma integrante da Policia Militar e teve dois filhos.

Viu e brincou com suas crianças, foi feliz. Ao que se sabe, separou-se, esteve trabalhando e desempregado, como condição freqüente de milhões de brasileiros. C.E.T.G., nosso personagem que inicia este trabalho como exemplo, esteve bem e mau. melhor e pior. Mas, tendo sobrevivido, pôde viver como cidadão. Pulou carnavais, foi feliz e infeliz, como tantos nestas quase duas décadas e meia após sua passagem pelo Anchieta. Bebeu e cantou fugindo do caminhão que lhe perseguia, da mania de beber, dos comprimidos que ingeria. Salvou-se, afinal. Mas C.E. não voltou a ser recluso, preso, castigado – e como ele muitos não mais seriam.

No episódio do Anchieta, fez-se uma descoberta: não havia necessidade de uma “prisão para loucos”, que esta era uma crueldade, uma lembrança medieval, esta sua grande lição. Eram todos humanos. Nos carnavais, C.E. provavelmente festeja, entre os seus, neste único país do mundo que faz esta festa em toda a nação, unindo a festa brasileira miscigenada da cultura africana e européia na comemoração dos deserdados, que se vestem de reis e rainhas ironizando os poderosos, na perspectiva de que a ironia é o primeiro passo da contestação.

As possibilidades que se lhe oferecem a condição de estar vivo e livre, condição essencial e tão pequena para ser usufruída que alguns, teimosamente, tentam impedir, mas que um dia haverá para todos os que persistirem nesta luta insana contra os que impõe limites à vida e que tentam proibir seu exercício, com atitude extrema de exclusão e exploração. Nesta cidade eles não passarão e esta foi a grande lição aplicada há quinze anos. Não lamento mais o crime dos perversos do que o silêncio dos bondosos, disse Martin Luther King. Mas Santos não se calou. E não ficou em silêncio, como tantos que fizeram ouvidos moucos aos gritos dos torturados. Os “mentaleiros” venceram.












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CONCLUSÃO - OS LOUCOS E NÓS:
O que temos a ver com isso?

Santos mais uma vez exportou para o país a sua geração. Técnicos que vieram para cá saíram daqui depois do Anchieta para implantar modelos de Saúde Mental pelo país, que tem hoje 522 CAPS, 140 em São Paulo. O primeiro, fora a experiência de Cerqueira César, na capital, foi implantado aqui de modo acabado. O Congresso Nacional dos CAPS ocorrido recentemente, de 29 de junho a 1º de julho de 2004, em São Paulo, teve mais de duas mil pessoas – entre familiares, agregados, técnicos e profissionais psicólogos e médicos - e foi o primeiro da história. Como diz Daniela Stazak, que esteve lá, coordenadora de Saúde Mental de Itanhaém, a luta não acabou e nem vai acabar, é permanente. Com ela, esteve no Congresso dos CAPS o militante antimanicomial Geraldo Peixoto e Dulce Edie. Geraldo diz: uma coisa é fazer a Reforma Psiquiátrica na Itália, outra é em um país do tamanho do Brasil. Mas há gente contribuindo e apostando nos serviços alternativos em todo o país.

Santos plantou procedimentos, outra vez. De que maneira a situação dos chamados “loucos”, pessoas que em algum momento prolongam um comportamento de desequilíbrio ou desajuste mental, pode interessar aos que vivem fora dos hospícios? Essa é a primeira pergunta do cidadão comum, que jamais teve a experiência de estar em um deles, onde os “tratamentos” visam a destruição da personalidade e a perpetuação do estado mental de desequilíbrio - na interpretação cruel da tragédia do esmagamento de pessoas porque inúteis para a produção, interessando a “outra” produção que é o lucrativo manicômio. Tem tudo a ver com os “de fora”.

As respostas são diversas: considerando que todos somos vítimas potenciais da violência, seja do Estado diretamente, seja daquela gerada pelo sistema econômico injusto produzido e mantido por ele, interessa em ultima análise por amor próprio. Ou por solidariedade com os que sofrem, como receitam as religiões. Ou por não admitir a existência de campos de concentração, próprios de regime que pensamos ter derrotado na guerra. Ou por questionar todo o sistema de dominação dos fortes sobre os fracos, dos ricos sobre os pobres, presente do nosso dia a dia, produzindo loucura nas regras rígidas de uma estrutura social baseada na disputa selvagem pela sobrevivência.

Nestes casos, dos chamados “loucos”, subsiste - em Santos subsistia -, uma conjuntura opressiva e cruel sobre um contingente improdutivo economicamente e por isso marginalizado, como a maioria de nosso povo, pela carência de tudo - de salário justo, de educação, de moradia, de saúde, de transporte, de alimentação. Só que estes o eram só que em termos absolutos. O grito da humanidade pela sua preservação ecoou em Santos- que deu ouvidos aos gritos por trás das paredes do hospício, revertendo uma situação de interesse comum. É esta história. Estes nossos loucos, melhor explicados na arte ou na filosofia do que na Medicina, não necessitavam ser reclusos ou marginalizados, encarcerados, dopados e violentados - degradando suas condições mentais. Era preciso, sim, reassociá-los ao meio que não puderam compreender ou aceitar, como se fez. As marcas, entretanto, deixadas neles e mesmo nos que lidaram com eles é trágica e criminosa.

Com a degradação das condições materiais de vida e a imposição de sofrimentos insuportáveis, em um país que tem uma das maiores jornadas de trabalho no mundo - sem somar-se as horas extras comuns-, irá se produzir o mais alto nível de acidentes de trabalho do planeta, a loucura é resultante. E não há de ser resolvida em manicômios, mas na raiz do processo. Na intensa disputa gerada pelo sistema econômico, o medo do desemprego e da privação é uma constante, como todos os medos. E ele enlouquece. Reconhecidas as raízes dos crescentes contingentes de internados em manicômios, transformados em prósperas empresas mantenedoras de campos de concentração subsidiadas por verbas públicas - e, percebemos mais, que essa prática significa a a exclusão dos incapacitados para a produção capitalista, base da nossa organização social.

Lixo humano gerando lucro, isolando seres improdutivos, duas pontas arquitetadas pelos agentes do sistema econômico baseando na exploração do homem pelo homem. Ao nível da problemática da Saúde Mental, era necessário abrir uma frente de luta - não apenas pela humanização dos manicômios, mas por sua extinção, possibilidade a reintegração dos contingentes enlouquecidos e marginalizados. Desenhando novas regras para uma política de saúde, que passa pelo estancamento do imenso derrame de verbas entregues à torturadores de pessoas, deixando claro o seu direito de não serem submetidas a “tratamentos” que apenas agravam o seu estado mental – para satisfação dos mercadores do templo. Instituindo mecanismos de justiça, o homem como valor nuclear, não apenas a produção - para que deixemos de produzir loucura, no esforço global não apenas de alterar as práticas no campo da Saúde Mental, mas de transformar a sociedade em favor das maiorias.

Compreendeu-se que a reintegração destes subprodutos sociais é a chance para sua própria oxigenação e reformulação dos conceitos arbitrários - utilizados em toda a história da humanidade. Esta estrutura social doentia e excludente precisou ser compreendida em seus próprios erros, gerados pela cultura do individualismo extremado, impostos pela ideologia da acumulação nas mãos de uma minoria, às custas da exploração da maioria. A transformação dos valores humanos em lucro financeiro deformou a sociedade, a partir do comando de poucos. Foi necessária esta compreensão para recuperar a vida e oferecer horizontes para a humanidade, a partir do comunitarismo - que se traduz na integração dos diferentes e constrói novos paradigmas.

Reação social
Encontrando nos chamados “loucos” elementos da própria existência enquanto seres vivos, a sociedade reconstrói a sua capacidade de sobrevivência pela solidariedade, em uma época de retrocesso selvagem aos níveis de violência indesejada. Assim como os colonizadores “desbravaram”- aniquilaram a bravura – dos indígenas que habitavam o interior do país, que mataram inaugurando em terras tropicais a violência institucionalizada que hoje buscam as causas como inocentes.

Urge reverter este processo e reconduzir a sociedade pela não-violência, como senso de iniciativa para construção de um clima social de colaboração e construção coletiva. Arriscamo-nos, se não reagirmos à deformação dos valores, a permitir, na admissão da violência institucionalizada, que as sociedades auto-denominadas “superiores”, seja economicamente, seja racialmente, venham nos extinguir. Se permitimos a opressão sobre outros, logo será conosco.

Todos se lembram do teatrólogo alemão Bertold Brecht: primeiro eles vem no vizinho de um lado e o levam, depois de outro – e eu, que não fizera nada, quando vieram na minha me levar não havia ninguém para acudir. Assim como os métodos repressivos à marginalidade tem provado sua incorreção e premente necessidade de mudança, sob pena de agravar e destruir a sociedade, o “tratamento” da chamada “loucura”, que não é tratamento, não poderia prosseguir nos níveis de violência anteriores, pois logo não teríamos o que fazer com este “lixo atômico” expandindo-se incontrolavelmente pelas condições de alimentação, moradia e relacionamento brutalmente modificadas pelo sistema econômico capitalista, cujo conflito e contradição de classe gera sua própria destruição.

Quando eu era adolescente, li os livros do psicólogo Cláudio Araújo Lima (“Amor e Capitalismo” e “Imperialismo e Angústia”) e vi em que níveis que a economia e o sistema econômico interferem no comportamento das pessoas, deformando seres e alterando destinos, causando desequilíbrios e ceifando vidas humanas – impedindo o amor, brutalizando seres. O que determina que ou lutamos já para modificar esse destino e integrar as parcelas marginalizadas, formando com elas os instrumentos de mudança de rumos ou a destruição das nossas conquistas sociais se afogará no lodo da nossa incompetência de não saber gerir nossas vidas. Temos sim a obrigação de ajudar a construir uma nova sociedade solidária a partir de ações positivas e corajosas, como se fez no Anchieta santista, enfrentando forças que, defendendo os valores dos mantenedores do “status quo”, mantém o atraso e a violência institucionalizada.

Esta é uma sociedade em putrefação que marginaliza seres como improdutivos – e eles devem ser chamados a colaborar nesta luta para compor uma nova ordem e modificar a sociedade que aliena, massifica e enlouquece, na ideologia da produção e da acumulação irracional, as grandes massas populares. A vontade política de Telma e sua capacidade de liderar, arregimentar e organizar quadros técnicos e políticos para esta mudança necessária foi a determinante deste fato histórico nesta direção, projetando o futuro na vanguarda de um novo tempo. Seu registro, compreensão e propulsão é um compromisso e uma razão a que é preciso dedicar nossas vidas, em nome desse novo tempo.
















53
LEGISLAÇÃO EM SAUDE MENTAL NO BRASIL

Legislação Federal
Lei n.o 9.867, de 10/11/1999 (Cooperativas Sociais)
Lei 10.216, 6/4/2001
Ceará
Lei n.o 12.151, de 29/7//1993
Distrito Federal
Lei n.o 975, de 2/12/1995
Espirito Santo
Lei n.o 5.267, de 7/8/1992
Minas Gerais
Lei n.o 11. 802, de 18/ 1/1995
Emenda da lei n.o 11.802 de 1.o/12/1997
Paraná
Lei n.o 11.189, de 9/11/1995
Pernambuco
Lei n.o 9.716, de 7/8/1992
Rio Grande do Norte
Lei n.o 6.758, de 4/1/1995
Rio Grande do Sul
Lei n.o 9.716, de 7/8/1992
Portarias do Ministério da Saúde
Portaria n. 189, de 19/11/1991
Portaria n. 224, de 29/11/1992
Portaria n.o 407 de 30/6/1992
Portaria n. 408, de 30/ 12/ 1992
Portaria n.o 088 de 23/7/1993
Portaria n.o 145, de 25/ 8/ 1994
Portaria n.o 147, de 25/8/1994
Portaria n. 1.077, de 24/8/1999
Portaria n. 106,de 11/2/2000
Portaria n.o 799, de 19/7/2000
Portaria n.o 1.220 de 7/11/2000
Portaria n.o 175/GM de 7/02/2001
Resolução do Conselho Nacional de Saúde
Resolução n.o 93, de 2/12/1993
Resolução n.o 298, de 2/12/1999
Deliberação da Comissão de Intergestores Biparte da
Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro
Deliberação biparte/RJ n.o 54, de 14/3/2000

FIM



52
ANEXOS - O AUTOR

Paulo Matos é Jornalista, historiador pós-graduado e bacharel em Direito, formado pela Universidade Católica de Santos. Escritor, nasceu em 1952 e atualmente é assessor parlamentar do vereador santista Ademir Pestana, do PT. Militante político do movimento estudantil e popular desde a puberdade, integrante da geração 1968, escreveu centenas de crônicas em diversos jornais e revistas. É autor de livros sobre transporte coletivo urbano - “Transporte coletivo em Santos, história e regeneração”, editado pela Prefeitura de Santos no governo do Prefeito Osvaldo Justo (1984-1988), em 1987.

Escreveu também sobre a história do porto e do sindicalismo portuário (“Caixeiro, conferente, tally clerk – uma odisséia em um porto do Atlântico”), escrito junto com o também jornalista Mauri Alexandrino, também editado em 1997 pela Prefeitura de Santos, no último ano da gestão do Prefeito David Capistrano (1993-1996).

Poeta e contista premiado na Universidade, palestrista, Paulo Matos é autor também de ensaios sobre arquitetura - “Santos / Jurado, a ilha e o novo” -, que mostra o arquiteto e construtor do edifício Verde Mar João Artacho Jurado, editado pela PRODESAN em 1996. E história - em que ganhou o Prêmio Estadual Faria Lima de História em 1986, promovido pelo Governo do Estado (Secretaria do Interior / CEPAM) Um trabalho que conta a trajetória do movimento operário livre em Santos desde seu nascimento após a Abolição, fins do século XIX.

Seu Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo em 1983, “Santos Libertária - imprensa e movimento operário, 1879 / 1920” foi ampliado e apresentado como sua monografia de pós-graduação em história em 1992 (“Imprensa operária na Santos Libertária – imprensa e história do sindicalismo livre/1879-1920”), depois de ganhar o prêmio estadual Faria Lima de história em 1986 - narrando o período em que se originaram os sindicatos no Brasil nos fatos ocorridos em Santos, um dos três principais pólos nacionais do movimento operário à época do sindicalismo livre.

Na sua formação em Direito em 2002, apresentou como Trabalho de Conclusão de Curso a monografia “Catracas, cobradores e direitos sociais”, em que mostra todas as infrações legais praticadas pelos empresários do sistema de transporte coletivo em Santos - de cuja luta participou há 20 anos, como membro da coordenação da Associação dos Usuários, tendo sido vítima da Lei de Segurança Nacional em 1984 por essa militância.

Também como participante dos movimentos de organização popular, foi integrante do Movimento Estudantil e coordenador da luta pela legalidade dos ambulantes de praia, conquistada pela primeira vez no país, em uma luta iniciada em 25 de fevereiro de 1983 com a criação da “Socó Unidade Ambulante de Resistência” - semente do atual Sindicato dos Ambulantes - na legalidade conquistada em 1986, engajando no trabalho legal cerca de 1.500 pessoas, após extensa trajetória de luta. Membro da coordenação da Associação dos Usuários do Transporte Coletivo, em 1984 foi preso em manifestação e indiciado na Lei de Segurança Nacional, então o último do país, sendo demitido da CETESB - anistiado político em 1998.

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REPORTAGENS DE TV
TV Globo
TV Bandeirantes
TV SBT
TV Record
TV Gazeta

ENTREVISTAS
Psiquiatra Domingos Stamato
Psiquiatra Pedro Gabriel Delgado
Psicólogo Luiz Antonio Guimarães Cancelo
Psiquiatra Suzana Robortela
Psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita
Psicólogo Marcus Vinicius de Oliveira
Dentista Berta Esteves
Jornalista Mauri Alexandrino
Jornalista José Roberto Fidalgo
Jornalista Leda Mondin
Assistente Social Maria José Muglia Rodrigues
Deputada Maria Lúcia Prandi
Aux. enfermagem Elza Maia
Militante Antimanicomial Geraldo Peixoto
Militante Antimanicomial Dulce Edie
Psicólogo Caetano Munhoz

RELATÓRIOS da primeira e segunda Caravana Nacional de Direitos Humanos – Uma amostra da realidade manicomial brasileira - Câmara dos
Deputados / Comissão Nacional de Direitos Humanos

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