Amigos, companheiros:
A doutora Nise da Silveira é personagem de meu livro "Anchieta, 15 anos", editado em 2004, sobre a intervenção municipal no manicômio santista com este nome, existente desde 1948, onde se praticavam torturas e se impunham privações aos pacientes no ambiente superlotado e infecto. Um campo de concentração no meio da cidade, no bairro da Vila Mathias, fechado em 1989 libertando os "loucos" que fabricava com injeções e eletrochoques aplicados a êsmo.
Conto o evento e faço o percurso da luta pela nova psiquiatria em Santos, fazendo o histórico de sua trajetória desde os tempos antigos. Está em meu blog. Vale a pena. A base desta intervenção, escrevia-se à época, era o psiquiatra italiano Franco Basaglia, que em 1971 colocou abaixo o manicômio de Trieste. Mas nós tinhamos o original na humanização do tratamento dos distúrbios mentais, a nossa Nise da Silveira.
Eis o email de Urariano Mota:
No Diário de Pernambuco de hoje. Notem que é matéria "fria", isto é, artigo, texto, que se usa para cobrir buraco. Esta foi usada, certamente, para a ausência de fatos "culturais" de celebridades em uma segunda-feira de novo ano. Viva a matéria fria. O melhor jornal é o antijornal.
Urariano
Nise da Silveira ensinou a respeitar todas as criaturas
Psiquiatra acreditava que pacientes poderiam
ficar curados através do contato com a arte
Uma pessoa muito à frente de seu tempo. Poucas mulheres podem se considerar tão dignas dessa qualificação quanto a psiquiatra Nise da Silveira. Uma das primeiras médicas do país, revolucionou o violento tratamento psiquiátrico costumeiramente praticado no Brasil. Desenvolveu novas terapias, inéditas em todo o mundo, e, por sua posição política, chegou a ser presa. Na cadeia, virou personagem de livro.
Mais do que pelo romance Memórias do cárcere, onde tem parte de sua vida narrada pelo conterrâneo Graciliano Ramos, a alagoana tímida e de olhos grandes foi imortalizada por seu trabalho e pela capacidade de respeitar todas as criaturas, mesmo àquelas mais desacreditadas, como os loucos e os animais.
Nascida em 1906, em Maceió, Nise da Silveira foi a única mulher entre os 157 alunos de sua turma na Faculdade de Medicina da Bahia. Ainda na academia, direcionou seus estudos para as relações entre doenças e pobreza. Depois de se casar com um colega de faculdade e perder o pai, em 1927, Nise e o marido resolvem se mudar para o Rio de Janeiro, então capital da República. No Rio, se envolveu com a classe artística e intelectual da época e se engajou no movimento comunista.
Com apenas 27 anos, foi aprovada em um concurso público para psiquiatra e ingressou no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, no Hospício Pedro II, na Praia Vermelha, o mais antigo da América Latina. "Ela se interessou pela psiquiatria por se opor radicalmente às terapias utilizadas até então, que utilizavam eletrochoques, lobotomia e trabalhos forçados. A doutora Nise era contra o uso de violência nos pacientes ", conta Luiz Carlos Mello, que trabalhou com Nise durante 25 anos.
Segundo ela, a loucura era muito mais uma experiência pela qual o paciente passava do que uma patologia. "Antes mesmo que essa questão fosse debatida em nível mundial na década de 1950, Nise da Silveira já discutia e adotava uma postura mais fenomenológica, que depois ficou conhecida como o movimento antipsiquiatria, que negava a visão tradicional de doença mental", conta Marcus Vinícius de Oliveira, psicólogo, doutor em saúde coletiva e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Clandestinidade - Três anos depois de ingressar no serviço público, Nise foi denunciada por uma enfermeira por manter livros marxistas. Presa, acabou mandada para o Presídio Frei Caneca, onde conviveu com nomes como Olga Benário e Graciliano. O escritor, impressionado com a visão humanista da médica, a tornou um personagem de seu livro Memórias do cárcere. "Sabia-a culta e boa. Rachel de Queiroz já me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, reduzir-se, como a se escusar de tomar espaço. Nunca me havia aparecido criatura mais simpática. (...) Nise, acanhada, tinha um sorriso doce#", descreve o escritor.
A médica ficou presa por 18 meses e, depois de solta, passou a viver com o marido na clandestinidade, onde se manteve por oito anos. Nesse período, aprofundou seus estudos da obra do filósofo Spinoza, chegando a posteriormente publicar olivro Cartas a Spinoza, no qual discute a obra do holandês. "Mais do que uma médica, a doutora Nise pode ser considerada uma das precursoras do feminismo. Além de ser mulher, era uma mulher que pensava, que tinha uma postura crítica, que tinha opinião, o que era impensável para os padrões impostos para as mulheres da época", conta Marcus Vinícius de Oliveira.
Reintegrada ao serviço público em 1944, Nise retomou sua luta contra os tratamentos agressivos aos pacientes tidos como loucos. Uma de suas primeiras atitudes foi organizar um departamento de terapia ocupacional, onde os pacientes pudessem se expressar por meio da pintura, do teatro e de trabalhos manuais, como a confecção de artesanato. "O que era considerado terapia ocupacional, na época, era obrigar os pacientes a fazerem serviços domésticos, como lavar e passar. A doutora Nise mudou isso. Ela acreditava que eles poderiam se curar através da arte", lembra Luiz Carlos Mello.
Retrato da emoção - De todas as atividades disponíveis em seu Centro de Terapia Ocupacional, aquelas em que os pacientes podiam expressar o que sentiam, como a pintura, foram as que trouxeram mais resultados. "Os pacientes retratavam imagens de seu mundo interno, assim era possível compreender as vivências emocionais da loucura de cada um deles" completa Luiz Carlos.
As obras produzidas por seus pacientes tiveram não apenas seu valor terapêutico reconhecido, mas também artístico. Para abrigar todo o acervo que surgia, a médica fundou, no próprio hospital psiquiátrico, o Museu de Imagens do Inconsciente, onde é possível conhecer - até hoje - o que se passava na mente dos pacientes. Nas obras, é possível identificar a predominância de formas circulares. "O círculo é o símbolo da unidade. Como podem pessoas com esquizofrenia, doença caracterizada pelo distanciamento do mundo real, retratarem constantemente o símbolo da união? Ninguém compreendia então como isso era possível", explica Luiz.
Intrigada com as telas produzidas, a médica alagoana enviou algumas fotos delas para o famoso Carl Gustav Jung, que desenvolvia na Europa uma nova corrente da psicologia, a corrente jungiana. Depois de se corresponder intensamente com ele, Nise decidiu se transferir para a Europa a fim de ingressar no Instituto Carl Gustav Jung, onde permaneceu entre 1958 e 1959 e entre 1961 e 1962, tendo como orientadora a assistente do suíço, Marie-Louise von Franz.
De volta ao Brasil, Nise fundou o primeiro grupo de psicoterapia jungiana do país. Nesse período, ela também fundou a Casa das Palmeiras, uma clínica voltada para a recuperação de pacientes das antigas instituições psiquiátricas, que tinham sofrido os violentos tratamentos repudiados pela médica. "O modelo de CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) que o Brasil adotou a partir da década de 1980, durante a reforma psiquiátrica, foi baseado em sua experiência na Casa das Palmeiras, revolucionária para a época", comenta Luiz Carlos, que atualmente preside o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro.
O papel dos animais - Certo dia, apareceu na Casa das Palmeiras um cachorro de rua ferido e faminto. Um paciente pediu a autorização de Nise da Silveira, que adorava animais, para adotá-lo. À medida que o animal se recuperava e se fortalecia, o paciente que cuidava dele ia melhorando e recuperando a sanidade. A observação desse fenômeno levou a psiquiatra a desenvolver outro método de tratamento totalmente inédito em nível mundial. "O animal de estimação dá amor incondicional ao dono, assim, através dessa troca de afetividade com o animal, os doentes iam recuperando seu vínculo com o mundo real. Nunca, em outro lugar, o uso de animais tinha sido proposto, e hoje, depois de desenvolvido por ela, é uma prática completamente difundida" lembra Luiz Carlos Mello.
A médica teve uma vida longa. Morreu aos 92 anos, em 1999, no Rio de Janeiro. Nem a idade avançada, porém, a fez deixar o trabalho de lado. Nos últimos anos, se dedicou à elaboração de livros sobre os tratamentos que desenvolveu durante toda a sua vida. "Ela era uma pessoa apaixonada pelo que fazia. Etinha um profundo respeito por criaturas que eram marginalizadas por todos: loucos e animais", define Mello.
Nenhum comentário:
Postar um comentário